sexta-feira, 29 de maio de 2020

ética, virtude e potência


Ética não é a mesma coisa que moral. “Moral” vem do latim  “mores”, que significa “costume”; já “Ética” nasce da palavra grega “ethos”, cujo sentido é “caráter”. O costume está sempre ligado a um grupo, ao passo que o caráter é característica de uma pessoa ou indivíduo. É por isso que a moral tende a ser conservadora , e pode servir de escudo hipócrita para esconder  indivíduos sem caráter.  Embora o caráter seja uma característica individual , é na relação com o outro, na dimensão social, que cada um revela o caráter que tem , na ação que verdadeiramente  faz, e não em meras palavras. Em geral, o moralista está sempre evocando uma “Verdade acima de todos” que dá a ele, o moralista, o poder que tem, e em nome do qual quer ser obedecido, mesmo que à força. Já o homem de caráter conquista companheiros  pela eloquência de suas ações, ações essas que o tornam um exemplo. Enquanto toda moral tende a ser conservadora, há éticas revolucionárias. Espinosa, Nietzsche, Deleuze, Foucault, Bakunin...não são moralistas, mas há neles uma ética. Há indivíduos moralistas sem ética ( caráter), mas quem tem ética se preocupa em potencializar a vida , criar um sentido libertário para ela, e não em impor morais de rebanho. O caráter não é um dom “sobrenatural”, ele precisa ser descoberto , cultivado, fortalecido. O que fortalece o caráter são as “virtudes”. Essa palavra vem de “virtu”, cuja tradução é “força potencial” . Quando a corda do arco é puxada, nasce nela uma “força potencial” ou tensão capaz de lançar a flecha longe. O coração tensiona suas fibras para  impulsionar    o sangue, fluxo da vida,  por  todo o corpo  . As cordas do violão somente produzem música quando tensionadas. “In-tensidade” significa: “ir para dentro da tensão”, enquanto força propulsora de sangue ou arte, de flechas ou ações. São muitas as virtudes :  a justiça, a honestidade, a dignidade...Todas essas virtudes são potências que fortalecem o caráter. Mas de todas as virtudes-potências, a mais necessária é a coragem, pois a coragem é a virtude que nos leva a defender todas as outras virtudes quando elas correm risco: sem coragem não há justiça, honestidade, dignidade...“Coragem” vem de “coração”. Em geral, os muito racionalistas imaginam que o coração é a sede apenas dos sentimentos que se sentem passivamente. Mas eles estão enganados...Pois o coração também é a sede da coragem que impele à ação que protege até mesmo a razão de seus inimigos. Quando Espinosa nomeou seu livro de “Ética”, assim o fez para nos dizer: não há  filosofia , ciência, cultura, educação, democracia, justiça, enfim, liberdade, sem a coragem para defendê-las de seus inimigos, muitas vezes travestidos de moralismo teológico-político.    

A capa do livro mostra as letras B, D e S acompanhadas da imagem de uma rosa ilustrando a palavra latina "caute". As letras significam Benedictus de Spinoza. Quando nasceu, Espinosa foi batizado "Baruch", termo hebraico, porém em casa era chamado de "Bento", pois seus pais eram de origem portuguesa. Muitos autores  dizem que Espinosa pensava em português, embora escrevesse em hebraico, holandês ou latim. Quando foi excomungado, Espinosa rompeu com o nome de origem judaica e renasceu se rebatizando com o nome latino "Benedictus de Spinoza", porém ele nunca rompeu com o "Bento de Espinosa", seu nome mais original e afetivo. E é por isso que prefiro escrever "Espinosa", em referência à língua que também é a nossa. Mas tanto "Espinosa" quanto "Spinoza" são grafias corretas. "Caute" significa "cuidado". "Cuidado" não no sentido de medo ou receio, mas sim enquanto ação de proteger e defender ( no Direito, por exemplo, essa ideia está presente na expressão "medida cautelar", enquanto ação de proteção de direitos). A rosa desabrochada é , em várias tradições , o símbolo da vida.






Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob o título "A coragem da verdade", Michel Foucault, que pouco se refere a Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que revela a admiração que nutria por Espinosa. Segundo Foucault, a maioria dos filósofos antigos apenas cultivou o "amor à sabedoria". Mas Espinosa teve a coragem de viver uma vida filosófica, apesar dos perigos que ele corria. O que Foucault chama de "verdade" nada tem a ver com a verdade nos sentidos epistemológico e lógico, e muito menos teológico. Verdade, em Foucault, tem o sentido de "autenticidade". A autenticidade é a adequação entre aquilo que se diz e aquilo que se faz. Autenticidade: virtude-potência de quem é autêntico.






"Livros não mudam o mundo,
  quem muda o mundo são as pessoas.
 Os livros só mudam as pessoas."

(Mário Quintana)

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