sábado, 4 de novembro de 2017

o imã

É equivocado atribuir a Espinosa um mero intelectualismo ou racionalismo férreo. Igualmente não é correto afirmar que existe apenas duas formas de amor nele: o da imaginação, sempre passivo, e o  do intelecto, como se este último fosse o único e confiável amor ativo. Muitos comentadores não se atentam à sutileza de um pensamento como o de Espinosa.
Na Quinta Parte da Ética, Espinosa nos fala do amor intelectual a Deus. Somente quando aprende a amar é que o intelecto alcança o que Espinosa chama de Deus,  o Absolutamente Infinito.
Esse amor não é sensível. Porém, é difícil ao intelecto aprender esse amor do qual apenas ele é capaz, pois é necessário que ele apreenda em si uma potência que vai além do mero raciocinar; é preciso que ele se faça, inteiro e não apenas em parte, intuição. Intuir é um contato imediato, sem mediação ou distância, com uma realidade. O amor intelectual a Deus leva o intelecto a apreender uma realidade que não é carcomida pelo tempo.
No entanto, esse amor intelectual não é o máximo que o amor pode , ele ainda é um grau do amor, não todo o amor. Segundo Espinosa, o valor desse amor intelectual está em nos fazer conhecer outro amor: o  amor para Deus ou o amor voltado para Deus.  O amor intelectual  atinge o conhecimento das essências enquanto objeto eterno do intelecto. Mas o amor para Deus é um amor voltado para aquilo que os olhos do corpo também veem.
Não é um amor apenas pelas essências, é um amor pelas existências também. De quais existências? Não desta ou daquela existência em particular, mas de todas as existências. Esse amor parte da imagem que o corpo apreende e sente, ele é duração. Contudo, o antecede o amor intelectual que apreende as essências eternas. Então, como se fosse o instante de um clarão que ilumina tudo, porém muito rápido ( e logo a escuridão retorna) , percebemos que não existem dois amores, existe um só, infinitamente múltiplo, porém.Enfim, sentimos de alguma forma que também dura a eternidade: "poeta é quem diz eu-te-amo a todas as coisas"(Manoel de Barros).
Imaginemos uma criança que nasce. A mãe a ama não apenas com a alma, ela a ama também com o corpo, seu corpo alimentou aquele corpo que agora nasceu dela. O amor também é a placenta, o leite e o colo. Contudo, a criança não se sabe amada de forma tão clara como a mãe o sente.   O amor da criança pela mãe demora a brotar, pois a própria criança ainda não tem a noção de si. Mesmo se a criança nascer com algum problema congênito que a fará crescer sem consciência, mesmo assim a mãe ainda a amará, se mãe de fato o for.
A criança foi gerada nesse amor, no amor. No entanto , o amor  dela pelo genitor demora a aparecer, ele precisa de certo desenvolvimento da criança, desenvolvimento de seu corpo e de sua alma.  O amor que nascerá dela será um amor segundo que descobrirá um amor primeiro, o que o gerou.
Acontece algo semelhante no amor intelectual de Deus. Ele não é o amor que gerou o intelecto e tudo o que existe, ele é o intelecto se compreendendo como fruto daquele amor que o gerou primeiro, que é o Deus mesmo. Esse amor primeiro não o gerou e se separou, continua nele, pois o intelecto é um modo ou maneira de existir desse amor. Quando o gerado descobre o amor do gerador, é como uma novidade que ele o descobre, como se esse amor tivesse nascido no tempo. No entanto,  o amor do gerador e sua descoberta é um só amor: embora infinito, é sempre em uma singularidade que ele é experimentado como se fosse uma novidade.
O amor voltado para Deus compreende a inseparabilidade entre Deus e amor. O amor voltado para Deus é o amor do gerado voltando-se para o genitor, como um imã finito que, após saber-se imã, o imã que sempre fora,  é atraído para o imã infinito que é sempre potência de atrair, nunca de afastar.
Tal amor não é como o Eros grego, tampouco é um sentimento romântico. Talvez os latinos tenham sido os que melhor lhe inventaram um nome: "a-mor", que significa “não-morte”.







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