sexta-feira, 5 de agosto de 2016

manoel de barros: "poesia pode ser que seja fazer outro mundo"

Toda potência é modesta e generosa.
Gilles Deleuze

Há forças dominantes e dominadas. A diferença entre dominante e dominada se estabelece em razão da quantidade de força. As dominantes têm mais força, as dominadas o  têm menos. Mas força em relação a quê? Força como capacidade de dominar outra força, fazendo-se obedecer. Assim, o estado natural das forças é estarem em luta.Nisto, marxistas e liberais dão as mãos.Ambos creem que é o litígio, dialético ou rivalizante, que define a natureza das forças.
Esse modelo quantitativista  vale para tudo o que é força: as forças biológicas, as forças físicas, as forças políticas e até mesmo as forças psíquicas, pois certas ideias dominam nossa mente pela força que têm em vencer outras ideias. Mas uma ideia que vence pela força não significa exatamente que ela nos torna pensadores....No mundo da política, por exemplo, cada partido é o representante de uma ideia-força em luta.
Dessa diferença quantitativa entre as forças surge uma distinção qualitativa: as forças dominantes serão chamadas de ativas, ao passo que as dominadas serão as reativas. As reativas, as dominadas, podem vencer, no entanto,  as ativas dominantes. Não exatamente se tornando ativas ou dominadoras das dominantes. As forças reativas podem vencer as ativas separando as ativas daquilo que elas podem;ou seja, as forças ativas podem ser vencidas por elas mesmas quando agem apenas para dominar as reativas, trazendo para si algo de dominado....É assim  por exemplo que ,no campo da política, um partido que se pretende libertário pode ser dominado, quando alcança poder, por aqueles partidos que professam ideologia conservadora. A busca pelo poder alterna, às vezes com tons de comédia noutras de tragédia, dominantes e dominados.
Mas seria apenas isso ter força ou ser forte: ser dominante (a todo custo, não importando por quais meios)? Ser dominante ou ser dominado esgota todas as possibilidades de uma força?
É nessa questão que surge a ideia de vontade de potência. Esta não é apenas a força dominante ou ativa. A vontade de potência não é tão somente  o dominar. Para que a força se metamorfoseie em potência, é preciso que lhe nasça algo em seu dentro. Não um dentro dominante por oposição a um fora dominado. É preciso que no interior da força nasça um querer. E que este querer não construa para si uma imagem de si mesmo segundo sua capacidade de dominar, que é também uma capacidade de se afirmar, mas negando ( negando a outra força, fazendo-a dominada, reativa).
Quando nasce , no interior da força, um querer, somente assim a força se torna potência.Não querer isto ou aquilo, mas querer a si mesma, afirmando a si mesma . O querer nasce no interior da força para pô-la para fora de si mesma, em agenciamento produtivo com as coisas. E uma força que se torna potência nunca pode ser separada de si mesma, daquilo que ela pode. A potência assim considerada não é mais quantidade ou qualidade: ele se torna intensidade, e sua relação não é apenas com outra força, mas com todo o universo, incluindo o universo das coisas a inventar. Ela se torna produtiva, criativa, afirmativa no mais alto grau : ela doa força aos que não a tem, mas sem pedir força-obediência em troca, pois força não lhe falta.
A força ativa é vitoriosa sobre a força reativa. Mas a força reativa pode, mesmo sendo dominada, vencer a força dominante empregando a mesma lógica que define dominante e dominado, separando o dominante daquilo que ele pode...Mas a potência afirmativa vence, em primeiro lugar,a si mesma, não sendo nunca a mesma, posto que em eterno processo de (re)invenção, sempre doando-se, nunca dominando. E o que ela doa não é algo que se separa dela, mas é ela mesma se metamorfoseando naquele que a recebe, libertando-se este último de toda reatividade dominada. A potência nasce quando a força entra em relação consigo mesma, em uma lógica que não é a da dominante-dominada, quantitativa-qualitativa. Essa relação da força consigo não pode ser forçada, ela precisa ser espontânea, como uma graça, uma generosidade para consigo, ao mesmo tempo que um cuidado. Não raro, é ao preço de derrotas que se acha essa força-potência : "A expressão reta não sonha.Não use o traço acostumado.A força de um artista vem das suas derrotas", ensina Manoel de Barros.
Essa relação da força consigo mesma não é para encontrar uma unidade egoica ou uma relação dual eu e mim. Diferentemente, essa relação visa encontrar um “minadouro” ,uma fonte, uma multiplicidade de forças.Uma multiplicidade não é um somatório. Quando várias coisas são somadas, elas perdem sua singularidade e entram em uma unidade como resultado da soma ou adição. O número 2, por exemplo, é a soma de dois números 1. O 4, a soma de dois números 2. Quando olhamos o 4, não vemos os dois números 2 que o fizeram nascer. Isto porque colocamos a unidade à frente da multiplicidade, a identidade como razão de ser da diferença. O 4 é a força dominante .
 Uma multiplicidade não é adição, tampouco mera multiplicação aritmética. Multiplicidade é o que torna múltiplo alguma coisa, não importa qual coisa. A poesia torna múltipla a palavra, uma vez que ela dota a palavra de uma força múltipla de expressar o sentido. Tornar múltipla a palavra é torná-la insubstituível. Em seu uso prosaico, uma palavra pode ser trocada ou substituída por outra em razão da representação de um conceito. Por exemplo, posso empregar a palavra “residência” ou “habitação” para representar o conceito de “casa”. Porém, quando Manoel de Barros diz que “o poeta mora debaixo do próprio chapéu”, este morar expressa um habitar cuja casa é a própria linguagem, enquanto moradia do sentido. A cada vez que esse verso é repetido, ele diz coisas diferentes. Ele é múltiplo sendo singular. E tudo aquilo que é singular somente pode ser repetido :em cada repetição ele se mostra diferente, diz um sentido diferente de si mesmo. 
É essa multiplicidade expressa pelo singular que revela a natureza criativa, generosa, da mais elevada, e nobre, das forças. Uma micropolítica da criação e produção, para além das macropolíticas de dominantes e dominados, onde o dominado de hoje deseja ser  o dominante de amanhã. 
Quando Manoel de Barros afirma que “poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, a ênfase está no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto. Sempre haverá mundo para a poesia fazer,poesia é sempre prática de fazer outro mundo. É desse fazer que o poeta deseja ser o dono, não do mundo : "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve".São os tristes homens do poder que cobiçam ser os donos do mundo.


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