sábado, 27 de julho de 2024

devir-amendoeira

 

Espinosa dizia que a filosofia não é uma reflexão sobre a morte, e sim sobre a vida, sua  pluralidade e potência . A Vida nunca termina: ela se metamorfoseia.

Certa vez , conversando  com uma amiga, partilhei com   ela como eu gostaria que fosse a metamorfose que me fizesse permanecer na Vida.

Não ambiciono outra vida no “Além”. Queria continuar numa vida que vicejasse aqui no seio da Mãe-Terra, como a vida verdejante de uma árvore.

Amo livro e árvores. O livro é para a  árvore o mesmo que a borboleta é para a  lagarta: pois o  papel que um dia foi árvore , no livro ele ganha as asas da palavra.

Contudo, para quem escreve um livro a continuidade conquistada é apenas “letral”, porém  metamorfosear-se  numa árvore é fazer parte do  Livro da Vida.

Como amo viver, espero que ainda esteja muito distante o meu “desacontececer”  ( “desacontencer” é criação de Manoel de Barros ). Mas quando eu “desacontecer”, não quero  ir para debaixo do chão. Prefiro que envolva meu corpo o fogo de que fala  Heráclito , fogo-arquetípico da Vida Imortal.

Assim, não é ao nada das cinzas  que serei reduzido, e sim ao que houver  em  mim de sumo e adubo. Depois quero ser lançado nas raízes de uma amendoeira , ser sorvido por ela e dela fazer parte. Pois a amendoeira é a árvore de que mais gosto.

A amendoeira é prima das oliveiras, e veio clandestina do Oriente  como semente  incrustada na madeira de uma  nau portuguesa que atravessou os oceanos. Nas terras sábias do Oriente, onde  Sherazade  derrotou o poder ameaçador do Sultão, a amendoeira era conhecida como “a árvore mais resistente”.  

Mas não desejo ser lançado nas raízes de uma  amendoeira vivendo em terreno cercado com dono e proprietário, nem quero que seja  uma amendoeira perto de estradas por onde passam carros neuróticos , apressados. Também prefiro que não seja  uma amendoeira isolada,  inalcançável .

Queria então que fosse meu  novo corpo  uma amendoeira que fizesse parte da Floresta da Tijuca, um espaço amplo , horizontado, sem cercados.

Não queria que fosse     uma  amendoeira perto de trilhas muito frequentadas, prefiro uma  amendoeira que somente poderá ser encontrada  por aqueles que amam descobrir caminhos novos: e que a estes a amendoeira possa oferecer sombra e  proteção .

Entrarei pelas raízes e atravessarei o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos  até alcançar  a verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de bem-te-vis e  pardais, para quem sabe me tornar um deles e pôr para correr os carcarás...

E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas: que a lápide  seja  apenas a amendoeira florescendo em maio, mês em que nasci.

 

 

“Sou tua árvore da guarda e simbolizo teu outono pessoal.

Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura.”

( esta epígrafe que escolhi para o texto que escrevi é de  “Fala, amendoeira”, de Drummond)

 

(imagem: “Amendoeira em flor”/ Van Gogh)



“Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de
sol, de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus.
Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul.
E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só serve pra poesia.
No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara,
envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros
E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore
porque fez amizade com muitas borboletas.”

( “Árvore” / Manoel de Barros)





domingo, 21 de julho de 2024

A virtude da amizade e a filosofia , segundo Espinosa.

 

Segundo Espinosa, nós só conseguimos vencer alguma coisa que , de fora, tenta nos diminuir e apequenar se dentro de nós já houver algo que nos engrandece. Para Espinosa , o amparo interno para nos  fortalecer tem um nome: virtude.

A virtude é a força criativa e  ativa que nasce do desejo: a virtude é o afeto em ação. A virtude não é apenas o afeto que se sente, ela é o afeto que ganha braços e pernas para pôr-se em ação.

A virtude não é uma força que surge e logo depois desiste e desaparece. Pois quanto mais potente é a virtude, mais ela é perseverante. Perseverar não é esperar que venha até nós o que desejamos, perseverar é o exercício de caminhar sobre as pernas do desejo que se faz ação e segue em frente. “O andarilho abastece de pernas as distâncias”, ensina Manoel de Barros , nisso poetizando as lições de Espinosa.

Espinosa se difere muito da maneira tradicional de se falar do tema das virtudes. Essa palavra vem do termo latino  “virtu”, que significa “força”, porém não qualquer força.

Virtu é a força potencial, é a força da potência criativa. Por exemplo, quando se quer lançar uma flecha, é preciso tensionar a corda do arco. Quando se deseja produzir música com o violão, é necessário tensionar as cordas do violão. E mesmo nosso coração só consegue impulsionar o sangue que o atravessa porque suas fibras são tensas.

Originalmente, “virtu” era o nome que se dava a essa força intensa que nasce de uma fibra. Daí vem a expressão popular: “nada somos ou fazemos, se não tivermos fibra.”

 “In-tenso”: “ir para dentro da tensão”. Assim, ser intenso não é ser nervoso ou agitado. O monge meditando vive uma intensidade, embora não esteja se agitando. Há silêncios intensos ( como nos filmes de Kurosawa ou Ozu). Dessa maneira , a virtude é uma intensidade capaz de  lançar ao horizonte aberto nossas ações e palavras como flechas.

As virtudes são intensidades que aumentam a potência de pensar da mente e a potência de agir do corpo, pois a virtude é o desejo intensificado de vida. A virtude, enfim, é a potência prática e ética que enfrenta as tiranias, não importa quais sejam.

Para Espinosa, uma das principais virtudes é a amizade. Ela é o afeto que está na base da filosofia. Por isso,  a amizade  anda de mãos dadas com outra virtude: o conhecimento que se partilha.

Ontem foi o Dia da Amizade. Este texto é um abraço que envio às amigas & amigos , presenciais e virtuais. E que essa Virtude-Potência nunca deixe de nos dar a necessária fibra .


(Este livro é apenas uma sugestão, porém falta Espinosa nele...)






sábado, 20 de julho de 2024

A filosofia como construção de um modo de vida

 

A filosofia não é apenas teoria. A filosofia também é desejo de produção de um modo de vida ao  mesmo tempo não servil  e não autoritário , e só a mera teoria  não consegue isso.

Por isso, alguns filósofos enfatizam certas condutas a aprender. Assim é, por exemplo, a "exortação" nos estoicos, ou a “consolação” em Boécio, ou a "crítica" em Nietzsche, ou ainda a "fortaleza" em Espinosa.

Talvez tenhamos perdido essa dimensão existencial da filosofia , mais “clínica” e política do que teorética e acadêmica.

De todas as condutas  filosóficas a aprender para  fazer dela uma prática, talvez a mais necessária seja a “edificação”. É sobretudo em Epicteto que a edificação alcança sua máxima necessidade: quando se está perdido, “sem chão e sem teto” , a edificação é a mais necessárias das artes a aprender, dela dependendo nossa sobrevivência em épocas de terror e ocaso, como foi aquela em que viveu Epicteto, muito parecida com os dias que correm.

A ideia de “edificação” vem da arte de construir. Em toda edificação, seja a de um “edifício” ou a de si próprio, deve-se tornar concreto um desejo para pôr de pé mais do que paredes.

Pois edificar não é fazer subir  muros apenas. Edificar é pôr de pé uma morada, um espaço ao mesmo tempo físico e afetivo, corpóreo e mental; um espaço onde se habita, se vive, se resiste, se congrega e se recebe os amigos para partilhas de alimentos para o corpo e para a mente; para assim     descansarmos das lutas  de ontem e  renovarmos as forças para as lutas de amanhã, sem deixarmos de cultivar  a perseverante alegria que ensina Espinosa, dela fazendo  nossa “fortaleza”.

No deserto, precisamos edificar oásis; ante a ignorância,   fronts em defesa do conhecimento. E quando nos querem servilizar, são Quilombos que precisamos edificar , dentro e fora de nós.

Edificar é a arte de pôr de pé. Quando rastejar, curvar, prostrar , ajoelhar...são os comportamentos servilmente adaptados a esta sombria época, edificar-se é fazer-se morada sempre aberta onde a insubmissão pensante e atuante possa abrigar-se e manter-se viva . Para Epicteto, "edificação" é o verdadeiro nome da educação autêntica.

Um povo  somente se põe de pé  se o seu projeto maior for edificar creches, escolas e universidades, e não  bancos, quarteis e templos.        

O poeta  Manoel de Barros  edifica poesia à maneira de um  ninho protetor :“Os raminhos com que arrumo as escoras do meu ninho  são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo.”

O olhar originário de outro poeta nos mostra que a própria natureza ensina a edificação:

“Erguer-se... como se ergue

a aurora do seio da noite.”

(Homero, “Ilíada”)


 

( Este livro é apenas uma sugestão)






sexta-feira, 19 de julho de 2024

Sêneca, Foucault e Espinosa: a coragem filosófica

 

Em suas Cartas a Lucílio, o filósofo estoico Sêneca procura exortar Lucílio a retornar à vida filosófica. Lucílio havia abandonado a filosofia para se dedicar à política, e estava quase se perdendo na mera busca egoica por fama, prestígio e poder[1]. Então, Sêneca procura exortar Lucílio à vida filosófica.

 Exortar é buscar despertar em alguém a coragem. E para exortar alguém à vida filosófica não se deve falar apenas de “sistemas” , “lógica”, “raciocínio” , isto é , das abstrações do intelecto. Para exortar, é preciso falar dos afetos e das situações concretas da vida nas quais estão envolvidos nosso querer , nosso desejo ,   nossas ações e escolhas.

Há ecos dessa questão em um belo curso de Foucault denominado A coragem da verdade. Não a verdade no sentido epistemológico de adequação ( adequatio) da mente à coisa, mas verdade enquanto produção de uma vida autêntica. Para Foucault , mais do que a “philia” ( o “amor”) , a filosofia pede coragem para ser vivida como modo de vida autêntico.

Além do exemplo dos estoicos e epicuristas que exerceram e ensinaram essa coragem, Foucault também cita Espinosa como aquele que viveu com a coragem que a vida filosófica pede. Por isso, não se compreende bem Espinosa apenas se atendo formalmente  ao seu raciocínio geométrico. Para compreender bem Espinosa e as implicações concretas do que ele diz , é preciso criar ouvidos para ouvir as exortações que ele nos endereça  sob a roupagem geométrica .

 









[1] Temática semelhante é abordada  por Espinosa no livro Tratado da emenda do intelecto. Mas Espinosa não se endereça a alguém em particular, a um “Lucílio”. Ele exorta  a ele mesmo primeiro para que ele possa, com seu exemplo de coragem , exortar  a  todos nós.

sábado, 13 de julho de 2024

O tato

 

Dos cinco sentidos que possuímos , o tato é o mais ancestral. Muitos seres vivos não têm olhos e nem ouvidos, porém possuem algum tipo de tato. Pois não existe ser vivo que não possua tato. É pelo tato que o ser vivo toca e é tocado.

De tato  vem “contato” enquanto “tato mútuo”.  Não só os corpos fazem contato quando se abraçam, também fazem contato as almas quando se entendem mutuamente.

A palavra “afeto” se origina de um verbo latino que significa “ser tocado”. Assim, o afeto é uma questão de tato: tato consigo, tato com os outros, tato com o universo. Muitas vezes, não basta ter olhos e ouvidos para compreender uma situação, é preciso ter tato.

Solidariedade, tolerância, justiça, conviver democrático das diferenças...Tudo isso pressupõe , primeiramente, tato social. Ser empático, por exemplo,  é ter a sensibilidade tocada pela existência do outro, já a falta  dessa forma de tato humano caracteriza  os psicopatas.

De tato também vem “intuição”. Pois enquanto a “dedução” é um procedimento lógico-abstrato, a intuição é um contato imediato e concreto com  realidades externas e  internas.

Todos os outros sentidos vieram do tato. O gosto, por exemplo, é o segundo sentido mais ancestral, e nasceu também do tato. Sentimos  o gosto quando algo toca/afeta nossa língua e boca.

Não por acaso, “saber” vem de “sabor”. Há ideias que a gente consegue sentir o gosto delas, se são alimento ou veneno. E ninguém descobre a importância do ler e do pensar se não desenvolver, antes, o gosto pela leitura e pelo pensar. Pois o gosto não é algo meramente teórico, o gosto está envolvido com nossa vida e nossas ancestralidades  corpóreas .

Mesmo a visão, considerada o sentido mais intelectual e espiritual, mesmo ela nasceu do tato! Isso aconteceu há milhões de anos , e tem por personagem  um ancestral nosso que vivia debaixo d’água. Ao ser afetado/tocado pela luz, esse ancestral conseguiu fazer com que parte da pele dele se especializasse em sintetizar as ondas luminosas. Ele passou essa capacidade  para seus descendentes e, com a evolução, surgiu  uma abertura ao mundo visível:  nasceu a visão. Sem a inventividade desse ancestral submerso nas cristalinas águas, não teria podido  surgir Platão e sua contemplação do Mundo Celeste...

Ninguém melhor do que Clarice Lispector compreendeu essa potência  inesgotável do tato enquanto “(re)descoberta do mundo”.

Ela dizia que escrever não é retirar de dentro da cabeça ideias prontas  já conhecidas e pensadas. Escrever é pôr-se na ponta dos pés, elevando-se o máximo possível , mas sem perder o con-tato com a terra.

Depois , esticar os braços e mãos o máximo que pudermos , para  com a ponta dos dedos do pensamento tocar e colher, com o tato do afeto, o fruto que nasceu da árvore mais alta, e que parecia, aos olhos,  inalcançável.

 

 

“É pelo tato que a fonte do amor se abre.”(Manoel de Barros)


“A visão  é o tato do espírito”.  (Fernando Pessoa)




 




-Os versos recitados por Bethânia são partes do poema “A defesa do poeta”, da poeta portuguesa Natália Correia.

 

sexta-feira, 12 de julho de 2024

"Nós, os bruxos..."

 

Certa vez , um antropólogo inglês visitou a tribo de um povo habitante da África. Ao entrar na habitação do pajé  da tribo , o antropólogo viu a seguinte cena:  havia uma máquina de escrever pendurada na parede como se fosse  um objeto artístico, um "desutensílio", diria o poeta  Manoel de Barros.

O antropólogo nada perguntou ou disse. De volta a Londres, o antropólogo consultou livros e tratados para ver se achava explicação teórica para a  ação subversiva do pajé .

 De repente, o antropólogo  olha para a parede de sua biblioteca e vê um arco e flecha pendurados como enfeite...Então, o acadêmico  compreendeu que o ato subversivo que o pajé fez explicava de forma criativa e crítica, mais do que toda teoria, o ato colonialista  que o próprio antropólogo fizera com o arco e flecha raptados da cultura originária.

Àquela época, por volta de 1950, a máquina de escrever era o objeto-símbolo do meio intelectual-acadêmico. Porém, o ato do pajé fez o antropólogo pensar em coisas que ele nunca pensou e  escreveu com sua própria máquina de escrever.

Graças ao ato artístico-decolonial  do pajé-feiticeiro-bruxo, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos eurocentrados.

 Todo objeto é fruto de uma prática social-simbólica. Por trás de todo objeto, mesmo de um celular de último tipo, existe uma prática social que o mercado escamoteia ao transformar o celular  em mero objeto de culto consumista, que “humaniza” o objeto ao mesmo tempo que “coisifica” o ser humano.

Não apenas os objetos são resultados de uma prática social-simbólica: os conceitos e ideias  com os quais pensamos o mundo e  a nós  mesmos também o são.

O indígena era o “outro” do branco, mas o branco também era o “outro” do indígena. Nem todos são brancos, nem todos são indígenas, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal.

 É essa universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal” ( “mesmal” é como  o poeta Manoel de Barros define a “antipoesia”).

Para conseguirmos enxergar o que nos faz humanos nessa época trevosa, na qual até a b4rbárie é tecnológica,  só mesmo redescobrindo em nós  um  olhar ancestral que nos conecte, com a mente e com o corpo,  à natureza (a mesma que ensina o pajé Espinosa). Para que nossas  palavras sejam como  arcos e flechas em ação de resistência e defesa da tribo, e não  mero enfeite teórico em livros.

Pois nada é mais contrário ao olhar vestido com uniformes do fascista do que o olhar nu e livre do indígena.

 

 

 "Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios.

Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.”

(Manoel de Barros)

 

“Aprendi com os poetas da tribo.”

(Krenak)







sexta-feira, 5 de julho de 2024

eros, psiquê & manoel

 

Eros primeiro  amou Afrodite, achando que Afrodite era tudo; até que Eros  conheceu Psiquê, esquecendo de imediato Afrodite. No início ,   Eros foi só de Afrodite;  depois  esqueceu Afrodite e passou a ser só de Psiquê. Com isso, Eros  produziu  tristeza em Afrodite , ao mesmo tempo que mantinha Psiquê ignorante de que ele já havia amado, e muito, um outro ser.

Por isso, Eros fazia de tudo para que Afrodite e Psiquê se ignorassem, como se a alegria de uma fosse a dor da outra, de tal maneira que a felicidade de ambas ele não poderia oferecer.

Na mitologia, Eros é o Amor, Afrodite simboliza o Corpo, enquanto Psiquê é a Alma.  Assim, os gregos achavam que o Amor não pode amar, ao mesmo tempo, o Corpo e a Alma.

O Corpo proporciona  prazer ao Amor, enquanto a Alma lhe faz nascer a Sabedoria ( Sophia). “Prazer” em grego é “hedon”, de onde nasce “hedonismo”. Ou o Hedonismo ou a Sabedoria:  essa deve ser, segundo os gregos, a escolha que a parte de nós que ama deve fazer.

Platão, por exemplo, fez da escolha exclusiva do Amor pela Alma a base de sua filosofia, ao mesmo tempo condenando o Corpo como não tendo, para o pensar, nenhuma serventia. Para Platão, filosofar é aprender a morrer.

Assim como Espinosa, Plotino não concordava com essa visão dicotômica opondo corpo e alma, sensibilidade e sabedoria. Segundo Plotino, a função maior do Eros-Amor , a sua utilidade suprema , não é escolher entre a Alma e o Corpo, mas fazer a Alma e o Corpo unirem-se um ao outro para viverem o ato de pensar  como paixão  pelo viver.

Em Plotino, assim como em  Espinosa, o amor não é um sentimento meramente subjetivo ou romântico. Segundo sua etimologia poética, “amor” nasce  da união da letra  “a” com função restritiva ( como em “a-fasia”: “não fala”) mais a abreviação da palavra morte ( por razões de métrica, às vezes os poetas latinos escreviam “mor” em vez de “morte”). Assim, em seu sentido originário “amor” é “não morte”, nos vários sentidos que a morte pode ter.

Amar a educação, por exemplo,   é agir  pela não morte dela ( o projeto de escola militar-fundamentalist4 representa  a morte da educação); amar a vida digna, tanto a pessoal quanto a coletiva, é agir pela não morte da democracia  (o autorit4rismo político é a morte da vida digna).

É um amor assim, antídoto contra toda forma de morte,  que também ensina  o poeta Manoel de Barros, que dizia: “Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós.”


                                                 ( este livro é apenas uma sugestão)


A versão de Fernando Pessoa na voz de Bethânia:








quinta-feira, 4 de julho de 2024

O hábito em Proust

 

                                                 O HÁBITO EM PROUST[1]

 

No belo livro que escreveu sobre Proust[2], Beckett enfatiza um tema  : o Hábito. “O Hábito, afirma Beckett citando Proust, é uma segunda natureza.”[3] Essa segunda natureza criada pelo Hábito, porém, gera uma ignorância acerca da primeira. Não é apenas uma ignorância intelectual, não é uma ignorância por carência de leitura de livros; antes de tudo , é uma ignorância que despotencializa o existir, mesmo o existir  de um intelectual[4].

Beckett emprega uma passagem de Proust como fio condutor de sua exposição: dominados pelo Hábito, somos como turistas cujo conhecimento das paisagens que nunca vimos depende do papel desempenhado pelo guia turístico. Assim, não conhecemos a paisagem diretamente com nossos próprios olhos e sensibilidade, e sim mediante o crivo do guia turístico: ao invés de ser um meio para conhecermos a paisagem nova, o guia turístico se torna um fim nele mesmo .

Segundo Beckett, esse guia turístico é o Hábito: ele se interpõe entre a realidade ( a “primeira natureza”) e nós mesmos, impedindo que experimentemos com toda abertura e intensidade a realidade. O Hábito cria conceitos e preconceitos que nos impedem de ver como a realidade de fato é em sua singularidade, novidade e , também, estranheza.

 Manoel de Barros dizia que o estado mental   contrário ao da poesia é o “mesmal”. O “mesmal”  é a venda do Hábito que cega mais do que olhos: cega a mente.

Há uma famosa passagem de Proust na qual ele diz : “Mais importante do que viajar para ver paisagens novas , é ver de forma nova a paisagem habitual.” Para Proust, o Hábito é a antítese do ato criativo, e, por esse mesmo motivo, o Hábito é o inimigo do pensamento.

O pensar só consegue ser despertado quebrando-se o mecanismo do Hábito. Nesse sentido, pensar nunca é um hábito, pensar é  uma atividade  sempre extemporânea, disruptiva,  inabitual . Em Proust, o pensar é despertado junto com o sentir diante de situações que quebram o poder do Hábito (e da memória voluntária que dele nasce e lhe está subordinada).

Nesse sentido proustiano, pensar é oposto do ato de “recognição” colocado por Kant como pedra angular do processo de conhecimento. Segundo Kant, e aqui abrevio bastante uma questão por demais complexa, todo ato de perceber envolve uma forma e um conteúdo. A forma vem do sujeito, enquanto o conteúdo provém do mundo. Por exemplo, quando percebemos um objeto diante de nós e afirmamos “Este objeto é uma cadeira”, aplicamos sobre o objeto um conceito: o de “cadeira”. O conceito é uma forma inerente ao entendimento do sujeito , conceito esse que determina a imagem da cadeira individual que percebemos. Kant quer nos dizer que, do ponto de vista lógico-gnosiológico,  é o conceito, a forma, que vem primeiro , embora do ponto de vista da experiência empírica seja a cadeira individual que parece vir antes. Quando percebemos um objeto, na verdade o inteligimos conforme um conceito do entendimento que o determina como sendo isto ou aquilo, no espaço e no tempo. Para Kant, enfim, conhecer é reconhecer: toda cognição é, em verdade, uma re-cognição, um re-conhecimento[5].

A experiência de pensar em Proust afirma exatamente o contrário: pensar é experimentar o nunca visto no seio mesmo daquilo que vemos e experimentamos: ver, com olhos nunca vistos, o inabitual no coração do habitual.

Na Conclusão do livro  O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari citam o escritor Lawrence que faz uma afirmação que tem ecos proustianos: Lawrence diz que muitas vezes os homens constroem um “guarda-sol” que colocam sobre a cabeça para se protegerem do “caos”[6]. Então, sob o guarda-sol  eles desenham um céu reconhecível  e põem nele um Deus à sua imagem e semelhança. Mas o artista é aquele que fura esse guarda-sol para que um pouco da luz do caos possa entrar.

 O Hábito e a Recognição são como esse guarda-sol  reativo : são padrões que têm a pretensão de nos proteger de algo que o senso comum vê como ameaça ao seu  “mesmal”. E, de fato, há certo perigo nessa realidade que não se reduz ao Hábito e à Recognição. Porém, afirma Beckett , é nessa realidade estranha, desterritorializada e desterritorializante , que não está em Marte ou alhures, mas aquém  dos Hábitos e Recognições, é nessa realidade que também se podem encontrar belezas, potências e (re)descobertas. Pois é desse lugar inabitual que nasce o tempo. Não o tempo que passa e se torna “tempo perdido”, não o tempo  do relógio e seus utilitarismos habituais;  mas o tempo vital que somente se vive  ao modo de uma disruptura, de uma (re)criação, enfim, de uma (re)descoberta: dele e de nós mesmos.



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

 [2] BECKETT, Samuel. Proust. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

[3] Proust, p. 21.

[4] Para Proust, o artista-pensador não é um “intelectual”, isto é, um profissional do mero intelecto.

[5] De certa maneira, Kant retoma e modifica o tema da “reminiscência” em Platão ( “conhecer é lembrar-se”, afirma o filósofo grego).

[6] “Num texto violentamente poético, Lawrence descreve o que a poesia faz: os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda (...).” ( O que é a filosofia ?, p. 261)