“Esses vazios me olham”,
assim dizia o poeta angustiado
diante do infinito céu noturno.
Por que eles me olham?
Eu, este minúsculo...
Se não soubessem de mim,
se me deixassem para lá...
Talvez eu não os visse,
e nem eu a mim,
através deles.
E como a planta que à noite se recolhe,
e pela manhã se abre,
sem se colocar “por quês”,
assim seria o meu viver.
**** ***** *****
SARTRE E ULISSES
Odeio quem rouba minha solidão
sem oferecer verdadeira companhia.
Nietzsche
Segundo Sartre, não há como o homem
pôr-se diante de si a não ser confrontando-se com a angústia. Uma das primeiras aparições da palavra angústia se
encontra na Odisseia, de Homero. Tal
palavra aparece para designar uma situação
pela qual passou Ulisses, o navegante. Não por acaso, Ulisses é considerado um
dos símbolos da condição humana. Enquanto viaja pelo mar aberto, Ulisses não
presta muita atenção no rumo que está tomando. Ele não está consciente do
caminho: sua mão pousa leve sobre o leme, ele se distrai e se perde nas coisas
que vê. Parece que o barco vai sozinho, como se ele mesmo soubesse o caminho. O
navio “fisga” o navegante irrefletido,
parece que o navio se torna “viscoso”: dir-se-ia que é o navio que decide a
direção. E que esta direção é a necessária.
Detalhe: Ulisses navegava sem mapa,
sem bússola. Ele retorna da guerra de Troia. Após passar por mil desventuras,
tenta achar o caminho que o leve de volta à sua terra natal, Ítaca. Porém, de repente ele vê rochas, ilhas que
vão se avolumando. Ele precisa pegar mais firme no leme agora e decidir por
conta própria o caminho, pois este se vai estreitando. Quanto mais ele avança,
mais ele precisa escolher o caminho, mais ele precisa ter consciência e refletir no que fez, no que faz e no
que fará. Presente, passado e futuro formam um estreito circuito enquanto
Ulisses age. Mais do que nunca, ele compreende que sua existência é ação, que
sua existência é tempo, consciência do tempo. Ele precisa ter consciência do
que fez, e não mera memória de algo feito; ele precisa ter consciência do que
faz, e não mera percepção de que está fazendo algo; ele precisa ter consciência
do que fará, e não mera expectativa de que tem algo a fazer. Esse passado, enquanto meio de toda escolha, não passa: ele é retido ( retenção); esse futuro não é um presente que virá: é do próprio presente, o que passa, que o futuro é alcançado, e se torna presente para fazer o presente passar ( protensão), tornando-se passado retido. É nesse circuito temporal existencial que Ulisses se torna
consciente de que existir é fazer escolhas. Essa temporalidade existencial não é a do relógio, ela é vivida , e descoberta, na experiência da indiscernibilidade do tempo, da consciência, do corpo e do mundo. Cada escolha depende dele,
exclusivamente de sua consciência, e não de sua memória ( ele nunca passou por
ali...) , tampouco a escolha quem faz é o vento ou o navio. Ele se percebe só em sua escolha. Atena e
Zeus o abandonaram. Essa solidão é, ao mesmo tempo, um castigo, uma maldição e
sua liberdade. Ulisses percebe que sua existência é escolha, o heroísmo de se saber escolha. Ele sente sua existência correr como
um líquido, como uma água, não mais o prende o viscoso navio.
“Angústia” significa, no mito,
“caminho estreito”. “Angústia” não é medo. Ulisses poderia ter medo de um
rochedo atingi-lo. O medo vem do ser-em-si do rochedo. A angústia nasce de ele poder
lançar o navio contra o rochedo. A angústia é angústia frente a si mesmo,
frente ao seu ser-para-si. A angústia é essa consciência de que nada escolhe
por ele, e que ele pode escolher até mesmo não escolher, ou pode escolher o
gesto extremo. A angústia é o caminho o mais estreito, onde só você pode
passar.É o preço que a vida cobra para quem deseja tornar-se autêntico, singular.
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