sexta-feira, 19 de agosto de 2016

manoel de barros, deleuze e a desfilosofia

São 30, são 50 cadernos de caos.
                Preciso administrar esse caos.                    
Preciso de imprimir vontade estética sobre esse material.
(...) Tenho que domar a matéria.[1]
 Manoel de Barros

Poesia é delírio ôntico.
Manoel de Barros

Segundo  Gilles Deleuze e Félix Guattari,  “o não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual” [2].Esta “não filosofia” com a qual a filosofia entra em relação nada tem a ver com a opinião ou doxa. Esta “não filosofia” não é exatamente a economia, o direito, a história, a psicologia, etc. Esta “não filosofia” não é uma opinião ou uma disciplina constituída. A “não filosofia” assim o é porque não é conceito. Ela vem antes do conceito, assim como o embrião vem antes da criança, ou o casulo que vem antes da existência alada que sairá dele.
Para Deleuze e Guattari, a filosofia não é apenas relação de conceitos dentro de um sistema. Em todo sistema, um conceito remete a outro segundo uma lógica hierárquica, uma vez que há conceitos mais eminentes que outros, em torno dos quais os conceitos secundários gravitam como satélites. Assim é o conceito de “cogito” em Descartes, ou o conceito de “substância” em Aristóteles: eles são como sóis apolineamente centralizados, eles são o centro do sistema.
Em Deleuze e Guattari acontece algo diferente. Os conceitos não estabelecem apenas relações entre eles. Antes de tudo, cada conceito é uma relação com aquilo que não é conceito. O conceito não estabelece, de fora, uma relação com a não filosofia, pois ele é relação com a não filosofia :essa relação é sua "essência íntima", como dizia Espinosa. A relação com o não conceitual dota o conceito de uma abertura não sistemática, como um umbigo que o liga à sua gênese. Todo conceito traz seu fio de Ariadne, através do qual ele entra e sai do labirinto sem se perder ou carecer de consistência. Nada mais diferente de um sistema do que um labirinto... 
Deleuze e Guattari afirmam que os contornos dos conceitos são irregulares, como "formas em rascunho". Um conceito não possui limites,feito um triângulo ou quadrado, ele possui limiares: são espaços de trocas e agenciamentos, como as membranas de tudo o que é vivo.Deleuze e Guattari nos lembram que o termo "concerto", de orgiem barroca, é a tradução musical de "conceito". Um concerto é um agenciamento musical no qual cada instrumento possui sua voz e estilo: alguns solam e outros acompanham, mas este solar não é um centro de hierarquia, tampouco  o acompanhar é algo destituído de personalidade e singularidade. Um concerto é uma multiplicidade, assim como deve ser um conceito. Um conceito é um concerto, um agenciamento de elementos heterogêneos em variação concertante. Não diz de fato um conceito quem, ao falá-lo, também não cante : "também sei a língua dos passarinhos - é só cantar" , pois "sou fuga para flauta doce" ( Manoel de Barros).
O não filosófico , portanto, não é conceitual, ele é pré-filosófico. O pré-filosófico não é apolíneo, tampouco solar. Ele é horizonte, terra, fêmea, mãe, como devir-feminino.O pré-filosófico não é conceitual, jamais o será. Se a filosofia é o mundo do pensamento, o pré-filosófico é a terra do pensar, um pensar que também se sente, um sentir que se pensa.Esse pré não é um objeto ou coisa que o conceito representa, ele é sempre pré-coisa , como diria Manoel.
O pré é uma terra que o pensamento conquista. Conquista a quem? A filosofia não recebe, de presente, essa terra; tampouco é uma terra prometida. O nômade que habita o deserto conquista o deserto. Contudo, o deserto não tem proprietário, ninguém pode marcar nele linhas retas em seu solo, pois o vento vem e apaga. Conquistar não é fazer do conquistado uma propriedade, restando-lhe fora, especulando ou a deixando deserta de vida. Conquistar é povoar, habitar, encher de vida, mas sem recortar, sem construir muros. É com itinerâncias, é com trajetos e viagens, é se movendo sobre o deserto que o Nômade conquista um. O deserto não é nômade, porém ele torna nômade quem o conquista, povoando-o : “o nômade mora debaixo do próprio chapéu e abastece de pernas as distâncias”, afirma Manoel de Barros.
A terra que a filosofia conquista é um deserto sobre o qual ela traça mundos, trajetos, habitares, modos de ser, sem que exista, antes, um modelo a imitar de como ser. Pois antes dessa conquista, antes da terra pré-filosófica, não existe algo pronto, feito, acabado, que se possa herdar, reproduzir ou imitar.O que existe é o caos. Este não é um limite à conquista, mas aquilo sem o qual não há conquista . É a terra o que se conquista, não o caos. A terra  tem outro nome: consistência. Ter consistência não é ser inflexível ou rígido.Ter consistência é conquistar uma terra sem murá-la, sem fechá-la, sem finitizá-la. Toda conquista é um co-memorar do que se conquistou. Assim, a terra não é o fim do caos, ela é o começo da consistência.Toda terra conquistada ao caos é sempre terra infinita.A ciência finitiza, objetifica, gira em torno de objetos. A filosofia traça uma terra infinita, a qual ela conquista sem negar o caos. Nenhuma conquista nasce da mera negação, toda conquista é uma afirmação da capacidade que tem o pensamento de conquistar. Conquistar não prêmios, títulos, propriedades, poder. Conquistar a si mesmo, criando a si mesmo , fazendo do infinito a sua terra.
A filosofia não nega o caos, não o demoniza: ela conquista-lhe uma terra. Esta  é o inaugurar de uma distância mínima, que nenhuma régua tem como medir. Pois não é uma distância mensurável em centímetros, milímetros ou qualquer outra unidade de medida, por menor que seja. A distância que separa a terra do caos é semelhante àquela que separa a paisagem pintada e a matéria sem a qual não existe a paisagem pintada. A paisagem não é a matéria da tinta, mas uma distância não extensa que o artista conquista, como o fez Cezanne: do caos das sensações ele conquistou uma paisagem que  existe como distância não física conquistada à desordem das tintas.


                                             (Cezanne , Corner of Quarry)

         Deleuze chama de “crivo” essa distância que existe entre a terra e o caos. Quanto mais próximo do caos, mais rica a terra que a ele se conquista . Quem semeia sabe: as terras mais férteis ficam próximas a vulcões.... Porém, maior se torna também o risco de se viver nelas. A linha de fuga, lembra-nos Deleuze, é muito próxima à linha de abolição. E o poeta?  É nessa questão que filosofia e poesia estabelecem singulares relações. É com a poesia, e não com uma disciplina estabelecida, que a filosofia encontrará uma companhia para a sua solidão : “odeio que rouba minha solidão sem oferecer autêntica companhia”, dizia o poeta-filósofo Nietzsche.
Talvez o artista, sobretudo o poeta, seja aquele que mais de perto vê o dragão. Novamente Nietzsche: “Quando você olha para o abismo, o abismo te olha”. A terra que o poeta conquista é o par do caos, é sua fêmea. A terra e o caos vivem  um amor que pode salvar ou matar, abolir. Não abolir a terra , mas ao poeta que, em deslimite , horizonta-se nesse amor .O poeta não cria conceitos como o filósofo: seu pré é imediatamente o caos do qual apenas a terra inventada pode ser o par. O poeta é o palco desse amor cósmico, tal como o amor Ariadne-Dioniso. O poeta também vive uma conquista, mas é uma conquista amorosa, na qual ele aprende a dizer, como Manoel , “eu-te-amo”  a todas as coisas.
Talvez tenha havido um único caso, o mais rico sem dúvida, onde a poesia acompanhou a filosofia, e a filosofia acompanhou a poesia, até o mais longe que cada uma pôde : o “pré” de cada uma coincidia com a mesma Natureza infinita ( íntima, no entanto,  a cada coisa finita ) . Isso aconteceu em Espinosa. O “acompanhar” é uma ideia que goza de especial importância nesse filósofo, assim como no concerto barroco ( no qual as vozes distintas acompanham umas às outras, polifonicamente: poli-fônico, múltiplas vozes em um "afloramento de falas"). Em Espinosa,uma ideia acompanha um afeto, mas é uma ideia que causa outra ideia, é um afeto que causa outro afeto. Uma ideia não pode causar um afeto, tampouco um afeto pode ser causa de uma ideia, assim como a mente não pode agir sobre o corpo, nem o corpo sobre a mente. Contudo, quando a alma ri, o corpo a acompanha. Quando o corpo corre, a alma o acompanha, correndo em ideia, espiritualmente. E quando a alma se alegra, o corpo a acompanha nessa alegria. O acompanhar é a maneira que duas coisas autônomas têm de serem necessárias uma à outra, sem deixarem de ser autônomas, singulares, diferentes. Eis uma boa definição da desfilosofia: a filosofia acompanhando a poesia, a poesia acompanhado a filosofia; o conceito acompanhando a sensibilidade, a sensibilidade acompanhando o conceito; o corpo acompanhando o espírito, e este ao corpo.




[1] “Cadernos de caos”, é assim que Manoel de Barros se refere aos livrinhos que ele mesmo fabrica e nos quais escreve, a lápis, suas poesias.
[2] O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992 , p.  13.







( este livro que escrevi se encontra esgotado na editora. Minha gratidão a Manoel de Barros e meus agradecimentos aos que o leram e divulgaram)


             (Jean-Féry Rebel [1666-1747], Les éléments, 1st. movement: Le Cahos)                

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