Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob
o título A coragem da verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a
Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que revela a admiração que nutria por Espinosa, a
despeito das poucas palavras escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault, em Espinosa fazer filosofia é inseparável da
produção de uma vida filosófica. Produzir um modo de vida filosófico, este é
o principal desejo que tem na filosofia a sua causa eficiente.
Foucault
argumenta que essa conduta muda
radicalmente a partir de Leibniz, não
obstante Espinosa e Leibniz serem
contemporâneos ( Espinosa era apenas um pouco mais velho que Leibniz).A partir
de Leibniz, fazer filosofia será identificado a escrever livros, artigos; dar
aula na academia, fazer palestras, acumular Títulos. Em Espinosa, a vida
filosófica não é uma vida à parte, ela é a vida mesma.Produzir uma vida
filosófica requer não apenas amor à Verdade, requer sobretudo coragem .E disto a própria vida de
Espinosa dá o testemunho. Decerto que
não faltou amor à Verdade a Sócrates ou Platão, e nisto Leibniz os segue. Mas
poucos foram além do amor, poucos exerceram esta coragem que a Verdade pede. Há
uma dimensão clínica nessa Verdade, pois toda cura começa na coragem. Coragem
não para enfrentar a doença, mas coragem para viver de acordo com a saúde.
Há uma influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço
que este empreende para instituir uma medicina da alma. Parece absurdo que o
homem tenha criado uma medicina corporis e que, no entanto, tenha
descuidado de uma medicina mentis, uma vez que ele é constituído por
essas duas realidades, e não apenas por uma delas. O homem apenas pôde produzir
a medicina corporis quando conseguiu vencer o curanderismo nas questões que envolviam a
saúde do seu corpo.Todavia, no que diz respeito à salut de sua alma,
entrega-se o homem ainda a práticas encantatórias, mágicas, como se apenas de
um milagre pudesse vir tal salut. Procedendo assim, a alma está sempre a
depender de outra coisa para ser si mesma e exercer sua virtude, que é a
compreensão, o pensar.Todavia, não há como a alma delegar essa virtude e
permanecer alma, assim como não há como ela, em vida, delegar sua existência a
outra coisa e ainda permanecer viva. Na verdade, a virtude de pensar não pode
ser delegada, pois ela constitui a existência da alma. No entanto, ela pode ser
enfraquecida, entristecida, e isto é o que ocorre quando a alma adoece.
Ao
perceber que o corpo está doente, a alma age visando a cura dele produzindo um
método. Se for a alma a doente, o inverso não se aplica, pois o corpo é incapaz
de perceber uma doença na alma.Se o corpo está bem alimentado, saudável, ele
está na plena posse de sua virtude, que é agir. Perceber é uma virtude que
depende da alma, e não do corpo.Mas como alma e corpo são um só, é abstrata a
ideia de que um possa estar são e o outro doente. Esta hipótese foi aventada
apenas para introduzir a seguinte questão: se a alma estiver doente, impotente,
como pode ela perceber em si mesma tal impotência?Como poderia ela, estando
doente, isto é, encontrando-se incapacitada para compreender, compreender
justamente que ela não compreende?Como poderia ela emitir um juízo acerca de si
mesma se ela se acha incapacitada para emitir juízos?Se ela se encontra fora
dela mesma, e sua casa é a compreensão, como pode ela entrar nela mesma para,
exercendo sua virtude, buscar sua própria cura?A cura do corpo depende da alma,
sem dúvida. Mas a cura da alma depende dela mesma. No entanto, se toda cura
depende de um método, como pode a alma estabelecer um para si mesma se ela
ignora que ignora?Assim, e antes de tudo, é preciso que a alma conheça
que está doente. Conhecer não é reconhecer. O reconhecer é uma
passividade, ele é a aceitação de um juízo externo que outrem faz sobre nós
mesmos, ao passo que o conhecer é uma atividade que só depende de nós mesmos,
pois ele é a produção de um conhecimento apoiado em uma ideia adequada. Quando
conhecemos que estamos doente, já não o estamos mais: já ultrapassamos a doença
pelo esforço para compreendê-la. Quando conhecemos que estamos doentes na alma,
é sempre a uma parte da alma que a doença se refere, e não à alma inteira. Na
verdade, a parte doente da alma é apenas
a alma pelo avesso, alienada de si mesma. Do conhecimento da doença nasce um
método, que é um esforço sobre si mesmo para adequar-se a si mesmo, à nossa
ideia adequada. Esse esforço é a expressão de uma constância que só se torna
contínua quando nos colocamos de acordo
conosco.
O método é um exercício sobre si: ele é uma medicina animi, ele
é uma clínica. A verdadeira clínica não é luta contra a doença, mas
potencialização da saúde.Somente quando não está mais pelo avesso é que nossa
alma pode nos vestir e ser a ideia adequada de nós mesmos, ideia esta que nos dá
coragem e firmeza.A clínica é a constituição de um modo de vida, de um pensar e
de um agir adequados.
"Método" significa: "caminho para".O
método é um caminhar, um caminhar para. O método é um caminhar para nós mesmos,
para a ideia adequada. Esta não é um fim que se coloca exterior ao caminhar,
ela é a causa eficiente dele. A ideia adequada é o martelo que produz o
caminhar . Como toda ferramenta, é o uso que a aperfeiçoa, ao mesmo tempo em
que aperfeiçoa o agir do artesão que a
tem nas mãos.A nossa existência é um caminhar para a essência, um caminhar de
acordo com a essência.Por isso, o método é uma conduta cuja causa é a essência
que expressamos. O método é um caminhar para a essência, isto é, um estar de
acordo com aquilo que não nos falta, mas que nos é necessário produzir como
modo de vida.
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