A ORIGEM DO SENTIDO[1]
A palavra “semântica” vem do grego “sema”, que também costuma ser
traduzido por “signo” ou “sinal”. Signo ou sinal é tudo aquilo cuja presença
aponta ou sinaliza para outra coisa . Por exemplo, a palavra “casa” é o signo
que “representa” ( re-apresenta) a casa concreta.
Na Grécia antiga quando alguém morria o corpo era cremado. Mas o fogo não
consumia tudo. E antes que ele se extinguisse totalmente, as últimas chamas
eram apagadas com água e vinho. A água para apagar o fogo, e o vinho para
co-memorar, criar memória, daquela vida. Morte não é apenas despedida, também é
celebrar que houve aquela vida.
Ao fim do rito, restavam apenas os fragmentos dos ossos alvos se
destacando sobre o fundo das cinzas. Esses fragmentos eram recolhidos e
guardados numa pequena urna, que então era plantada no seio da terra. Para os
Gregos , colocar a urna no seio da terra era um processo semelhante ao plantar
a semente , para que dela brote outra vida. Para os Gregos, só a vida é
absoluta, nunca a morte. “Ab-soluto”: o que não é soluto, o que não se
dissolve. Por mais que o fogo dissolva os ossos, algo daquele que viveu permanece
ainda vivo.
Depois , era confeccionada uma pequena tabuleta com o nome da pessoa ali
plantada e um epíteto , isto é, uma pequena frase semelhante a um verso que
expressasse e traduzisse a vida daquele cujo nome estava escrito na tabuleta,
que então era afixada sobre a terra onde
a urna foi plantada.
A tabuleta “sinalizava” e dava a conhecer uma vida, agora ausente. A
tabuleta era uma presença que sinalizava uma ausência. Os gregos chamavam essa
tabuleta de “sema”, pois ela era um signo que representava uma vida ausente.
Isso talvez ajude a compreender a enigmática frase de Platão na Carta Sete, na qual o filósofo
afirma que a filosofia não pode ser
escrita, a não ser secundariamente. Pois a filosofia nasce de uma experiência
originária do filósofo com a Ideia que o
torna filósofo, sem a mediação de signos. O texto escrito é o relato dessa
experiência ou experimentação transcendental. A filosofia é expressão da alma e
corpo vivos expressos sobretudo pela palavra viva , e não pela palavra escrita
como sinal que aponta para uma ausência, para uma morte.
A palavra “sema” é prima da “palavra “soma”, que em grego significa
“corpo” ( como em “psicossomático”).Assim o sema é o corpo da palavra ( ou
significante) , ao passo que a alma da palavra é seu sentido, que aponta ou sinaliza para o ser ausente que a
palavra re-apresenta.
Mas acontece algo diferente com a palavra do poeta, pois a palavra poética
potencializa ainda mais o sentido. A palavra poética não re-apresenta algo
ausente , ela faz com que se torne presente nela uma existência que se torna
absoluta.
“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que a seja”, explica-se o poeta Manoel de Barros. A
palavra poética abre-se para o poeta amorosamente, para que a poesia que o
poeta escreve não seja apenas re-apresentação do mundo, mas criação de outros
mundos cujo sentido não se esgota apenas na palavra. É por isso que o poeta
também diz: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, pois poesia não é
representação do mundo dado , mas criação de outros mundos possíveis. O poeta também diz que “escreve com o corpo”.
O corpo expressivo[2] do
poeta não é apenas carne e osso, mas
também espírito tangível que igualmente é fogo. Não como aquele fogo que destroi e
consome, como o fogo do ritual funerário, e sim fogo que aquece e ilumina,
chama que é da vida. Fogo assim é o Princípio ou Arqué de tudo, ensina
Heráclito.
[1] Texto-aula
elaborado pelo prof. Elton Luiz.
[2]
Esse corpo expressivo é o que Deleuze, inspirando-se em Artaud, chama de “Corpo
sem órgãos”. Tal corpo expressivo não pode ser explicado apenas pela ideia de
função, isto é, mediante um sentido utilitário ou “orgânico”. Quando Espinosa
afirma que “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”, ele também está se referindo
a ações que não se explicam pelo aspecto orgânico e funcional do corpo. Quando
a bailarina dança, por exemplo, ela põe em ação seu Corpo sem órgãos; quando a
cantora canta, igualmente é seu Corpo sem órgãos que se expressa por ela.
Quando o poeta escreve seus versos, o corpo da palavra não se explica mais pela
funcionalidade da gramática, uma vez que a palavra , ela também, se torna um
Corpo sem órgãos, um corpo expressivo.
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