quarta-feira, 17 de agosto de 2016

o pássaro-poeta

As coisas  da arte são sempre resultado de ter estado a     perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até  um    ponto que ninguém consegue ultrapassar.
                        Rainer Maria Rilke


           Inventar uma tarde a partir de um tordo.
                        Manoel de Barros
          

Existe um pássaro, o tordo, que é portador de três espécies distintas de canto. O primeiro canto ele emite quando quer seduzir uma fêmea. Na presença de um rival, ambos “duelam” infatigavelmente através do canto, e aquele que cantar mais bela e potentemente terá como recompensa o direito de acasalar-se e perpetuar-se em sua prole. A segunda modalidade de canto é produzida por ocasião da disputa de um território. Novamente será a ocasião de um  combate entre dois ou mais pretendentes, combate este travado com a munição da melodia.
Reconhece-se a utilidade orgânica desses dois cantos, já que ambos servem à perpetuação da espécie. No entanto, há ainda um misterioso terceiro canto, portador de uma beleza ao mesmo tempo estranha e sublime. Nesse terceiro canto, é como se o pássaro fosse o portador de uma força que por ele atravessasse e o fizesse sair de si mesmo, sendo o seu canto o aspecto sonoro daquilo que , fixado num silencioso rosto humano, nomeamos como sendo uma catatonia.
Esse terceiro canto o tordo o produz em apenas dois momentos do dia: o crepúsculo e a aurora , o momento em que o sol se vai e o instante em que ele chega. O pássaro se põe então num extremo qualquer do seu território para  se despedir ou saudar a fonte de toda luz e cor. Ele mira, ele contempla, extático, o sol que o hipnotiza e o inspira numa melodia que se compõe do material obscuro dos limiares. E o que se ouve dessa maneira é um canto desterritorializado, produzido exatamente no momento da passagem do dia para a noite ou da noite para o dia.Como um Orfeu da mata,ele inventa sua Ária, ele ousa sua Sonata.
Todavia, tal canto se faz ao custo de um extremo perigo, dado que é a própria vida do pássaro que se vê em risco nessas horas. Pois aquela mesma parte da floresta que durante o dia é o território do pássaro, quando chega a noite    vem reclamar-lhe o título de proprietário a noturna coruja, que é o predador mais astuto e frequente do pássaro. E é exatamente o canto o elemento que pode denunciar à coruja a presença da sua possível presa. 
Não obstante o risco da morte, o pássaro se entrega ,absorto, na criação de um canto sem utilidade orgânica nenhuma, mas que expressa potentemente a essência singular da vida, a sua afirmação em relação à morte.  E nele pode-se ouvir exatamente o canto da vida, a vida sob a forma de canto . O pequeno pássaro cantor contra a grande coruja de Minerva.
Eis uma maneira simples, deliberadamente indireta , mediante a qual a natureza nos ensina  o que é a poesia e o que é o poeta.


trecho do livro:
















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