quinta-feira, 5 de junho de 2025

a chave-mestra

 

                                                          A CHAVE-MESTRA[1]

 

(Este texto é um comentário ao Prelúdio 51 de A gaia ciência. Nietzsche afirma que seu leitor deveria ter “bons maxilares e estômago”, mais do que mera inteligência analítica e memória. Pois “meus textos, dizia ele, é para serem digeridos”, isto é, absorvidos e incorporados àquilo que em nós é vivo, artístico, singular)

 

 

 

Onde quer que estejas, cava profundamente;

a teus pés está a nascente.  

(Nietzsche, “A gaia ciência”).

 

Uma chave específica abre apenas a porta na qual está a fechadura que tem a forma dela. Porém, nenhuma outra porta diferente ela consegue abrir, todas estão fechadas para ela. O cientista abre apenas uma porta: a chave do físico, por exemplo, abre somente o universo físico, sua chave não consegue abrir o universo psíquico; já a chave que tem o químico abre apenas o universo químico, não serve para abrir outras realidades diferentes da química.

O mesmo acontece com o filósofo que se torna especialista em apenas uma parte da filosofia: se ele fizer da lógica sua chave exclusiva, por exemplo, apenas a porta da lógica ele conseguirá abrir; se for a chave da estética a que ele exclusivamente usa, somente essa porta específica abrirá para ele, permanecendo as demais cerradas, inacessíveis, trancadas.

E o pior acontece quando um filósofo reduz toda a filosofia àquela porta que ele consegue abrir, reduzindo a filosofia a apenas um aspecto dela (como aqueles que, de forma reducionista, consideram que a filosofia é, antes de tudo, uma lógica ou uma epistemologia[2]...). A especialização não é um problema em si, ela apenas se torna uma limitação quando se quer fazer dela a norma para a filosofia.

Por isso, o autêntico filósofo é aquele que deve ter, antes de tudo, uma chave-mestra. Uma chave-mestra é aquela que abre todas as portas. Não só abre todas as portas, mas as compreende como entradas singulares para uma mesma casa onde o pensar mora, um pensar umbilicado à vida. Uma casa cujo piso é a terra e seus horizontes, e o teto é o céu com suas infinitas estrelas.

A chave-mestra abre todas as portas não em razão de que aquele que a tem sabe sobre uma área específica mais do que o especialista que possui apenas a chave que abre uma determinada porta. Na verdade, a chave-mestra abre todas as portas porque as conecta como partes de uma mesma realidade que se abre não apenas à Razão, mas também ao Afeto.

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] A esse respeito, vale a pena consultar a letra “W” do Abecedário de Gilles Deleuze.








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