O ARQUEÓLOGO MANOEL
A arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação
transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja: Deus deu a forma.
Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.[1]
Manoel de Barros
Manoel de Barros
A arqueologia não remete necessariamente ao passado.
Há uma arqueologia do presente.
Deleuze.
- manoel-curador
No poema “Escova”, Manoel de Barros
diz ter visto, quando criança, alguns homens sentados no chão “escovando osso”.
Eles faziam movimentos firmes e repetitivos com a escova. De início, o poeta
pensou que aqueles homens “não batiam bem”. Ele reparou melhor e se deu conta
que tais homens não podiam ser “loucos”. Os loucos fazem coisas mecanicamente,
não importa que coisas sejam. Os homens enlouquecem agindo à maneira de
máquinas, ou como engrenagem de uma ( ao
modo do explorado trabalhador de Os
tempos modernos , de Chaplin). Naqueles homens, porém, havia um “cuidado”, percebia-se uma espécie
de amor no que faziam. Ao contrário de todo mecanicismo, que padroniza, a
prática do cuidado singulariza.
“Cuidado” , assim como “cautela” ,origina-se
de “caute”. Uma prática cultural tem a mesma origem:
“curador”, “aquele que cuida”. Ao contrário do mero colecionador, que cobiça
quantidades, o curador cuida da singularidade enquanto alma ou sentido
qualitativo de cada coisa. Não por acaso, na face interna do anel de Espinosa,
esse curador do espírito, estava grafada
a expressão latina “caute”.Toda prática que ousa apreender, e afetar-se, por algo singular exige cuidado, consigo e com o
objeto cuidado.
No livro intitulado O guardador de águas, Manoel diz que “guarda
águas”. Guardar também é cuidar. Ás águas não são exatamente coisas,
elas são fluxos. O poeta cuida de fluxos. Fluxos dentro e fora dele. Cuidar dos
fluxos é deixá-los passar, ir; cuidar
deles é o oposto de construir barreiras, represas, muros, obstáculos,
gramáticas. Os fluxos são sempre desterritorializados e desterritorializantes.
Não se pode "passar régua" sobre eles, não se pode codificá-los, estriá-los. Os
fluxos são lisos, esquizos, nômades, andaleços. Só se pode guardar fluxos sendo
também um. Os fluxos nascem de fluxos, não de coisas imóveis ou fixas. O rio
amazonas não nasceu da geleira, mas da geleira devindo fluxo, pingando,
correndo, fluindo. Os fluxos somente podem ser guardados em espaços abertos,
horizontados; seja esse espaço horizontado o pantanal, a mente ou o coração.O horizonte guarda a paisagem, mas sem cercá-la.
O poeta descobriu depois que aqueles homens eram
arqueólogos. Eles escovavam o osso tal
como Espinosa escovava suas lentes: para ver melhor, através : “Videntes não ocupam o olho para ver - mas para transver”[2] . Como se conversasse com
o filósofo, Manoel diz que na poesia “posso polir as palavras”[3].Vidente não é quem vê muito
ou advinha o futuro . Vidente é quem vê com a “visão que tem sotaque de nossas
origens”[4]. E “quem se aproxima das
origens se renova”[5].
Em Manoel, portanto, vidência é exercício de uma visão fontana [6]nascida
de um “olho divinatório”[7] . Este olho divinatório não é um olhar etéreo ou o mero “olho da
alma” citado por Platão. É o olhar do corpo, um olhar que incorpora, para assim
“celestar as coisas do chão” : “Poesia não é para compreender, mas para incorporar”[8] . Por isso, explica-se o
poeta, “(...) Aprendi a gostar das coisinhas do chão / Antes que das coisas celestiais”[9].
Os arqueólogos buscavam naquele osso, “uma coisinha do
chão”, um sentido que o fazia mais do que osso. O cuidado que acompanhava o conhecimento fazia do osso parte de
um chão
celestado, de tal modo que a prática de conhecer também era exercício
lúdico de descoberta. No passado remoto, aquele osso era parte de um esqueleto
sob pele e músculo, esqueleto este que fazia parte, por sua vez, de um mundo,
seu horizonte. O osso fazia parte de um mundo fazendo parte de um ser vivo
aberto a um horizonte. O extinto animal não desaparecera totalmente, uma vez
que os arqueólogos o descobriam naquela parte que , escovada, adquiria a
capacidade de expressar um mundo, um horizonte, um “celestamento”. Somente
assim, como exercício poético, o conhecimento nos horizonta [10].
O poeta faz o mesmo com a palavra,
não importa qual: ele “escova a palavra”, retira dela a poeira e craca com as
quais o uso a cobriu, tornando-a refém de um uso, de um referente,
subordinando-a à mera informação:
O que não aprendeu ainda a renunciar
ao desejo de informar, ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar. Quem canta é
músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva. Poeta não precisa não precisa
de informar sobre o mundo. Poeta precisa de inventar outro mundo.[11]
Como um arqueólogo do sentido, o poeta escova
a palavra, para nela achar a verdez
do “antesmente verbal”[12]:
Não
gosto de aprender novidades. Só gosto
de me repetir pra criar minha linguagem. Resta sempre uma
verdez primal em cada palavra.Cada palavra
pode ser o germe de uma obscura existência.[13]
A palavra assim escovada já não é
apenas palavra, ela se torna um “minadouro de sentido”.[14] Escovadas, o poeta faz com
que cada palavra se una à outra não por sintaxe, mas por afeto.
[1] Livro
Sobre Nada, p. 75
[2] Escritos em verbal de ave. São
Paulo:Editora Leya, 2011.
[3] Encontros Manoel de Barros, p. 16
[4]
Ibid.
[5] “Aprendimentos”, Memórias inventadas 2.
[7] Entrevista concedida à jornalista Bianca
Ramoneda e publicada no site da Leia Brasil.
[8] Gramática expositiva do chão ( poesia quase toda), p. 212.
[9] Retrato
do artista enquanto coisa, p. 27.
[11] [11] Encontros: Manoel de Barros. Rio de Janeiro, Azougue, 2010 (Org. Adalberto
Müller), p. 149.
[12] Retrato do artista quando coisa, p. 53.
[13] “Pedras aprendem silêncio nele”, Gramática expositiva do chão – poesia quase
toda, p. 342
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