quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Conhecimento por progressão e conhecimento por conversão

 

        A CONVERSÃO FILOSÓFICA – CONHECIMENTO POR PROGRESSÃO E        CONHECIMENTO POR CONVERSÃO[1]

 

O filósofo Pierre Hadot[2] ensina que a ideia de “conversão” tem uma origem filosófica. Somente depois é que o cristianismo se apropriou da ideia e da prática da conversão, dando-lhe finalidades diferentes das filosóficas.

 A palavra “conversão” significa “voltar-se para”. Mas não se trata de qualquer “voltar-se”, uma vez que diz respeito a um redirecionamento , ou seja, de um mudar  de caminho que produz mais do que uma mudança, produz uma transmutação.  

Portanto, não é um voltar-se para qualquer coisa, é um voltar-se para algo que suscita a transmutação. Plotino dizia que os brotos se voltam para o sol para desabrocharem. Os peixes se voltam para a fonte do rio onde nasceram , e retornam à fonte para fecundarem. Manoel de Barros, por sua vez, dizia que sua poesia nasce de uma “Origem que renova”, e é para essa Origem que todo verso dele novo se volta. Não por acaso, na palavra conversão existe o termo “verso” nesse sentido de um voltar-se para a realidade que o cria, e permanecer-lhe ligado. Na Caverna de Platão, o primeiro prisioneiro se liberta ao voltar-se mais do que para a entrada da caverna: ele se voltou para a Luz que vinha de fora daquele mundo em penumbra. E foi assim que ele se converteu à filosofia, fez-se filósofo.

Enquanto conversão, a filosofia não é só um discurso, ela é , antes de tudo,   uma prática: uma prática de construção de uma vida filosófica. Uma vida filosófica não é exatamente uma vida livresca, tampouco uma vida que apenas filósofos vivem. Pois a conversão à filosofia é uma conversão à vida, uma conversão a si mesmo. Como ensina Nietzsche: “torna-te o que tu és”.

Os estoicos diziam que há  duas maneiras de se obter conhecimento: por progressão e por conversão. O  conhecimento por progressão é identificado ao ensino formal exercido em escolas e  academias . Nesse tipo de ensino, o conhecimento é passado como se fosse uma escada com vários degraus ascendentes: o primeiro degrau, nos nossos tempos,  é o da educação infantil. Depois, o ensino fundamental , seguido pelo   ensino médio até chegarmos ao degrau do ensino superior, a faculdade. E a faculdade possui ainda degraus a serem subidos por quem ingressa nela. Esses degraus são o primeiro período, o segundo, o terceiro...até chegar ao último período. Para quem quiser prosseguir nessa progressão , existe ainda o degrau do mestrado, acima deste o degrau do doutorado, até alcançar ao último degrau: o pós-doutorado. É um  questão de tempo até inventarem um novo degrau ainda mais acima do pós-doc...Não que esse conhecimento por progressão seja infinito. Ao contrário , ele é hierarquizado como uma pirâmide: o acréscimo de mais um patamar no alto da pirâmide não a torna infinita, apenas aumenta o seu tamanho, ao mesmo tempo em que diminui o número daqueles que podem alcançar seu topo.  

O que caracteriza também  o ensino por progressão é que aquele que sobe a escada, o aluno, deve ser conduzido por aquele que já a subiu no passado, o professor. Inclusive, o professor tem o poder institucional de conduzir o aluno a um degrau superior, no caso da aprovação, ou de manter o aluno no mesmo degrau, se o aluno não tiver desempenho suficiente para passar de ano. E o aluno , se quiser,  pode mudar de faculdade , ou ainda de curso , ou mesmo abandonar o estudo, caso decida ou precise ( por questões de saúde ou trabalho, por exemplo).

Porém, não acontece o mesmo processo com a aquisição de conhecimento por conversão. A conversão não é uma subida de degraus, ela não é apenas um aperfeiçoamento do intelecto. Ela não é a subida de uma pirâmide, parecendo-se mais com o achar um caminho que leva ao horizonte aberto. A conversão é uma mudança de vida , sem que haja entre a nova vida e a antiga uma linha reta, um roteiro ou uma ponte.

A conversão se assemelha mais a um salto, um salto realizado dentro de nós, mas que tem efeitos na nossa relação com o mundo fora de nós. Todo salto tem seus riscos, sem dúvida. Esse salto se parece com o que Deleuze e Guattari chamam de desterritorialização . A desterritorialização é uma linha de fuga de um território existencial dado , seguida de uma reterritorialização em novo território que não está dado, pois precisa ser criado. A desterritorialização é um voltar-se para a criação, ir em sua direção para assim encontrarmos a nós mesmos, singularizados.

A filosofia pode ser estudada como um processo de progressão, sem dúvida. Mas a filosofia é, sobretudo, um conhecimento que se conquista por conversão. Talvez aconteça o mesmo com quem se torna músico, pintor, poeta, enfim, artista. E mesmo que seja em outras formações acadêmicas ( medicina, psicologia, biologia, museologia, comunicação...), creio que somente se converte à tal prática quem também seja, além de técnico, um artista-pensador  em sua área. E quem , além de técnico, também  é um artista-pensador  em sua área de atuação , sempre busca a filosofia como um meio de potencializar ainda mais seu pensamento e prática, não importando qual seja sua faculdade de formação.

Muitas vezes a conversão à filosofia acontece antes de se adentrar à faculdade de filosofia. A minha conversão à filosofia, por exemplo, aconteceu bem antes de eu cursar a faculdade de filosofia. Não foi uma escolha que fiz, mas a descoberta de uma necessidade, um descobrir quem eu era.

A filosofia como conhecimento por progressão nos coloca em um processo de formação profissional e obtenção de títulos. Mas a conversão filosófica é uma conquista de autenticidade existencial .

As provas e exames realizados no ensino por progressão aferem a inteligência, porém as provas que envolvem o conhecimento por progressão são provas éticas e existenciais, uma vez que situações da vida põem à prova a condição de filósofo: são provas nas quais seremos testados por nossas ações.

Como dissemos, às vezes alguém pode trocar de faculdade ou mesmo abandonar os estudos, mas quem se converte realmente à filosofia jamais a abandona, mesmo na doença ou nas dificuldades materiais, pois isso equivaleria a abandonar a si mesmo. O júri que julgou Sócrates queria que ele abandonasse a filosofia para assim salvar sua vida, porém Sócrates recusou, uma vez que se fosse retirada a filosofia de sua vida, nada ficaria, nem mesmo Sócrates. Os tiranos prenderam e torturaram Sêneca querendo que ele se renegasse enquanto filósofo, mas Sêneca se manteve fiel a si mesmo, mesmo ao preço de sua vida. Espinosa sofreu as maiores ameaças por se ter convertido à filosofia, porém essas ameaças não o fizeram trair a filosofia, mesmo quando ele passava por dificuldades financeiras e lhe ofereceram um cargo para ser professor em uma importante universidade de então. Porém, colocaram uma condição: que ele , lecionando, não fosse tão filósofo, ou seja,  que seu filosofar fosse exercido sob certos limites , acatando  os dogmas religiosos e subordinando-se aos poderes conservadores da política de então. Espinosa, claro, recusou .

A conversão à filosofia, portanto, nada tem a ver com um processo de escolha profissional pesando oportunidades de emprego e ganhos salariais, tampouco é algo que leve em conta as “tendências do mercado de trabalho à luz das  exigências das novas tecnologias...”

É claro que a sobrevivência material é relevante, porém mais importante ainda é a sobrevivência como filósofo/filósofa, o que requer também perseverança e coragem. Nesse sentido, a história da filosofia está repleta de casos nos quais os filósofos sobreviviam materialmente realizando atividades as mais diversas, mas sem deixarem de ser filósofos. Espinosa, por exemplo, polia lentes...

A conversão não é uma escolha puramente racional ou intelectual levando em conta cálculos e probabilidades de sucesso ou insucesso. Ela é um processo intenso  e plural,  que envolve fatores afetivos, existenciais , sensórios e até mesmo inconscientes. Não é um processo que acontece, passa e vira passado. Ao contrário, é um processo sempre atual, mas sem perder a virtualidade de horizontes sempre abertos. E é por isso que a conversão à filosofia também é uma conversão à ideia de que o saber nunca está acabado, pronto, imutável. E desse processo também nasce a percepção de que o conhecimento nada é se não for, ao mesmo tempo, um processo de autoconhecimento.

Plotino traduzia  o processo de conversão à filosofia com a seguinte imagem, ao mesmo tempo filosófica e poética: “Nunca termine de esculpir tua própria estátua.”

 

“Só escrevo meus nascimentos.” (Manoel de Barros)

 

“Hoje se toma por sonhador aquele que vive o que ensina .” (Pierre Hadot)

 

“A filosofia transformada em livros deixou de instigar os homens. O que nela existe de insólito, de quase insuportável, se escondeu na vida decente dos sistemas.”( Merleau-Ponty)

 

 

Este livro é uma das referências deste texto que escrevi:




 

 



[1] Por Elton Luiz.

[2] Pierre Hadot , Exercícios espirituais e filosofia antiga.  São Paulo , É Realizações, 2014 ( Parte IV: Conversão).





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