O mistério mais misterioso não é o que acontece escondido, à noite,
e que poucos veem. O mistério mais misterioso é o que acontece em plena luz,
mas poucos têm olhos para ver.
Barrès
Originalmente,
“crítica” é um termo que lança raízes na ágora grega. A crítica é prática
política e filosófica de trazer à pólis , ao comum, o sentido que
elegemos como orientação para nosso agir e pensar. Crítica é prática de
fortalecer o comum, desarmar os egos, coibir tiranos, os de fora e os de dentro
de nós mesmos.
O iluminismo retomou essa ideia. Dessa vez,
trazendo um novo elemento: a luz. Entre os gregos, a luz não fazia parte
exatamente da pólis, pois nesta o agente era a palavra. Era nos místicos e
poetas que a luz aparecia como realidade a atrair a alma mais do que a tudo,
revelando outro poder distinto daquele que movia a política.
O
iluminismo retirou da luz essa dimensão absoluta, poético-mística, e a associou
apenas à razão. No lugar do sol místico, interpôs-se a razão. Contudo, esse
interpor-se da razão também produziu sombras. O racionalismo cientificista é a
sombra deixada por uma razão que quer ser o sol, que se arvora como única fonte
de luz.
Espinosa
se diferencia muito desse paradigma, embora se saiba que é em Espinosa que
nasceu, de fato, o espírito iluminista, muito antes dos enciclopedistas. Assim,
é em Espinosa que vemos o exercício muito singular da crítica. Na Grécia, a
política se fiou demasiado na palavra, e expulsou para longe a luz espiritual,
acessível apenas aos solitários. Na Europa moderna, trouxe-se a razão para a
política, mas ao preço de retirar dela toda e qualquer dimensão metafísica,
ontológica, ética.
Em
Espinosa, porém, a política e a metafísica serão vistas de forma agenciadas,
como partes de um todo, pois a crítica
ao dogmatismo e ao obscurantismo não se faz apenas colocando a vida sob a luz exclusiva da razão. Espinosa descobre que
há apenas uma luz, uma luz espiritual, mas que esta produz outras luzes também,
que são maneiras ou modo de ser dela. Há certas questões que só ficam claras
trazendo-as sob a luz da lua, luz poética, pois a luz do sol não é capaz de
iluminar o que não é do reino do útil.. E há outras realidades ainda que apenas
sob a luz das estrelas somos capazes de compreender. As luzes das estrelas são
as luzes do infinito.
Espinosa,
de fato, é um iluminista, talvez o maior de todos, desde que incluamos nessa
luz que o move não apenas a luz do sol da razão. A luz do sol é apenas a luz de
uma das milhares de estrelas, assim como a verdade da razão é apenas uma entre
milhares. E há ainda verdades que apenas compreendemos quando refletidas
poeticamente , tal como a luz do sol refletida pela lua.
Ser
um iluminista é trazer à luz o que a
sombra oculta. Esse trazer à luz expressa o papel cristalino da crítica. Mas há
coisas que somente a luz da lua, luz noturna, é capaz de nos mostrar e nos
fazer compreender, mesmo que em torno daquilo que assim compreendemos se
estenda uma noite absoluta, como a que existe ao redor da lua . A luz da razão,
luz diurna, apolínea, clareia a ágora e impede, sem precisar de armas, as
obscuridades nascidas dos que se inclinam ao vil e ao torpe do ponto de vista
jurídico e político. Contudo, o erro do racionalismo iluminista é querer ver
sob a luz da razão realidades que somente se mostram sob a luz das estrelas, luz
dionisíaca, pois somente estas podem clarear o que para a razão é ainda
obscuridade, incluindo a obscuridade de uma razão que se quer luz exclusiva .Somente
a luz das estrelas nos pode revelar as torpezas e vilanias metafísicas.
A
luz da razão é luz crítica direcionada para fora. Somente esta luz não nos
permite alcançar o exercício da autocrítica e do autoconhecimento. Outras luzes
são necessárias. Não luzes que nos atinjam de fora, mas sim luzes que clareiem
por dentro.
Apreendido
isoladamente, nosso sol deixa de ser estrela e se torna o astro que parece
existir com a finalidade de aquecer meu
corpo e dar vida à terra. É sob sua ação que vemos nascer e durarem os dias. É a sucessão dos mesmos que nos faz
crer no tempo. E assim contamos os dias, os meses , os anos, os séculos. Porém
é da perspectiva do infinito que cada sol é uma estrela, ou seja, algo que
existe no infinito, incomensurável com o tempo. Imaginemos alguém vivendo em um
planeta que gira em torna da estrela Úrsula Maior. Para este habitante, a estrela
deixa de ser estrela e se torna o sol dos seus dias, ao passo que nosso sol se
torna a estrela, uma das infinitas estrelas, de sua noite metafísica,
poética - na imanência da qual está,
invisível, a nossa terra.
É
desse iluminismo estendido ao infinito que brota a luz que alimenta as ideias
mais politicamente libertárias, uma vez que libertam não apenas o corpo ou tão somente o
espírito, libertam a ambos. E um corpo cujo espírito também se libertou não
lutará apenas por emprego, moradia, direito ao voto, casa, salário...sem lutar
também por liberdade , arte, pensamento, criatividade, alegria, singularização,
enfim, existência.
É
uma abstração conceber o sol apenas como sol, e não como estrela também ( ou
seja, como parte do infinito), assim como é uma abstração conceber nosso corpo como parte apenas da
terra, pois ele também é parte do infinito, assim como o espírito que a luz
infinita aquece e faz viver.
Há
questões que devem ser tiradas dos “esconderijos” da vida privada e trazidas
para o espaço da pólis. Mas há outras questões que somente podemos compreender
as colocando em aberto, sob o infinito . Paradoxalmente, é somente sob esse
aberto que podemos ver direito o que nos vai dentro. Não para relativizá-lo,
mas para pô-lo em relação com coisas e realidades que não lhe são contíguas no
espaço ou contemporâneas no tempo. A crítica e autocrítica assim nascidas não
são um julgamento sobre o que se fez ou uma repressão ao que se deseja fazer,
mas sim o encontrar um lugar. Um lugar mais do que na pólis ou na terra : um
lugar no infinito. E este lugar não está no além ou alhures, ele está aqui,
agora, já.
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