segunda-feira, 15 de agosto de 2016

o arqueólogo manoel

                                           O ARQUEÓLOGO MANOEL
A arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja: Deus deu a forma.
Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.[1]
Manoel de Barros
 

A arqueologia não remete necessariamente ao passado.
Há uma arqueologia do presente.

Deleuze.

 - manoel-curador

No poema “Escova”, Manoel de Barros diz ter visto, quando criança, alguns homens sentados no chão “escovando osso”. Eles faziam movimentos firmes e repetitivos com a escova. De início, o poeta pensou que aqueles homens “não batiam bem”. Ele reparou melhor e se deu conta que tais homens não podiam ser “loucos”. Os loucos fazem coisas mecanicamente, não importa que coisas sejam. Os homens enlouquecem agindo à maneira de máquinas, ou como engrenagem de uma  ( ao modo do explorado trabalhador de Os tempos modernos , de Chaplin). Naqueles homens, porém,  havia um “cuidado”, percebia-se uma espécie de amor no que faziam. Ao contrário de todo mecanicismo, que padroniza, a prática do cuidado singulariza.
“Cuidado” , assim como “cautela” ,origina-se de “caute”.   Uma prática cultural tem a mesma origem: “curador”, “aquele que cuida”. Ao contrário do mero colecionador, que cobiça quantidades, o curador cuida da singularidade enquanto alma ou sentido qualitativo de cada coisa. Não por acaso, na face interna do anel de Espinosa, esse curador do espírito,  estava grafada a expressão latina “caute”.Toda prática que ousa apreender, e afetar-se, por  algo singular exige cuidado, consigo e com o objeto cuidado.
No livro intitulado O guardador de águas, Manoel diz que “guarda  águas”. Guardar também é cuidar. Ás águas não são exatamente coisas, elas são fluxos. O poeta cuida de fluxos. Fluxos dentro e fora dele. Cuidar dos fluxos é deixá-los  passar, ir; cuidar deles é o oposto de construir barreiras, represas, muros, obstáculos, gramáticas. Os fluxos são sempre desterritorializados e desterritorializantes. Não se pode "passar régua" sobre eles, não se pode codificá-los, estriá-los. Os fluxos são lisos, esquizos, nômades, andaleços. Só se pode guardar fluxos sendo também um. Os fluxos nascem de fluxos, não de coisas imóveis ou fixas. O rio amazonas não nasceu da geleira, mas da geleira devindo fluxo, pingando, correndo, fluindo. Os fluxos somente podem ser guardados em espaços abertos, horizontados; seja esse espaço horizontado o pantanal, a mente ou o coração.O horizonte guarda a paisagem, mas sem cercá-la.
O poeta descobriu depois que aqueles homens eram arqueólogos. Eles escovavam o osso  tal como Espinosa escovava suas lentes: para ver melhor, através : “Videntes não ocupam o olho para ver - mas para transver”[2] . Como se conversasse com o filósofo, Manoel diz que na poesia “posso polir as palavras”[3].Vidente não é quem vê muito ou advinha o futuro . Vidente é quem vê com a “visão que tem sotaque de nossas origens”[4]. E “quem se aproxima das origens se renova”[5]. Em Manoel, portanto, vidência é exercício de uma visão fontana [6]nascida de um “olho divinatório”[7] . Este olho divinatório não é um olhar etéreo ou o mero “olho da alma” citado por Platão. É o olhar do corpo, um olhar que incorpora, para assim “celestar as coisas do chão” : “Poesia não é para compreender, mas para incorporar”[8] . Por isso, explica-se o poeta, “(...) Aprendi a gostar das coisinhas do chão  / Antes que das coisas celestiais”[9].
Os arqueólogos buscavam naquele osso, “uma coisinha do chão”, um sentido que o fazia mais do que osso. O cuidado que acompanhava o conhecimento fazia do osso parte de um  chão celestado, de tal modo que a prática de conhecer também era exercício lúdico de descoberta. No passado remoto, aquele osso era parte de um esqueleto sob pele e músculo, esqueleto este que fazia parte, por sua vez, de um mundo, seu horizonte. O osso fazia parte de um mundo fazendo parte de um ser vivo aberto a um horizonte. O extinto animal não desaparecera totalmente, uma vez que os arqueólogos o descobriam naquela parte que , escovada, adquiria a capacidade de expressar um mundo, um horizonte, um “celestamento”. Somente assim, como exercício poético, o conhecimento nos horizonta [10].
O poeta faz o mesmo com a palavra, não importa qual: ele “escova a palavra”, retira dela a poeira e craca com as quais o uso a cobriu, tornando-a refém de um uso, de um referente, subordinando-a à mera informação:

O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar, ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar. Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva. Poeta não precisa não precisa de informar sobre o mundo. Poeta precisa de inventar outro mundo.[11]

 Como um arqueólogo do sentido, o poeta escova a palavra, para nela achar a verdez do “antesmente verbal”[12]:

Não gosto  de aprender novidades. Só gosto de  me repetir  pra criar minha linguagem. Resta sempre uma verdez primal em cada palavra.Cada palavra  pode ser o germe de uma obscura existência.[13]

A palavra assim escovada já não é apenas palavra, ela se torna um “minadouro de sentido”.[14] Escovadas, o poeta faz com que cada palavra se una à outra não por sintaxe, mas por afeto.







[1] Livro Sobre Nada, p. 75
[2] Escritos em verbal de ave. São Paulo:Editora Leya, 2011.
[3] Encontros Manoel de Barros, p. 16
[4] Ibid.
[5]  “Aprendimentos”, Memórias inventadas 2.
[6] "Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11.
[7]  Entrevista concedida à jornalista Bianca Ramoneda e publicada no site da Leia Brasil.
[8] Gramática expositiva do chão  ( poesia quase toda), p. 212.
[9]  Retrato do artista enquanto coisa, p. 27.
[10] Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010, p. 155.
[11] [11] Encontros: Manoel de Barros. Rio de Janeiro, Azougue, 2010 (Org. Adalberto Müller), p. 149.
[12] Retrato do artista quando coisa, p. 53.
[13] “Pedras aprendem silêncio nele”, Gramática expositiva do chão – poesia quase toda, p. 342
[14] Encontros: Manoel de Barros , p. 145.





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