O andarilho abastece de pernas as distâncias.
Manoel de Barros
Ir, indo.
Caetano
Os
gregos inventaram a praça como espaço de poder. A praça era o plano horizontal
das relações políticas, distinto do plano vertical dos Templos e da clausura dos Palácios.
A praça era chamada de ágora , o coração da pólis. O termo "ágora" provém de “agon”, raiz presente também
em “agonia”. Uma alma agoniada é aquela na qual quereres diferentes ou
pensamentos distintos lutam para a dominarem. “Agon” significa “disputa”. A
praça, a ágora, era o lugar onde aconteciam disputas, lutas, medições de
forças. Mas a arma de tais disputas não era a faca ou a lança, e sim outra
arma. Arma sutil, eminentemente simbólica, mas que podia ser mais forte do que Aquiles ou ir mais longe do que a flecha. Essa arma era a palavra. Contudo, a
palavra dita na ágora era palavra proferida individualmente: não raro tal palavra servia
apenas a quem a enunciava ( ou então ao
círculo dos que professavam, ou fingiam professar, o mesmo credo, a mesma posição)
. Por isso, quem tinha dotes retóricos
saia-se vencedor nos embates dialéticos, mesmo que por de trás das palavras
convincentes não existissem ideias consistentes. Muitos se valiam da retórica
para esconderam não apenas interesses escusos, como também a carência de
ideias.
Os
gregos inventaram a praça como espaço político, mas eles não inventaram as
ruas. As ruas foram invenção dos romanos. As praças são lugares de parada, são
espaços centrípetos. As ruas, ao contrário, são espaços de circulação , de
deambulação e mesmo de linhas de fuga a inventar. A praça possibilitou o surgimento do filósofo acadêmico, porém a mesma praça tornou-se oportunidade lucrativa para espertos sofistas, de tal modo que sempre foi
difícil separar aquele destes. A rua, diferentemente, fez nascer o andarilho, o
cosmopolita, o desterritorializado, o itinerante: o filósofo-cometa, o pensador-artista liberto de academias ou escolas.
Sob o Império Romano, entretanto, as
ruas eram vias limitadas ligando as cidades que o Império dominava . Com o
fim do Império, as ruas se tornaram chão dos peregrinos. Entre estes havia aqueles que, como São Francisco, iam de pés descalços em busca da rua que levasse à invisível Pólis Celeste.
Com o fim do poder imperial, muitas das ruas por tal poder construídas, não obstante estarem inteiras, findavam agora em cidades em ruínas : as mesmas cidades que ,outrora ,gabavam-se eternas. Uma cidade desaparece por meio de guerras ou catástrofes. Mas uma rua somente desaparece se o mato ou a floresta a fizerem retornar à natureza de onde saíra.
Com o fim do poder imperial, muitas das ruas por tal poder construídas, não obstante estarem inteiras, findavam agora em cidades em ruínas : as mesmas cidades que ,outrora ,gabavam-se eternas. Uma cidade desaparece por meio de guerras ou catástrofes. Mas uma rua somente desaparece se o mato ou a floresta a fizerem retornar à natureza de onde saíra.
Com
o crescimento da vida urbana, a rua deixou de ser mera coadjuvante da praça. A rua fez passar
para dentro da cidade a experiência que outrora somente era vivida por aqueles
que, saindo dos muros da cidade, cruzavam territórios ainda desertos. A praça
tem limites. Mas as ruas não têm limites, pois uma se conecta com outra, às
vezes se atravessam, rizomas que são.
A Revolução Francesa se inspirou no modelo grego
da ágora. Contudo, o século XIX, sob a inspiração de anarquistas e socialistas,
tal século descobriu a rua como espaço político. A política que vem da rua é
diferente daquela que é feita na praça. Em Brasília, por exemplo, fala-se da "Praça dos Três Poderes". Mas é na rua que vive a potência inumerável. Na praça, a palavra ainda está refém da
retórica individualizada, ao passo que a rua tem outra fala, às vezes anônima,
mas altamente singularizada, pois por ela se expressam agentes coletivos de
enunciação.
O espaço político da rua é um espaço de travessia, não para
chegar ao Palácio , tampouco ao Templo; pois a rua descobre o deus
dos caminhos, bem como a anarquia coroada, multifacetada, da multitudo em movimento. Enquanto
espaço político, a rua tem vida própria,
libertando-se até mesmo dos lugares aos quais
ela leva, de tal modo que ela devém elo que liga o povo a ele mesmo, não exatamente
ao seu passado, mas à sua condição ativa de povo por vir.
Eu amo as ruas.
João do Rio
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