São
30, são 50 cadernos de caos.
Preciso administrar esse caos.
Preciso
de imprimir vontade estética sobre esse material.
(...)
Tenho que domar a matéria.[1]
Manoel de Barros
Poesia é delírio ôntico.
Manoel de Barros
Poesia é delírio ôntico.
Manoel de Barros
Segundo
Gilles Deleuze e Félix Guattari, “o não-filosófico está talvez mais no coração
da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode
contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual” [2].Esta “não filosofia” com a
qual a filosofia entra em relação nada tem a ver com a opinião ou doxa. Esta “não
filosofia” não é exatamente a economia, o direito, a história, a psicologia,
etc. Esta “não filosofia” não é uma opinião ou uma disciplina constituída. A “não
filosofia” assim o é porque não é conceito. Ela vem antes do conceito, assim
como o embrião vem antes da criança, ou o casulo que vem antes da existência
alada que sairá dele.
Para
Deleuze e Guattari, a filosofia não é apenas relação de conceitos dentro de um
sistema. Em todo sistema, um conceito remete a outro segundo uma lógica
hierárquica, uma vez que há conceitos mais eminentes que outros, em torno dos
quais os conceitos secundários gravitam como satélites. Assim é o conceito de “cogito”
em Descartes, ou o conceito de “substância” em Aristóteles: eles são como sóis
apolineamente centralizados, eles são o centro do sistema.
Em
Deleuze e Guattari acontece algo diferente. Os conceitos não estabelecem apenas
relações entre eles. Antes de tudo, cada conceito é uma relação com aquilo que não é conceito. O conceito não estabelece, de fora, uma relação com a não filosofia, pois ele é relação com a não filosofia :essa relação é sua "essência íntima", como dizia Espinosa. A relação com o não
conceitual dota o conceito de uma abertura não sistemática, como um umbigo que
o liga à sua gênese. Todo conceito traz seu fio de Ariadne, através do qual ele
entra e sai do labirinto sem se perder ou carecer de consistência. Nada mais diferente de um sistema do
que um labirinto...
Deleuze e Guattari afirmam que os contornos dos conceitos são irregulares, como "formas em rascunho". Um conceito não possui limites,feito um triângulo ou quadrado, ele possui limiares: são espaços de trocas e agenciamentos, como as membranas de tudo o que é vivo.Deleuze e Guattari nos lembram que o termo "concerto", de orgiem barroca, é a tradução musical de "conceito". Um concerto é um agenciamento musical no qual cada instrumento possui sua voz e estilo: alguns solam e outros acompanham, mas este solar não é um centro de hierarquia, tampouco o acompanhar é algo destituído de personalidade e singularidade. Um concerto é uma multiplicidade, assim como deve ser um conceito. Um conceito é um concerto, um agenciamento de elementos heterogêneos em variação concertante. Não diz de fato um conceito quem, ao falá-lo, também não cante : "também sei a língua dos passarinhos - é só cantar" , pois "sou fuga para flauta doce" ( Manoel de Barros).
O não filosófico , portanto, não é conceitual, ele é
pré-filosófico. O pré-filosófico não é apolíneo, tampouco solar. Ele é
horizonte, terra, fêmea, mãe, como devir-feminino.O
pré-filosófico não é conceitual, jamais o será. Se a filosofia é o mundo do
pensamento, o pré-filosófico é a terra do pensar, um pensar que também se
sente, um sentir que se pensa.Esse pré não é um objeto ou coisa que o conceito
representa, ele é sempre pré-coisa ,
como diria Manoel.
O
pré é uma terra que o pensamento conquista. Conquista a quem? A filosofia não
recebe, de presente, essa terra; tampouco é uma terra prometida. O nômade que
habita o deserto conquista o deserto. Contudo, o deserto não tem proprietário,
ninguém pode marcar nele linhas retas em seu solo, pois o vento vem e apaga.
Conquistar não é fazer do conquistado uma propriedade, restando-lhe fora,
especulando ou a deixando deserta de vida. Conquistar é povoar, habitar, encher
de vida, mas sem recortar, sem construir muros. É com itinerâncias, é com
trajetos e viagens, é se movendo sobre o deserto que o Nômade conquista um. O
deserto não é nômade, porém ele torna nômade quem o conquista, povoando-o : “o
nômade mora debaixo do próprio chapéu e abastece de pernas as distâncias”,
afirma Manoel de Barros.
A
terra que a filosofia conquista é um deserto sobre o qual ela traça mundos,
trajetos, habitares, modos de ser, sem que exista, antes, um modelo a imitar de
como ser. Pois antes dessa conquista, antes da terra pré-filosófica, não existe
algo pronto, feito, acabado, que se possa herdar, reproduzir ou imitar.O que
existe é o caos. Este não é um limite à conquista, mas aquilo sem o qual não há
conquista . É a terra o que se conquista, não o caos. A terra tem outro nome: consistência. Ter consistência
não é ser inflexível ou rígido.Ter consistência é conquistar uma terra sem
murá-la, sem fechá-la, sem finitizá-la. Toda conquista é um co-memorar do que
se conquistou. Assim, a terra não é o fim do caos, ela é o começo da
consistência.Toda terra conquistada ao caos é sempre terra infinita.A ciência
finitiza, objetifica, gira em torno de objetos. A filosofia traça uma terra
infinita, a qual ela conquista sem negar o caos. Nenhuma conquista nasce da
mera negação, toda conquista é uma afirmação da capacidade que tem o pensamento
de conquistar. Conquistar não prêmios, títulos, propriedades, poder. Conquistar
a si mesmo, criando a si mesmo , fazendo do infinito a sua terra.
A
filosofia não nega o caos, não o demoniza: ela conquista-lhe uma terra.
Esta é o inaugurar de uma distância
mínima, que nenhuma régua tem como medir. Pois não é uma distância mensurável
em centímetros, milímetros ou qualquer outra unidade de medida, por menor que
seja. A distância que separa a terra do caos é semelhante àquela que separa a
paisagem pintada e a matéria sem a qual não existe a paisagem pintada. A
paisagem não é a matéria da tinta, mas uma distância não extensa que o artista
conquista, como o fez Cezanne: do caos das sensações ele conquistou uma
paisagem que existe como distância não
física conquistada à desordem das tintas.
(Cezanne , Corner of Quarry)
(Cezanne , Corner of Quarry)
Deleuze chama de “crivo” essa
distância que existe entre a terra e o caos. Quanto mais próximo do caos, mais
rica a terra que a ele se conquista . Quem semeia sabe: as terras mais férteis
ficam próximas a vulcões.... Porém, maior se torna também o risco de se viver
nelas. A linha de fuga, lembra-nos Deleuze, é muito próxima à linha de
abolição. E o poeta? É nessa questão que
filosofia e poesia estabelecem singulares relações. É com a poesia, e não com
uma disciplina estabelecida, que a filosofia encontrará uma companhia para a
sua solidão : “odeio que rouba minha solidão sem oferecer autêntica companhia”,
dizia o poeta-filósofo Nietzsche.
Talvez
o artista, sobretudo o poeta, seja aquele que mais de perto vê o dragão. Novamente
Nietzsche: “Quando você olha para o abismo, o abismo te olha”. A terra que o
poeta conquista é o par do caos, é sua fêmea. A terra e o caos vivem um amor que pode salvar ou matar, abolir. Não
abolir a terra , mas ao poeta que, em deslimite
, horizonta-se nesse amor .O poeta não cria conceitos como o filósofo: seu pré
é imediatamente o caos do qual apenas a terra inventada pode ser o par. O poeta
é o palco desse amor cósmico, tal como o amor Ariadne-Dioniso. O poeta também
vive uma conquista, mas é uma conquista amorosa, na qual ele aprende a dizer,
como Manoel , “eu-te-amo” a todas as
coisas.
Talvez
tenha havido um único caso, o mais rico sem dúvida, onde a poesia acompanhou a
filosofia, e a filosofia acompanhou a poesia, até o mais longe que cada uma
pôde : o “pré” de cada uma coincidia com a mesma Natureza infinita ( íntima, no
entanto, a cada coisa finita ) . Isso
aconteceu em Espinosa. O “acompanhar” é uma ideia que goza de especial
importância nesse filósofo, assim como no concerto barroco ( no qual as vozes distintas acompanham umas às outras, polifonicamente: poli-fônico, múltiplas vozes em um "afloramento de falas"). Em Espinosa,uma ideia acompanha um afeto, mas é uma ideia que
causa outra ideia, é um afeto que causa outro afeto. Uma ideia não pode causar
um afeto, tampouco um afeto pode ser causa de uma ideia, assim como a mente não
pode agir sobre o corpo, nem o corpo sobre a mente. Contudo, quando a alma ri,
o corpo a acompanha. Quando o corpo corre, a alma o acompanha, correndo em
ideia, espiritualmente. E quando a alma se alegra, o corpo a acompanha nessa
alegria. O acompanhar é a maneira que duas coisas autônomas têm de serem
necessárias uma à outra, sem deixarem de ser autônomas, singulares, diferentes.
Eis uma boa definição da desfilosofia:
a filosofia acompanhando a poesia, a poesia acompanhado a filosofia; o conceito
acompanhando a sensibilidade, a sensibilidade acompanhando o conceito; o corpo
acompanhando o espírito, e este ao corpo.
[1] “Cadernos
de caos”, é assim que Manoel de Barros se refere aos livrinhos que ele mesmo
fabrica e nos quais escreve, a lápis, suas poesias.
[2] O que é a filosofia? São Paulo: Editora
34, 1992 , p. 13.
( este livro que escrevi se encontra esgotado na editora. Minha gratidão a Manoel de Barros e meus agradecimentos aos que o leram e divulgaram)
(Jean-Féry Rebel [1666-1747], Les éléments, 1st. movement: Le Cahos)
(Jean-Féry Rebel [1666-1747], Les éléments, 1st. movement: Le Cahos)
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