Certa vez Orfeu, ainda deitado na cama pela manhã, vê
Eurídice sentada diante da penteadeira penteando-se e cantarolando baixinho uma
canção , um ritornelo. Ela apenas se olha, não se julga ou mede, tampouco se
compara a alguém ausente. Ela está plenamente ali, nos gestos do seu corpo, não
sendo apenas um corpo, porém. Orfeu fica paralisado olhando...Eurídice se
percebe olhada, vira-se e, assustada, pergunta: “O que foi!?”, parando de fazer
o que fazia. Orfeu então lhe pede: “Repete o que você estava fazendo!...” ,
“Mas o que eu estava fazendo?”, “Você se olhava sem ser narcisicamente, estava
em si plenamente, mas transbordando, cantarolando...”. “Era assim que eu estava
fazendo?”, tenta Eurídice repetir o que fizera. “Não, não é assim que era...”,
diz Orfeu. Por mais que Eurídice tentasse, ela não conseguia repetir , de forma
programada, o que vivera de forma espontânea, sem distância com a vida.
Orfeu percebeu então que vira o que se chama de “graça” (não
no sentido religioso), cujo o contrário é a des-graça. A graça é uma
espontaneidade que não se explica por outra coisa senão por si mesma: o mercado
não a vende, o dinheiro não a compra. As crianças a vivem o tempo todo, os
adultos se esqueceram dela...A graça acontece não quando a gente quer. Não é
pelo querer que se alcança esse processo. Ao contrário, o viver posado e
“acostumado” nos afasta dele : quando tentamos dominar ,de fora, esse
acontecimento, estranhamente percebemos que ele se parece com nada... Na
mitologia , “Eurídice”, o par de Orfeu, também é um dos nomes da alma , como
também o são “Psiquê” e “Pneuma” (“Sopro”) . A alma do poeta sempre desperta
primeiro que ele, e é ela que o acorda e faz ver , para que em nós a vida
também desperte e lute contra as desgraças. Desse modo, é poeta não só quem faz
versos, mas quem sobretudo canta com a alma em graça, desperta e acordada,
existindo sem separação com o existir, sem precisar de mais nada para ser o que
é , pois para quem assim é, calar é morrer . Desse canto espontâneo, quase nada,
o poeta extrai sua força para criar, resistir e avançar.
“(...) uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que
se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as
peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um dardo que atravesse as
eras...” (Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?” )
(na mitologia, as Graças eram três irmãs que sempre faziam companhia umas às outras. Elas também costumavam acompanhar as Musas, as divindades das artes. As Graças também eram tecedoras.Mas ao contrário das Moiras, que teciam o férreo destino que impedia a liberdade, as Graças teciam tudo aquilo que só existe se for criado em liberdade, como toda obra de arte.Elas também costumavam acompanhar Eros e Dioniso em suas deambulações pela natureza. Das Graças também vem a ideia de gratidão)
( capa: Martha Barros)
(Haydn, "L'anima del filosofo - ou Orfeu e Eurídice)
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