A CONVERSÃO FILOSÓFICA – CONHECIMENTO POR PROGRESSÃO E CONHECIMENTO POR CONVERSÃO[1]
O filósofo Pierre Hadot[2] ensina
que a ideia de “conversão” tem uma origem filosófica. Somente depois é que o
cristianismo se apropriou da ideia e da prática da conversão, dando-lhe
finalidades diferentes das filosóficas.
A palavra “conversão” significa “voltar-se
para”. Mas não se trata de qualquer “voltar-se”, uma vez que diz respeito a um
redirecionamento , ou seja, de um mudar de caminho que produz mais do que uma mudança,
produz uma transmutação.
Portanto, não é um
voltar-se para qualquer coisa, é um voltar-se para algo que suscita a
transmutação. Plotino dizia que os brotos se voltam para o sol para
desabrocharem. Os peixes se voltam para a fonte do rio onde nasceram , e retornam
à fonte para fecundarem. Manoel de Barros, por sua vez, dizia que sua poesia
nasce de uma “Origem que renova”, e é para essa Origem que todo verso dele novo
se volta. Não por acaso, na palavra conversão existe o termo “verso” nesse
sentido de um voltar-se para a realidade que o cria, e permanecer-lhe ligado. Na
Caverna de Platão, o primeiro prisioneiro se liberta ao voltar-se mais do que
para a entrada da caverna: ele se voltou para a Luz que vinha de fora daquele
mundo em penumbra. E foi assim que ele se converteu à filosofia, fez-se
filósofo.
Enquanto conversão, a
filosofia não é só um discurso, ela é , antes de tudo, uma prática: uma prática de construção de uma
vida filosófica. Uma vida filosófica não é exatamente uma vida livresca,
tampouco uma vida que apenas filósofos vivem. Pois a conversão à filosofia é
uma conversão à vida, uma conversão a si mesmo. Como ensina Nietzsche:
“torna-te o que tu és”.
Os estoicos diziam que há
duas maneiras de se obter conhecimento:
por progressão e por conversão. O
conhecimento por progressão é identificado ao ensino formal exercido em
escolas e academias . Nesse tipo de
ensino, o conhecimento é passado como se fosse uma escada com vários degraus
ascendentes: o primeiro degrau, nos nossos tempos, é o da educação infantil. Depois, o ensino
fundamental , seguido pelo ensino médio
até chegarmos ao degrau do ensino superior, a faculdade. E a faculdade possui
ainda degraus a serem subidos por quem ingressa nela. Esses degraus são o
primeiro período, o segundo, o terceiro...até chegar ao último período. Para
quem quiser prosseguir nessa progressão , existe ainda o degrau do mestrado,
acima deste o degrau do doutorado, até alcançar ao último degrau: o
pós-doutorado. É um questão de tempo até
inventarem um novo degrau ainda mais acima do pós-doc...Não que esse
conhecimento por progressão seja infinito. Ao contrário , ele é hierarquizado como
uma pirâmide: o acréscimo de mais um patamar no alto da pirâmide não a torna
infinita, apenas aumenta o seu tamanho, ao mesmo tempo em que diminui o número
daqueles que podem alcançar seu topo.
O que caracteriza também o ensino por progressão é que aquele que sobe
a escada, o aluno, deve ser conduzido por aquele que já a subiu no passado, o
professor. Inclusive, o professor tem o poder institucional de conduzir o aluno
a um degrau superior, no caso da aprovação, ou de manter o aluno no mesmo
degrau, se o aluno não tiver desempenho suficiente para passar de ano. E o
aluno , se quiser, pode mudar de faculdade
, ou ainda de curso , ou mesmo abandonar o estudo, caso decida ou precise ( por
questões de saúde ou trabalho, por exemplo).
Porém, não acontece o
mesmo processo com a aquisição de conhecimento por conversão. A conversão não é
uma subida de degraus, ela não é apenas um aperfeiçoamento do intelecto. Ela
não é a subida de uma pirâmide, parecendo-se mais com o achar um caminho que
leva ao horizonte aberto. A conversão é uma mudança de vida , sem que haja
entre a nova vida e a antiga uma linha reta, um roteiro ou uma ponte.
A conversão se assemelha
mais a um salto, um salto realizado dentro de nós, mas que tem efeitos na nossa
relação com o mundo fora de nós. Todo salto tem seus riscos, sem dúvida. Esse
salto se parece com o que Deleuze e Guattari chamam de desterritorialização . A
desterritorialização é uma linha de fuga de um território existencial dado ,
seguida de uma reterritorialização em novo território que não está dado, pois
precisa ser criado. A desterritorialização é um voltar-se para a criação, ir em
sua direção para assim encontrarmos a nós mesmos, singularizados.
A filosofia pode ser
estudada como um processo de progressão, sem dúvida. Mas a filosofia é,
sobretudo, um conhecimento que se conquista por conversão. Talvez aconteça o
mesmo com quem se torna músico, pintor, poeta, enfim, artista. E mesmo que seja
em outras formações acadêmicas ( medicina, psicologia, biologia, museologia,
comunicação...), creio que somente se converte à tal prática quem também seja,
além de técnico, um artista-pensador em
sua área. E quem , além de técnico, também é um artista-pensador em sua área de atuação , sempre busca a
filosofia como um meio de potencializar ainda mais seu pensamento e prática,
não importando qual seja sua faculdade de formação.
Muitas vezes a conversão à
filosofia acontece antes de se adentrar à faculdade de filosofia. A minha
conversão à filosofia, por exemplo, aconteceu bem antes de eu cursar a
faculdade de filosofia. Não foi uma escolha que fiz, mas a descoberta de uma
necessidade, um descobrir quem eu era.
A filosofia como
conhecimento por progressão nos coloca em um processo de formação profissional
e obtenção de títulos. Mas a conversão filosófica é uma conquista de
autenticidade existencial .
As provas e exames
realizados no ensino por progressão aferem a inteligência, porém as provas que
envolvem o conhecimento por progressão são provas éticas e existenciais, uma
vez que situações da vida põem à prova a condição de filósofo: são provas nas
quais seremos testados por nossas ações.
Como dissemos, às vezes
alguém pode trocar de faculdade ou mesmo abandonar os estudos, mas quem se
converte realmente à filosofia jamais a abandona, mesmo na doença ou nas
dificuldades materiais, pois isso equivaleria a abandonar a si mesmo. O júri
que julgou Sócrates queria que ele abandonasse a filosofia para assim salvar
sua vida, porém Sócrates recusou, uma vez que se fosse retirada a filosofia de
sua vida, nada ficaria, nem mesmo Sócrates. Os tiranos prenderam e torturaram
Sêneca querendo que ele se renegasse enquanto filósofo, mas Sêneca se manteve
fiel a si mesmo, mesmo ao preço de sua vida. Espinosa sofreu as maiores ameaças
por se ter convertido à filosofia, porém essas ameaças não o fizeram trair a
filosofia, mesmo quando ele passava por dificuldades financeiras e lhe
ofereceram um cargo para ser professor em uma importante universidade de então.
Porém, colocaram uma condição: que ele , lecionando, não fosse tão filósofo, ou
seja, que seu filosofar fosse exercido
sob certos limites , acatando os dogmas religiosos
e subordinando-se aos poderes conservadores da política de então. Espinosa,
claro, recusou .
A conversão à filosofia,
portanto, nada tem a ver com um processo de escolha profissional pesando
oportunidades de emprego e ganhos salariais, tampouco é algo que leve em conta
as “tendências do mercado de trabalho à luz das exigências das novas tecnologias...”
É claro que a
sobrevivência material é relevante, porém mais importante ainda é a sobrevivência
como filósofo/filósofa, o que requer também perseverança e coragem. Nesse
sentido, a história da filosofia está repleta de casos nos quais os filósofos sobreviviam
materialmente realizando atividades as mais diversas, mas sem deixarem de ser
filósofos. Espinosa, por exemplo, polia lentes...
A conversão não é uma
escolha puramente racional ou intelectual levando em conta cálculos e probabilidades
de sucesso ou insucesso. Ela é um processo intenso e plural, que envolve fatores afetivos, existenciais ,
sensórios e até mesmo inconscientes. Não é um processo que acontece, passa e
vira passado. Ao contrário, é um processo sempre atual, mas sem perder a
virtualidade de horizontes sempre abertos. E é por isso que a conversão à
filosofia também é uma conversão à ideia de que o saber nunca está acabado,
pronto, imutável. E desse processo também nasce a percepção de que o
conhecimento nada é se não for, ao mesmo tempo, um processo de
autoconhecimento.
Plotino traduzia o processo de conversão à filosofia com a
seguinte imagem, ao mesmo tempo filosófica e poética: “Nunca termine de
esculpir tua própria estátua.”
“Só escrevo meus nascimentos.” (Manoel de Barros)
“Hoje se toma por sonhador aquele que vive o que ensina .”
(Pierre Hadot)
“A filosofia transformada em livros deixou de instigar os
homens. O que nela existe de insólito, de quase insuportável, se escondeu na
vida decente dos sistemas.”( Merleau-Ponty)
Este livro é uma das referências deste texto que escrevi:
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