Aconteceu lá no começo das eras
: talvez tenha sido uma criança que, brincando, pegou uma
semente que recolheu da floresta e a plantou em um pedaço de
terra próximo de onde morava. Depois, os adultos tiraram proveito, substituindo
a brincadeira e o lúdico pela dominação técnica da natureza .
Antes, a planta crescia livre ,
sem cercas . Agora ela era cultivada pelos homens que a
desterritorializaram de um espaço livre e a
reterritorializaram em uma terra cercada . Foi assim que nasceu a
agricultura: com a domesticação do que antes crescia e vivia livre na natureza
“Domesticar” significa
: “colocar sob o poder de um domicílio”. Mas não era apenas a
planta que era assim domesticada, pois junto com
ela também era domesticada outra realidade .
O homem de então
percebeu que a planta nasce, cresce , dá frutos
e morre. Houve a compreensão de que a planta existe
dentro de um período com fases e ciclos. O homem deu um nome para essa
realidade feita de ciclos: ele a chamou de “tempo”.
Depois, o
homem abstraiu o tempo do cultivo empírico das plantas,
ficando apenas com a ideia de ciclo , estendendo-a ao
cosmos e a si mesmo. E assim se
viu criança, adulto e idoso. Ele percebeu que sua vida
tinha ciclos, como a vida da planta. Compreendeu que ele era nascimento, vida e
morte.
A domesticação do tempo
ensejou também a descoberta do domicílio onde mora o homem: enquanto
os deuses moram na eternidade, o homem tem por morada o tempo. Assim como a
planta domesticada passou a viver dentro de cercas, o relógio se tornou a
cerca que limita o tempo domesticado.
Mas a domesticação da planta não
fez morrer as florestas nas quais as plantas vivem livres, do mesmo modo que a
domesticação do tempo não eliminou o seu existir não
domesticado enquanto duração para além do relógio.
Esse tempo não
domesticado e livre é o que alguns filósofos chamam de
“devir”. O devir está para o relógio assim como a floresta está para
a agricultura, ou como a poesia está para a linguagem: como
realidade não domada, livre, que nenhuma cerca simbólica domestica.
Não é por acaso que o “Mercado” prega
que “tempo é dinheiro”, pois os juros nada mais são do que nosso tempo de vida
sendo vampirizado pelo capital.
Já a duração-devir somente pode ser experimentada
se cultivarmos em nós um olhar livre de cercas, tal como o têm a criança e o
indígena. A duração-devir expressa um valor que não pode ser medido por moeda
ou dinheiro.
Enquanto os mercadores do
tempo vivem olhando para o relógio, indígenas, crianças e
poetas vivem a olhar para as estrelas, e por elas se orientam.
Na mitologia, o tempo do relógio
é chamado de Cronos, a divindade que a todos devora, ao passo que a
duração-devir atende por Aion, que
era simbolizado por uma criança que brinca.