sexta-feira, 19 de abril de 2024

empoemamentos originários

 

A palavra “mitologia” tem dois sentidos: 1- conjunto dos mitos produzidos por um povo ( e não apenas pelo povo grego); 2- estudo dos mitos. Infelizmente, nenhum desses dois sentidos traduz a experiência originária dos povos que viveram e criaram os mitos, pois são sentidos  teóricos nascidos bem depois daquela experiência originária.

Devido ao desconhecimento dessa experiência originária com o sentido da vida e da existência  , muitos hoje desdenham da mitologia, e consideram que é mais “útil” ensinar aos jovens “cartilhas técnicas” e “tabuadas”  que adestrem para  o mercado.

Assim, “mitologia” ou “mito” não são  bons  nomes para designar a experiência originária que vários povos fizeram, e fazem, para darem sentido à existência pessoal e coletiva. Em vez de “mitologia” ou “mito”, prefiro empregar o termo “empoemamento originário”.

É Manoel de Barros quem ensina que poesia não é só escrever rimas e versos, pois poesia é, antes de tudo, experiência de empoemamento.

Empoemar-se não é apenas ler versos, empoemar-se tampouco é somente contemplar o que é “belo”, romanticamente.

“Poesia” vem de um verbo grego que significa “produção”. Assim, empoemar-se é produzir a si mesmo agenciado com o outro, com o mundo, com o cosmos. Empoemar-se é o contrário de anular-se .

Empoemar é um verbo que se conjuga em todos os tempos, em plurais modos e em todas as pessoas do singular e do plural. Empoemar-se também é ação clínica, política , ética e pedagógica.

Sob essa perspectiva , a experiência originária que gerou os mitos não está apenas no passado . O sentido de se ler os mitos hoje  é para fazer reviver em nós, aqui e agora, aquela experiência. Não para que repitamos o que disseram os antigos, mas para que possamos (re)aprender a produzir sentidos que repotencializem  a vida com força regeneradora e criativa.

Não apenas os gregos fizeram essa experiência com a poesia originária, nossos povos indígenas  também o fizeram e perseverantemente ainda o fazem para se manterem vivos.

Segundo Krenak, o poeta da tribo tem o seguinte nome: “pessoa coletiva”. O poeta da tribo trava batalhas diferentes daquelas que os guerreiros travam; ele exerce um tipo de poder mais poderoso do que o do cacique;  e promove curas ainda mais necessárias à vida da tribo do que as curas do pajé.

Com suas narrativas  originárias, o poeta da tribo empoema a coletividade e evoca a força dos ancestrais para que as florestas de Pindorama  resistam de pé plenas de vida . Com sua palavra geradora , o poeta da tribo  age para  adiar o fim do mundo...

Até f-a-s-c-i-s-t-a-s às vezes são chamados de “mito”... Porém é sempre antiautoritária  a experiência originária que empoema a existência e a fortalece ante tudo aquilo que , ontem e hoje, a põe sob risco.

Como ensina Deleuze:  “A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos  que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los.”


Hoje, 19 de abril, dia da luta dos povos originários.





“Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras (...). Essa fascinação me levou a conhecer melhor os indígenas.” (Manoel de Barros)

 

Esta música do vídeo é cantada nos ritos de iniciação dos jovens Kayapós à vida em comunidade. A letra lembra aos jovens que os Ancestrais também sãos os rios, as árvores, enfim, a terra que dá alimento e proteção; e que não há futuro digno sem  manter viva a memória coletiva  dos  Ancestrais:




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