A CHAVE-MESTRA[1]
(Este texto é um comentário ao
Prelúdio 51 de A gaia ciência. Nietzsche afirma que seu leitor deveria
ter “bons maxilares e estômago”, mais do que mera inteligência analítica e
memória. Pois “meus textos, dizia ele, é para serem digeridos”, isto é,
absorvidos e incorporados àquilo que em nós é vivo, artístico, singular)
Onde quer que estejas, cava profundamente;
a teus pés está a nascente.
(Nietzsche, “A gaia ciência”).
Uma chave específica abre apenas a porta na qual está a fechadura que tem
a forma dela. Porém, nenhuma outra porta diferente ela consegue abrir, todas
estão fechadas para ela. O cientista abre apenas uma porta: a chave do físico,
por exemplo, abre somente o universo físico, sua chave não consegue abrir o
universo psíquico; já a chave que tem o químico abre apenas o universo químico,
não serve para abrir outras realidades diferentes da química.
O mesmo acontece com o filósofo que se torna especialista em apenas uma
parte da filosofia: se ele fizer da lógica sua chave exclusiva, por exemplo, apenas
a porta da lógica ele conseguirá abrir; se for a chave da estética a que ele exclusivamente
usa, somente essa porta específica abrirá para ele, permanecendo as demais
cerradas, inacessíveis, trancadas.
E o pior acontece quando um filósofo reduz toda a filosofia àquela porta
que ele consegue abrir, reduzindo a filosofia a apenas um aspecto dela (como
aqueles que, de forma reducionista, consideram que a filosofia é, antes de
tudo, uma lógica ou uma epistemologia[2]...).
A especialização não é um problema em si, ela apenas se torna uma limitação
quando se quer fazer dela a norma para a filosofia.
Por isso, o autêntico filósofo é aquele que deve ter, antes de tudo, uma
chave-mestra. Uma chave-mestra é aquela que abre todas as portas. Não só abre
todas as portas, mas as compreende como entradas singulares para uma mesma casa
onde o pensar mora, um pensar umbilicado à vida. Uma casa cujo piso é a terra e
seus horizontes, e o teto é o céu com suas infinitas estrelas.
A chave-mestra abre todas as portas não em razão de que aquele que a tem
sabe sobre uma área específica mais do que o especialista que possui apenas a
chave que abre uma determinada porta. Na verdade, a chave-mestra abre todas as
portas porque as conecta como partes de uma mesma realidade que se abre não
apenas à Razão, mas também ao Afeto.
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