domingo, 29 de agosto de 2021

potências clínicas

 

Inspirando-se nos filósofos  Deleuze, Bergson e Espinosa,  o  professor  Cláudio Ulpiano nos ensina que  somos constituídos por uma estrutura sensória-motora. A parte sensória compreende nossos órgãos da sensibilidade que veem, ouvem, provam  , tocam , enfim, sentem o mundo. Essa parte sensória são aberturas, como  portas e janelas, para o mundo.

 Da estrutura motora fazem parte nossas pernas, braços e músculos: são os    instrumentos com  os quais agimos sobre o mundo. Já a  parte sensória percebe o mundo sob a forma de cor, som, texturas, sabores, e conecta esses elementos com nossa mente  ,  para assim formarmos ideias sobre o mundo.

Porém , vivemos numa realidade  que, desde a infância,   vai nos moldando por fora e por dentro   padrões de comportamentos utilitários  , padrões que passamos a reproduzir sem mesmo notá-los, de tal modo que os naturalizamos  como   “normalidade”.

Moldando-nos  a um mundo onde tudo parece ter seu preço,  o mundo capitalista-utilitarista-pragmático reduz tudo à lógica do mercado, cujos valores   a mídia comercial reproduz e propaga mediante  produtos culturais padronizados.  

Essa “Matrix” ou “Caverna de Platão”  mantêm   nossa estrutura sensória   no mais baixo grau de potência, para assim nos adaptar ao roteiro  de uma vida controlada pelo relógio, pela agenda, por  “bater metas”,  enfim, por tudo aquilo que, cedo ou tarde, nos adoece.

E o lugar onde esse  adoecimento se anuncia  é exatamente na sensibilidade, quando dela nascem sentimentos que traduzem uma vida despotencializada. Geralmente, o dinheiro que se ganha vivendo uma vida assim é gasto com consumos  anestesiantes . Sem falar nas religiões que cultuam esse adoecimento existencial para lucrar financeira  e politicamente com ele.

O remédio mais potente  para  esse adoecimento de nós mesmos não vem da indústria farmacológica e seu comércio; o remédio  mais potente pode vir da arte e sua gratuidade.  

A palavra “clínica” significa :  “chegar perto, debruçando-se”. O mau médico olha de longe seu paciente, fazendo deste um mero objeto . Mas o bom médico é sempre um clínico: ele chega perto para ver, ouvir e tocar , agindo em favor da saúde do corpo e da mente.  O clínico se debruça sobre uma vida para  envolvê-la  com cuidados que salvam.

Também a arte pode ser clínica na medida em que ela nos auxilia a nos debruçarmos sobre nós mesmos, pessoal e coletivamente, para assim pensarmos, com crítica ,  nossas relações com o mundo.

Pois a arte liberta  nosso sensório do agir meramente reativo e reprodutor de comportamentos clicherosos, despertando-nos  olhos, ouvidos , gostos e tatos para apreendermos  realidades que a arte cria para nos fazer pensar , sentindo.

A arte liberta e potencializa o sensório, ao mesmo tempo que quebra e interrompe  um agir-motor meramente mecânico e reprodutor de modelos, tais como esses modelos de vida que a propaganda nos empurra junto com a imagem  de margarinas, carros e contas de banco.

Quando o sensório é liberto  do mero agir mecânico,  nosso próprio corpo  também se liberta de condicionamentos reativos, tornando-se o instrumento ativo  de um pensar crítico, clínico e criativo.




 


"Ninguém sabe o que pode um corpo." (Espinosa):





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