O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação
transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja: Deus deu a forma.
Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.[1] Manoel de Barros
A arqueologia não remete necessariamente ao passado.
Há uma arqueologia do presente.
Deleuze.
- manoel-curador
No poema “Escova”, Manoel de Barros
diz ter visto, quando criança, alguns homens sentados no chão “escovando osso”.
Eles faziam movimentos firmes e repetitivos com a escova. De início, o poeta
pensou que aqueles homens “não batiam bem”. Ele reparou melhor e se deu conta
que tais homens não podiam ser “loucos”. Os loucos fazem coisas mecanicamente,
não importa que coisas sejam. Os homens enlouquecem agindo à maneira de
máquinas, ou como engrenagem de uma ( ao
modo do explorado trabalhador de Os
tempos modernos , de Chaplin). Naqueles homens, porém, havia um “cuidado”, percebia-se uma espécie
de amor no que faziam. Ao contrário de todo mecanicismo, que padroniza, a
prática do cuidado singulariza.
“Cuidado” , assim como “cautela” ,origina-se
de “caute”. Uma prática cultural tem a mesma origem:
“curador”, “aquele que cuida”. Ao contrário do mero colecionador, que cobiça
quantidades, o curador cuida da singularidade enquanto alma ou sentido
qualitativo de cada coisa. Não por acaso, na face interna do anel de Espinosa,
esse curador do espírito, estava grafada
a expressão latina “caute”.Toda prática que ousa apreender, e afetar-se, por algo singular exige cuidado, consigo e com o
objeto cuidado.
No livro intitulado O guardador de águas, Manoel diz que “guarda
águas”. Guardar também é cuidar. Ás águas não são exatamente coisas,
elas são fluxos. O poeta cuida de fluxos. Fluxos dentro e fora dele. Cuidar dos
fluxos é deixá-los passar, ir; cuidar
deles é o oposto de construir barreiras, represas, muros, obstáculos,
gramáticas. Os fluxos são sempre desterritorializados e desterritorializantes.
Não se pode "passar régua" sobre eles, não se pode codificá-los, estriá-los. Os
fluxos são lisos, esquizos, nômades, andaleços. Só se pode guardar fluxos sendo
também um. Os fluxos nascem de fluxos, não de coisas imóveis ou fixas. O rio
amazonas não nasceu da geleira, mas da geleira devindo fluxo, pingando,
correndo, fluindo. Os fluxos somente podem ser guardados em espaços abertos,
horizontados; seja esse espaço horizontado o pantanal, a mente ou o coração.O horizonte guarda a paisagem, mas sem cercá-la.
O poeta descobriu depois que aqueles homens eram
arqueólogos. Eles escovavam o osso tal
como Espinosa escovava suas lentes: para ver melhor, através : “Videntes não ocupam o olho para ver - mas para transver”[2] . Como se conversasse com
o filósofo, Manoel diz que na poesia “posso polir as palavras”[3].Vidente não é quem vê muito
ou advinha o futuro . Vidente é quem vê com a “visão que tem sotaque de nossas
origens”[4]. E “quem se aproxima das
origens se renova”[5].
Em Manoel, portanto, vidência é exercício de uma visão fontana [6]nascida
de um “olho divinatório”[7]. Este olho divinatório não é um olhar etéreo ou o mero “olho da
alma” citado por Platão. É o olhar do corpo, um olhar que incorpora, para assim
“celestar as coisas do chão” : “Poesia não é para compreender, mas para incorporar”[8] . Por isso, explica-se o
poeta, “(...) Aprendi a gostar das coisinhas do chão / Antes que das coisas celestiais”[9].
Os arqueólogos buscavam naquele osso, “uma coisinha do
chão”, um sentido que o fazia mais do que osso. O cuidado que acompanhava o conhecimento fazia do osso parte de
um chão
celestado, de tal modo que a prática de conhecer também era exercício
lúdico de descoberta. No passado remoto, aquele osso era parte de um esqueleto
sob pele e músculo, esqueleto este que fazia parte, por sua vez, de um mundo,
seu horizonte. O osso fazia parte de um mundo fazendo parte de um ser vivo
aberto a um horizonte. O extinto animal não desaparecera totalmente, uma vez
que os arqueólogos o descobriam naquela parte que , escovada, adquiria a
capacidade de expressar um mundo, um horizonte, um “celestamento”. Somente
assim, como exercício poético, o conhecimento nos horizonta[10].
O poeta faz o mesmo com a palavra,
não importa qual: ele “escova a palavra”, retira dela a poeira e craca com as
quais o uso a cobriu, tornando-a refém de um uso, de um referente,
subordinando-a à mera informação:
O que não aprendeu ainda a renunciar
ao desejo de informar, ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar. Quem canta é
músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva. Poeta não precisa não precisa
de informar sobre o mundo. Poeta precisa de inventar outro mundo.[11]
Como um arqueólogo do sentido, o poeta escova
a palavra, para nela achar a verdez
do “antesmente verbal”[12]:
Não
gosto de aprender novidades. Só gosto
de me repetir pra criar minha linguagem. Resta sempre uma
verdez primal em cada palavra.Cada palavra
pode ser o germe de uma obscura existência.[13]
A palavra assim escovada já não é
apenas palavra, ela se torna um “minadouro de sentido”.[14] Escovadas, o poeta faz com
que cada palavra se una à outra não por sintaxe, mas por afeto.
( estou nesse evento, com a poesia de Manoel de Barros : "Aprendo com o povo sintaxes tortas", como as curvas e dobras do barroco-aleijadinho, como o corpo alegre consigo mesmo dançando maracatus, jongos, sambas...)
Manoel de Barros Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola,família. Há novas forças que se anunciam: são as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo(...). Não se deve perguntar qual é o regime mais duro,ou o mais intolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições(...). Muitos jovens pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Deleuze
DIÁLOGO
- O Rei baixou um último decreto. - Do que trata? - Expressamente, determina: “É proibido pensar”. - Qual inimigo pretende tal decreto enquadrar? - Não se sabe ao certo... Segundo se diz, esse inimigo está em todo lugar: ele ameaça a Sociedade de Controle. - O que a Sociedade de Controle controla? - Ela somente pode controlar o que se mexe e se extroverte.Escapa-lhe o que é nômade por dentro, e que fica quieto e em silêncio, e que ouve mais do que fala.Por isso, a Sociedade de Controle estimula os trânsitos , os posts, os cartões, os chats,as milhagens, os lisings, os canais...Outrora, era se fechando e imobilizando entre os muros e paredes que se exercia o poder sobre os corpos, embora a alma sempre escapasse em suas linhas de fuga inventadas,literárias, filosóficas,poéticas,marginais, místicas; hoje,o poder estimula que o corpo se mova e circule,com a condição de que a alma esteja na caixa... -Que caixa? - As que têm na frente uma tela digital.Enquanto a mente estiver seduzida por uma caixa,o Rei saberá onde ela está: ela estará presa.Mas o Rei teme que o tal inimigo esteja dentro. - Dentro de onde? - Dentro de tudo que é margem: favelas, desejos, poetas, loucos, crianças. - Mas como saber? - Não queira saber, apenas ajoelhe-se e baixe a cabeça . - Ajoelhar e baixar a cabeça diante do Rei? - Não apenas diante dele. Também diante de seus representantes: as estatísticas, as medianias, as "metas",o sacrossanto mercado e, sobretudo, a lógica. Nunca se esqueça de dizer que está tudo bem,sobretudo ao seu carrasco. E não se esqueça também de sempre atualizar a Suma e o Vade Mecum das cartilhas que lhe autoajudam a atrair o amor, o prazer, o sexo, o dinheiro, o sucesso e milhares de visualizações em seu vídeo . Lembre-se: sexta-feira é dia de ficar bêbado, e na segunda o Rei quer que todo mundo fique triste. Leia o bestseller que a propaganda recomenda. Para dúvidas existenciais, consulte um psicólogo, jamais ouse tentar encontrar um sentido por si mesmo. - Que polícia prenderá os infratores ao decreto? - A polícia do pensamento. Foi criada ontem. Cuidado... - Cuidado com o quê? - Cuidado com tudo. Vê aquela câmera? - O que tem ela? - Ela tem sensores que captam idéias ainda não catalogadas. - Catalogadas? - Sim, o utilitarismo pragmático catalogou todas as idéias que valem a pena pensar. O CNPq financiou o projeto. Teve até concurso público para selecionar esses polícias. 10 mil por mês de salário, exige-se D.E. - O que é D.E? - Dedicação Exclusiva. - E os poetas? - Cuidado com o que diz.... - E os filósofos? - A câmera virou para cá...precisamos ir... - Ir para onde? - Você pergunta demais. Disfarça e sorria...E lembre-se: a ciência explica tudo. Explica o amor, a morte, a vida, o tempo... O código genético é só mais uma gramática. O google tem todas as respostas, ao menos para as perguntas que são permitidas e valem nota na prova.Também está proibido fazer filme que ninguém entende. - Como fugir? - Não existe mais fora... - Isso é o que você acredita. O fora ainda existe. O que nos falta é reinventar uma porta. - Se o Rei desconfiar de suas idéias, ele mandará trancar os corações...Não é isso que você está chamando de porta? - Não... O coração é exatamente o que está fora do que pode dominar o poder do Rei. O coração é o cosmos inteiro, talvez seja o que Espinosa chama de Deus. Este fora somente o vislumbramos através daqueles que se fizeram porta aberta para ele, e por eles podemos sair , respirar e voltar; para assim, quem sabe, subverter, re-educar,re-acreditar.
Quando vejo que vai bater de frente, piso no freio, desvio. Não por medo de colisões, mas porque dirijo um ônibus cheio de crianças, idosos, grávidas, jovens, alguns adultos... Também nele há plantas, bichos, seres selvagens e domesticados.Nunca cobro passagem. Entra e segue comigo somente quem ama a estrada, sem cobranças : "a estrada põe sentido em mim", diz o poeta. Não tenho itinerários, somente itinerâncias . Minha estrada é uma linha de fuga. Se for preciso, modestamente freio ou desvio, mas para seguir em frente, indo.
Muitos, ao contrário, quando veem que há outro no seu caminho aceleram e buscam o choque , o ódio recíproco.Em geral são seres que conduzem , solitariamente, seus ressentidos fusquinhas ou suas arrogantes mercedes ,pois mesmo que a mercedes esteja cheia de gente, será um solitário quem a conduz se a dirige não em razão da estrada ou da viagem, mas apenas por causa da mercedes que se quer ostentar;e apenas de forma interesseira lhe acompanharão os que estiverem ao seu lado, sempre por causa da mercedes, e não da viagem;também costumam pisar no acelerador e buscar o choque os insones condutores de carretas carregadas de ferro, chumbo, máquinas .
Piso no freio mesmo se vem na minha direção um fusquinha ou uma mercedes, embora facilmente poderia lhes causar um dano, se um choque houvesse.E nunca vou na mesma direção em que vai uma carreta amontoada apenas de coisas, pois tais carretas vão para o mercado onde tudo tem seu preço, onde se compra e se vende. E que sigam seu caminho, se é para a felicidade que eles pensam ir,os homens e suas velozes mercedes ( até mesmo diminuo minha velocidade para deixar que eles me ultrapassem, embora não estejamos indo para o mesmo horizonte).
E que Deus me dê sempre a visão, a firmeza, a modéstia e a paciência de saber quando é a hora de pisar no freio, para não destruir ou ser destruído, e de quando é a hora de acelerar, sempre rumando em frente.
Transporto sonhos, delírios, manifestos, utopias, comédias, tragédias, fabulações, metafísicas, subversões, poesias, constituições, contemplações...Transporto um "afloramento de falas" , pois transporto o que me transporta: transporto livros.
Há forças dominantes e
dominadas. A diferença entre dominante e dominada se estabelece em razão da
quantidade de força. As dominantes têm mais força, as dominadas o têm menos. Mas força em relação a quê? Força
como capacidade de dominar outra força, fazendo-se obedecer. Assim, o estado
natural das forças é estarem em luta.Nisto, marxistas e liberais dão as mãos.Ambos creem que é o litígio, dialético ou rivalizante, que define a natureza das forças.
Esse modelo quantitativista vale para tudo o que é força: as
forças biológicas, as forças físicas, as forças políticas e até mesmo as forças
psíquicas, pois certas ideias dominam nossa mente pela força que têm em vencer
outras ideias. Mas uma ideia que vence pela força não significa exatamente que
ela nos torna pensadores....No mundo da política, por exemplo, cada partido é o
representante de uma ideia-força em luta.
Dessa diferença quantitativa
entre as forças surge uma distinção qualitativa: as forças dominantes serão
chamadas de ativas, ao passo que as
dominadas serão as reativas. As
reativas, as dominadas, podem vencer, no entanto, as ativas dominantes. Não exatamente se
tornando ativas ou dominadoras das dominantes. As forças reativas podem vencer
as ativas separando as ativas daquilo que elas podem;ou seja, as forças ativas
podem ser vencidas por elas mesmas quando agem apenas para dominar as reativas,
trazendo para si algo de dominado....É assim por exemplo que ,no campo da política, um partido que se pretende libertário pode ser dominado, quando alcança poder, por aqueles partidos que professam ideologia conservadora. A busca pelo poder alterna, às vezes com tons de comédia noutras de tragédia, dominantes e dominados.
Mas seria apenas isso ter força ou ser forte: ser dominante (a todo custo, não importando por quais meios)? Ser dominante ou ser dominado esgota todas as possibilidades de uma força?
É nessa questão que surge
a ideia de vontade de potência. Esta não é apenas a força dominante ou ativa. A
vontade de potência não é tão somente o dominar. Para que a força se metamorfoseie
em potência, é preciso que lhe nasça algo em seu dentro. Não um dentro
dominante por oposição a um fora dominado. É preciso que no interior da força
nasça um querer. E que este querer
não construa para si uma imagem de si mesmo segundo sua capacidade de dominar,
que é também uma capacidade de se afirmar, mas negando ( negando a outra força,
fazendo-a dominada, reativa).
Quando nasce , no
interior da força, um querer, somente assim a força se torna potência.Não querer isto ou aquilo, mas querer a si mesma, afirmando a si mesma . O querer nasce no interior da força para pô-la para fora de si mesma, em agenciamento produtivo com as coisas. E uma
força que se torna potência nunca pode ser separada de si mesma, daquilo que
ela pode. A potência assim considerada não é mais quantidade ou qualidade: ele
se torna intensidade, e sua relação não é apenas com outra força, mas com todo
o universo, incluindo o universo das coisas a inventar. Ela se torna produtiva, criativa, afirmativa no mais alto grau : ela doa força aos que não a tem, mas sem pedir força-obediência em troca, pois força não lhe falta.
A
força ativa é vitoriosa sobre a força reativa. Mas a força reativa pode, mesmo
sendo dominada, vencer a força dominante empregando a mesma lógica que define
dominante e dominado, separando o dominante daquilo que ele pode...Mas a potência afirmativa
vence, em primeiro lugar,a si mesma, não sendo nunca a mesma, posto que em
eterno processo de (re)invenção, sempre doando-se, nunca dominando. E o que ela
doa não é algo que se separa dela, mas é ela mesma se metamorfoseando naquele
que a recebe, libertando-se este último de toda reatividade dominada. A
potência nasce quando a força entra em relação consigo mesma, em uma lógica que
não é a da dominante-dominada, quantitativa-qualitativa. Essa relação da força
consigo não pode ser forçada, ela precisa ser espontânea, como uma graça, uma generosidade para consigo, ao
mesmo tempo que um cuidado. Não raro, é ao preço de derrotas que se acha essa força-potência : "A expressão reta não sonha.Não use o traço acostumado.A
força de um artista vem das suas derrotas", ensina Manoel de Barros.
Essa relação
da força consigo mesma não é para encontrar uma unidade egoica ou uma relação
dual eu e mim. Diferentemente, essa relação visa encontrar um “minadouro” ,uma
fonte, uma multiplicidade de forças.Uma multiplicidade não é um somatório.
Quando várias coisas são somadas, elas perdem sua singularidade e entram em uma
unidade como resultado da soma ou adição. O número 2, por exemplo, é a soma de
dois números 1. O 4, a soma de dois números 2. Quando olhamos o 4, não vemos os
dois números 2 que o fizeram nascer. Isto porque colocamos a unidade à frente
da multiplicidade, a identidade como razão de ser da diferença. O 4 é a força dominante .
Uma
multiplicidade não é adição, tampouco mera multiplicação aritmética.
Multiplicidade é o que torna múltiplo alguma coisa, não importa qual coisa. A poesia
torna múltipla a palavra, uma vez que ela dota a palavra de uma força múltipla
de expressar o sentido. Tornar múltipla a palavra é torná-la insubstituível. Em
seu uso prosaico, uma palavra pode ser trocada ou substituída por outra em
razão da representação de um conceito. Por exemplo, posso empregar a palavra “residência”
ou “habitação” para representar o conceito de “casa”. Porém, quando Manoel de Barros diz
que “o poeta mora debaixo do próprio chapéu”, este morar expressa um habitar
cuja casa é a própria linguagem, enquanto moradia do sentido. A cada vez que
esse verso é repetido, ele diz coisas diferentes. Ele é múltiplo sendo singular.
E tudo aquilo que é singular somente pode ser repetido :em cada repetição ele
se mostra diferente, diz um sentido diferente de si mesmo.
É essa
multiplicidade expressa pelo singular que revela a natureza criativa, generosa,
da mais elevada, e nobre, das forças. Uma micropolítica da criação e produção,
para além das macropolíticas de dominantes e dominados, onde o dominado de hoje
deseja ser o dominante de amanhã.
Quando
Manoel de Barros afirma que “poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, a
ênfase está no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto. Sempre
haverá mundo para a poesia fazer,poesia é sempre prática de fazer outro mundo.
É desse fazer que o poeta deseja ser o dono, não do mundo : "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve".São os tristes homens
do poder que cobiçam ser os donos do mundo.
Quem se aproxima
da origem se renova. Manoel de Barros
Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois
homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente
"Escova" [1]). Isso o afetou singularmente. Tempos
depois, ele soube o nome do que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam
"arqueologia", eles eram "arqueólogos".Desse aprendizado
ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só
que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele
fazer viver a "arqué". "Arque-ologia" procede de
"arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué"
tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte",
"origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas ,
museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com
nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está
apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A
Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção
de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No
exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso,
algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso,
o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O
tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este
tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também
do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso,
quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto
escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte
do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere,
aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação
utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua
alma: o sentido.
O mistério mais misterioso não é o que acontece escondido, à noite,
e que poucos veem. O mistério mais misterioso é o que acontece em plena luz,
mas poucos têm olhos para ver.
Barrès
Originalmente,
“crítica” é um termo que lança raízes na ágora grega. A crítica é prática
política e filosófica de trazer à pólis , ao comum, o sentido que
elegemos como orientação para nosso agir e pensar. Crítica é prática de
fortalecer o comum, desarmar os egos, coibir tiranos, os de fora e os de dentro
de nós mesmos.
O iluminismo retomou essa ideia. Dessa vez,
trazendo um novo elemento: a luz. Entre os gregos, a luz não fazia parte
exatamente da pólis, pois nesta o agente era a palavra. Era nos místicos e
poetas que a luz aparecia como realidade a atrair a alma mais do que a tudo,
revelando outro poder distinto daquele que movia a política.
O
iluminismo retirou da luz essa dimensão absoluta, poético-mística, e a associou
apenas à razão. No lugar do sol místico, interpôs-se a razão. Contudo, esse
interpor-se da razão também produziu sombras. O racionalismo cientificista é a
sombra deixada por uma razão que quer ser o sol, que se arvora como única fonte
de luz.
Espinosa
se diferencia muito desse paradigma, embora se saiba que é em Espinosa que
nasceu, de fato, o espírito iluminista, muito antes dos enciclopedistas. Assim,
é em Espinosa que vemos o exercício muito singular da crítica. Na Grécia, a
política se fiou demasiado na palavra, e expulsou para longe a luz espiritual,
acessível apenas aos solitários. Na Europa moderna, trouxe-se a razão para a
política, mas ao preço de retirar dela toda e qualquer dimensão metafísica,
ontológica, ética.
Em
Espinosa, porém, a política e a metafísica serão vistas de forma agenciadas,
como partes de um todo, pois a crítica
ao dogmatismo e ao obscurantismo não se faz apenas colocando a vida sob a luz exclusiva da razão. Espinosa descobre que
há apenas uma luz, uma luz espiritual, mas que esta produz outras luzes também,
que são maneiras ou modo de ser dela. Há certas questões que só ficam claras
trazendo-as sob a luz da lua, luz poética, pois a luz do sol não é capaz de
iluminar o que não é do reino do útil.. E há outras realidades ainda que apenas
sob a luz das estrelas somos capazes de compreender. As luzes das estrelas são
as luzes do infinito.
Espinosa,
de fato, é um iluminista, talvez o maior de todos, desde que incluamos nessa
luz que o move não apenas a luz do sol da razão. A luz do sol é apenas a luz de
uma das milhares de estrelas, assim como a verdade da razão é apenas uma entre
milhares. E há ainda verdades que apenas compreendemos quando refletidas
poeticamente , tal como a luz do sol refletida pela lua.
Ser
um iluminista é trazer à luz o que a
sombra oculta. Esse trazer à luz expressa o papel cristalino da crítica. Mas há
coisas que somente a luz da lua, luz noturna, é capaz de nos mostrar e nos
fazer compreender, mesmo que em torno daquilo que assim compreendemos se
estenda uma noite absoluta, como a que existe ao redor da lua . A luz da razão,
luz diurna, apolínea, clareia a ágora e impede, sem precisar de armas, as
obscuridades nascidas dos que se inclinam ao vil e ao torpe do ponto de vista
jurídico e político. Contudo, o erro do racionalismo iluminista é querer ver
sob a luz da razão realidades que somente se mostram sob a luz das estrelas, luz
dionisíaca, pois somente estas podem clarear o que para a razão é ainda
obscuridade, incluindo a obscuridade de uma razão que se quer luz exclusiva .Somente
a luz das estrelas nos pode revelar as torpezas e vilanias metafísicas.
A
luz da razão é luz crítica direcionada para fora. Somente esta luz não nos
permite alcançar o exercício da autocrítica e do autoconhecimento. Outras luzes
são necessárias. Não luzes que nos atinjam de fora, mas sim luzes que clareiem
por dentro.
Apreendido
isoladamente, nosso sol deixa de ser estrela e se torna o astro que parece
existir com a finalidade de aquecer meu
corpo e dar vida à terra. É sob sua ação que vemos nascer e durarem os dias. É a sucessão dos mesmos que nos faz
crer no tempo. E assim contamos os dias, os meses , os anos, os séculos. Porém
é da perspectiva do infinito que cada sol é uma estrela, ou seja, algo que
existe no infinito, incomensurável com o tempo. Imaginemos alguém vivendo em um
planeta que gira em torna da estrela Úrsula Maior. Para este habitante, a estrela
deixa de ser estrela e se torna o sol dos seus dias, ao passo que nosso sol se
torna a estrela, uma das infinitas estrelas, de sua noite metafísica,
poética - na imanência da qual está,
invisível, a nossa terra.
É
desse iluminismo estendido ao infinito que brota a luz que alimenta as ideias
mais politicamente libertárias, uma vez que libertam não apenas o corpo ou tão somente o
espírito, libertam a ambos. E um corpo cujo espírito também se libertou não
lutará apenas por emprego, moradia, direito ao voto, casa, salário...sem lutar
também por liberdade , arte, pensamento, criatividade, alegria, singularização,
enfim, existência.
É
uma abstração conceber o sol apenas como sol, e não como estrela também ( ou
seja, como parte do infinito), assim como é uma abstração conceber nosso corpo como parte apenas da
terra, pois ele também é parte do infinito, assim como o espírito que a luz
infinita aquece e faz viver.
Há
questões que devem ser tiradas dos “esconderijos” da vida privada e trazidas
para o espaço da pólis. Mas há outras questões que somente podemos compreender
as colocando em aberto, sob o infinito . Paradoxalmente, é somente sob esse
aberto que podemos ver direito o que nos vai dentro. Não para relativizá-lo,
mas para pô-lo em relação com coisas e realidades que não lhe são contíguas no
espaço ou contemporâneas no tempo. A crítica e autocrítica assim nascidas não
são um julgamento sobre o que se fez ou uma repressão ao que se deseja fazer,
mas sim o encontrar um lugar. Um lugar mais do que na pólis ou na terra : um
lugar no infinito. E este lugar não está no além ou alhures, ele está aqui,
agora, já.
Muitos exaltam as linhas retas e os pontos; outros idolatram as alturas ou as profundidades. O homem racional, por exemplo, crê que os caminhos seguros são apenas os retos, dos quais se parte após um planejamento sem brecha para o acaso, e retilineamente a razão teoriza seu porto: a Verdade. Os místicos, por sua vez, amam as alturas, as ascensões, as elevações. Já os profundos vivem a mirar poços, abismos, que dizem existir dentro deles.
Todas essas imagens inspiraram doutrinas e visões do mundo científicas, religiosas ou artísticas. Contudo, o mais surpreendente é a ideia da dobra. Deleuze associa a dobra ao barroco. Não apenas ao barroco, como à própria vida. A vida é produtora de dobras. Não há no vivo nada que se assemelhe a uma linha reta.
As dobras são movimentos em duas direções: toda dobra implica algo, ao mesmo tempo que também desdobra alguma coisa. Em toda dobra algo está implicado, em toda dobra algo pode ser desdobrado.Implicar e desdobrar.O desdobrar também recebe outro nome: explicar. Aristóteles dizia que a finalidade da semente é se tornar uma árvore, e que a árvore já estaria dentro da semente, como forma final que a semente, enquanto potência, visaria atingir, para depois sumir, apagando-se. No mundo barroco, diferentemente, a árvore está dobrada dentro da semente. Ao nascer, a árvore explica a semente, a desenvolve. Porém, na árvore que cresce a semente continua a existir, mas implicada, dobrada virtualmente, de tal modo que a explicação ou desdobra não é a persecução de um fim, pois toda explicação vai em duas direções: explicação e implicação.A árvore explica-se , desenvolve-se, mantendo dobrada em si a semente que lhe está implicada, envolvida. Todas essas palavras (implicar, explicar) têm como raiz, raiz rizomática, o termo “pli”. “Pli” significa exatamente, ou anexatamente, “dobra”.Implicar é o movimento pelo qual a dobra constitui um “dentro”, um interior. Não um interior fechado, limitado por contornos rígidos.É um interior como forma em rascunho, diria Manoel de Barros. Ex-plicar é trazer para fora (“ex”) o que está implicado, o que está dobrado. Todo desdobrar é um explicar, um desenvolver.O feto se desenvolve desdobrando o que nele está implicado: ao se desdobrar, o feto explica o que nele está implicado e, dessa forma, se explica.Tudo o que se desdobra explica a si e aquilo que nele está envolvido, implicado.Mais do que mera informação que vai em linha reta, o código genético é uma dobra que, ao se desdobrar, cria um organismo, e neste mesmo organismo o código permanece implicado, dobrado.
O processo que vai da implicação à explicação se chama expressão.Toda expressão tem algo implicado nela e algo é desdobrado dela. Uma expressão não re-presenta ou re-apresenta algo que lhe esteja fora ou ausente, tal como a palavra “casa” que re-apresenta a casa como seu objeto exterior, seu referente . Diferentemente, a expressão não representa, ela expressa, ela desdobra o que já está implicado nela. E o que está implicado nela é o sentido, é a ideia expressiva, a essência. O feto desdobra sua essência, ele a explica e assim se explica.
( O infinito de seus olhos, poema-concreto de Décio Pignatari. A expressão do infinito nasce quando o círculo é dobrado sobre si mesmo, espiralando-se: o código genético tem forma semelhante)
A vida não é representativa: ela é expressiva, ela é uma expressão. Explicar é desenvolver o que já trazemos implicado em nós.A semente explica ou desenvolve o que está implicado nela. E o que está implicado nela não é uma essência universal de árvore, mas a singularidade árvore, a essência singular de uma árvore que nasce a partir de uma diferença.O que é uma árvore? Uma expressão da vida. O que é um homem? Uma expressão da vida.O que está implicado no feto humano não é a ideia universal de homem, mas a singularidade homem, a novidade homem, o poema homem.Toda expressão, toda essência singular, traz e é o novo.
A expressão nos mostra que o dentro e o fora não são termos dicotômicos, tal como ensina a tradição filosófica. O fora é o dentro que se vai desdobrando e explicando, o dentro é o fora mesmo implicado em nós.O subjetivo é carregado de objetividade, a objetividade nada é se uma subjetividade não pode explicá-la. A ciência diz que o universo surgiu da explosão de um ponto: este ponto que explodiu recebeu o nome de “big-bang”. Contudo, talvez o big-bang não tenha sido a explosão de um ponto (seguindo-se daí a diáspora do que antes foi uma unidade). Talvez o que se chama de big-bang tenha sido o desdobrar do que estava implicado. E se o infinito estava implicado, é infinito também o seu desdobrar.
Além disso, todo desdobrar/explicar tem uma carga de invenção: o que é explicado não é uma cópia do que está implicado.O feto não é uma cópia do código genético; uma aula não é uma cópia de um texto ( que ela, no entanto, desdobra e explica). Todo explicar, quando expressivo, é uma invenção de algo que está implicado, mas virtualmente. Toda explicação é uma diferenciação. Explicar não é tanto ensinar quanto é aprender: aprender com o que está implicado, e que nenhum explicar pode esgotar.O aprender vem antes do ensinar.
Tudo pode ser pensado assim, quando vemos e vivemos as coisas não como representação, e sim como expressão.E tudo o que é expressão tem algo implicado que pode ser explicado, desde que o explicado esteja implicado naquele que explica.Por exemplo, pode-se falar representativamente da justiça, fazer da justiça uma representação que a lei representa. Mas enquanto expressão, a justiça é algo que está implicado naquele que a explica: a explica não exatamente fazendo leis, a explica em seus gestos, em suas palavras, em suas ações.Não existe a “Justiça em Si”, como pensava Platão.Existe a justiça implicada, envolvida, e que somente passa a existir se for explicada, desenvolvida, criada. Pois aquele que assim explica a justiça explica a si próprio, se inventa: existe como justo. O amor somente pode ser vivido como expressão se ele estiver implicado naquele que o explica e desenvolve. E se através da explicação do amor aquele que o explica também se explicar através do amor que está implicado nele, somente assim pode-se confiar que este ama.Só o amor está implicado na explicação que o desenvolve. O amor implicado e sua explicação constituem a essência do amor como expressão. Toda explicação singulariza. Quando se tem de uma coisa apenas a representação, entre ela e aquele que a representa passa a existir então como que um vazio que será preenchido por alguma coisa, por um clichê por exemplo, ou então esse vazio será dissimulado por comportamentos impotentes, pois neles não estará implicado aquilo que se quer viver.Quando vivemos algo como expressão, ao contrário, não o vivemos apenas em palavras, o vivemos como aquilo que nos explica, pois está implicado em nós e também em nossas ações.
As coisas que estão implicadas podem entrar em relação com outras coisas dobradas.Essa relação das coisas implicadas entre si, criando uma conexão ou rizoma, os medievais chamavam , em latim, de “complicatio”. Complicatio significa : dobrado junto.Ou ainda: complexo.Tudo o que está implicado em nós está complicado, dobrado junto, com o universo inteiro. Não se pode explicar complicando. Ao contrário, toda explicação é um desenvolvido de coisas implicadas que, por sua vez, estão complicadas com outras.Não há complicação que não possa ser explicada, desde que se encontre o que está implicado.E o deve estar primeiramente em nós, assim como o código da vida que está na vida do feto.
É desdobrando o complicado que se alcança o simples. Sim-plex: literalmente, "sem dobra", posto que foi desdobrado.O simples não se opõe ao complexo, o autêntico simples é o que se desdobra do complexo, ele é aquilo que resulta do explicar o complexo.Além disso, algo sem dobra não é exatamente algo reto. O simples permanece ligado sempre ao complexo, tal como o fio de Ariadne que , desdobrado, permanece sempre ligado à complicatio de seu novelo.E neste novelo estão implicadas todas as narrativas, estão implicadas todas as narrativas que salvam, que criam percurso e inauguram linhas de fuga.A linha reta, ao contrário, não tem novelo. Uma linha, dizem, é feita de pontos.Mas o ponto é o falso simples, um simples meramente matemático.No começo não está o simples: o simples somente surge como o produto cujo agente o desdobra de uma complicatio, de algo complexo. Somente encontramos o simples após uma explicação, e não antes dela.Tampouco existe o complexo sem o simples, e o simples sem o complexo. E no meio de ambos estão a implicação e a explicação.
Singularizar é intensificar. Cada um explica o que lhe está implicado de acordo com a potência que tem.O que está implicado em mim está complicado com o que está implicado em tudo .O Todo está implicado em tudo, e é por isso que o Todo é complexo e se expressa em cada coisa simples. Uma explicação aumenta sua potência quanto mais ela se percebe como não sendo uma explicação exclusiva, definitiva. Toda explicação potente é uma forma em rascunho que explica uma potência que nunca é puramente formal.
Uma ideia, não importa qual, é uma expressão: ela implica algo e dá a possibilidade de ser explicada por aquele que a vive.E aquele que a vive também explica a si mesmo naquilo que ele explica e vive.
Os estudiosos da vida nos dizem que aquilo que chamamos de “órgãos” são, na verdade, dobras. O cérebro, por exemplo, é dobra sobre dobra sobre dobra...O cérebro é todo dobrado sobre si mesmo.O cérebro é uma complicatio, mas simples é a ideia que faz pensar e ensina, educa.O pulmão também é uma dobra: dobra esta feita de dobras.Quando se desdobra fisicamente um pulmão, ele vira uma superfície do tamanho de uma quadra de tênis. Assim, no horizonte de uma dobra não está a altura nem a profundidade,tampouco o ponto; no horizonte de uma dobra está uma superfície. Não o superficial, mas a superfície. A superfície não é o raso por oposição ao profundo, ela também não é o baixo por oposição ao alto das alturas.A superfície é a horizontalidade.No mito, a primeira divindade a surgir foi Gaia, a Terra. Esta era caracterizada pela superfície.A superfície é espaço de conexões.Não raro, há alturas superficiais, bem como profundidades que são superficiais. Na origem da dobra não está a linha ou o ponto, está a superfície.Em nós, os afetos estão dobrados; quando os desdobramos, vem expressá-los a superfície do rosto.A onda do mar, por exemplo, também é uma dobra: se esticarmos uma onda descobrimos que ela nasce da superfície do mar.Os simples não são profundos, tampouco desejam ascender a píncaros. Os simples habitam as superfícies.Os simples habitam a Terra.A superfície é espaço de travessias.
Um livro quando vivo, quando faz viver,é uma dobra.Ele é dobra porque nele está implicado o que está dobrado junto com tudo. Ele é uma dobra cheia de dobras.Lê-lo é desdobrá-lo, é explicá-lo.Explicar o complexo é devir simples. Explicamos um livro de acordo com a potência que temos. Mas o que está implicado no livro tem sua própria potência, que pode sempre aumentar a nossa, desde que desejemos devir simples porque em nós está implicado um sentido , uma questão.Ler um livro é desdobrar o que nele está implicado, e o que está implicado nele está implicado em nós, pois não se trata de letras, mas de ideias, de ideias expressivas.Livros assim têm uma potência de desdobramento infinita, pois o infinito está implicado neles. E o infinito não começa e nem termina, o infinito possui apenas meio. Tais livros não têm exatamente origem, eles têm horizonte: é deste que eles nasceram.Lê-los é horizontar-se.
A Ética, de Espinosa; O que é a filosofia? , de Deleuze e Guattari; O livro de pré-coisas, O livro sobre nada e O livro das ignorãças, de Manoel de Barros; Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento, de Cláudio Ulpiano; Moby-Dick, de Melville...São livros-dobra : neles está implicada a mesma potência que está implicada em cada coisa que vive, e é em nossa alma que essa potência se desdobra e se explica, nos explicando, nos singularizando.
Segundo Sartre, não há como o homem
pôr-se diante de si a não ser confrontando-se com a angústia. Uma das primeiras aparições da palavra angústia se
encontra na Odisseia, de Homero. Tal
palavra aparece para designar uma situação
pela qual passou Ulisses, o navegante. Não por acaso, Ulisses é considerado um
dos símbolos da condição humana. Enquanto viaja pelo mar aberto, Ulisses não
presta muita atenção no rumo que está tomando. Ele não está consciente do
caminho: sua mão pousa leve sobre o leme, ele se distrai e se perde nas coisas
que vê. Parece que o barco vai sozinho, como se ele mesmo soubesse o caminho. O
navio “fisga” o navegante irrefletido,
parece que o navio se torna “viscoso”: dir-se-ia que é o navio que decide a
direção. E que esta direção é a necessária.
Detalhe: Ulisses navegava sem mapa,
sem bússola. Ele retorna da guerra de Troia. Após passar por mil desventuras,
tenta achar o caminho que o leve de volta à sua terra natal, Ítaca. Porém, de repente ele vê rochas, ilhas que
vão se avolumando. Ele precisa pegar mais firme no leme agora e decidir por
conta própria o caminho, pois este se vai estreitando. Quanto mais ele avança,
mais ele precisa escolher o caminho, mais ele precisa ter consciência e refletir no que fez, no que faz e no
que fará. Presente, passado e futuro formam um estreito circuito enquanto
Ulisses age. Mais do que nunca, ele compreende que sua existência é ação, que
sua existência é tempo, consciência do tempo. Ele precisa ter consciência do
que fez, e não mera memória de algo feito; ele precisa ter consciência do que
faz, e não mera percepção de que está fazendo algo; ele precisa ter consciência
do que fará, e não mera expectativa de que tem algo a fazer. Esse passado, enquanto meio de toda escolha, não passa: ele é retido ( retenção); esse futuro não é um presente que virá: é do próprio presente, o que passa, que o futuro é alcançado, e se torna presente para fazer o presente passar ( protensão), tornando-se passado retido. É nesse circuito temporal existencial que Ulisses se torna
consciente de que existir é fazer escolhas. Essa temporalidade existencial não é a do relógio, ela é vivida , e descoberta, na experiência da indiscernibilidade do tempo, da consciência, do corpo e do mundo. Cada escolha depende dele,
exclusivamente de sua consciência, e não de sua memória ( ele nunca passou por
ali...) , tampouco a escolha quem faz é o vento ou o navio. Ele se percebe só em sua escolha. Atena e
Zeus o abandonaram. Essa solidão é, ao mesmo tempo, um castigo, uma maldição e
sua liberdade. Ulisses percebe que sua existência é escolha, o heroísmo de se saber escolha. Ele sente sua existência correr como
um líquido, como uma água, não mais o prende o viscoso navio.
“Angústia” significa, no mito,
“caminho estreito”. “Angústia” não é medo. Ulisses poderia ter medo de um
rochedo atingi-lo. O medo vem do ser-em-si do rochedo. A angústia nasce de ele poder
lançar o navio contra o rochedo. A angústia é angústia frente a si mesmo,
frente ao seu ser-para-si. A angústia é essa consciência de que nada escolhe
por ele, e que ele pode escolher até mesmo não escolher, ou pode escolher o
gesto extremo. A angústia é o caminho o mais estreito, onde só você pode
passar.É o preço que a vida cobra para quem deseja tornar-se autêntico, singular.