O
pensamento político de Espinosa tem um ponto de apoio fundamental: a ideia de um
poder instituinte originário. Somente
o poder instituinte originário é, de fato, poder ontológica e democraticamente afirmado. O poder instituinte antecede o poder
constituinte: aquele institui, primeiramente, a si mesmo como fonte de todo
poder instituído. O poder instituinte é sempre afirmação, jamais negação: ao
afirmar-se, ele já faz desparecer todo instituído que o nega, pois nada tem
mais força do que o poder instituinte originário, quando este se une a si mesmo.
Afirmando-se, ele também se torna constituinte, para assim constituir novas
formas de positividade jurídica e social .Todos os outros poderes ( do juiz, do
policial, do deputado, do chefe do executivo, etc.) são poderes derivados, isto
é, eles não existem por si: eles somente
podem ser exercidos quando não se colocam contra ou ameaçam o poder instituinte
originário. Mesmo a lei é um poder derivado. Juízes servem a um poder derivado
( o poder da lex), parlamentares recebem um poder que não lhes pertence e que,
por isso, pode lhes ser tirado pelo poder instituinte originário, e tão somente
por este ( ou em casos previstos em lei ou regimento).
O
poder instituinte é “originário” não porque esteja no passado distante. Na
verdade, ele não está no passado histórico ou existe enquanto promessa de um
futuro igualmente histórico. O poder
instituinte cria história, desfaz outras, em razão de um tempo que é o das rupturas inovadoras. Ele é originário em razão
de cada um ser parte dele, porém não enquanto cada um é professor, aluno,
filiado a partidos ou sindicatos, igrejas ou associações. Ele é originário
porque antecede a todas essas determinações sociais instituídas. E se alguém é,
o tempo todo, apenas o que instituíram que ele deveria ser, jamais este compreenderá
ou fará parte do poder instituinte originário, ou compreenderá a sua força produtora.
O poder instituinte originário torna a
todos artistas, mais do que teóricos ou juristas. Ninguém é, por natureza,
médico, policial, deputado, presidente, etc. Tais designações são instituídas socialmente.
É o poder instituinte que institui a
sociedade onde passarão a existir designações e práticas instituídas. Tudo é
instituído, menos o poder instituinte. Tudo é produzido, e assim afirma o poder
instituinte do qual nasce.Nenhum outro poder antecede o poder instituinte originário, assim
como nenhuma vida pode anteceder a vida , a não ser sendo mais viva. Manoel de Barros diz que tudo o que vem
primeiro “tem primazia”. O poder instituinte originário é o poder da primazia, e não dos privilégios.
Para
a maioria dos pensadores políticos modernos que inspiraram tanto
liberais quanto socialistas , o poder político nasce com a
renúncia ao direito natural. Mas em Espinosa o direito natural é irrenunciável: ele é o direito que precede
o chamado direito do Estado , suas leis e sistemas de representação. O povo que
renuncia ao poder de instituir torna-se servo consentido da potestas que o
enfraquece e entristece.
O
direito natural , em Espinosa, tem outro nome: ética. “Direito natural” não
significa a existência meramente biológica ou material. À época em que Espinosa escreveu e
viveu, “natureza” era entendida como sinônimo de essência. E a essência de algo
é o princípio que a faz ser, existir, agir. Assim compreendida, a natureza
implica o corpo e a mente. Outra distinção importante feita por Espinosa é
aquela que envolve duas noções: potentia e potestas. Esta última palavra pode
ser traduzida por “poder”. Contudo, perde-se completamente o sentido da obra
política de Espinosa quando também se traduz potentia por poder.Em latim,
potentia também tem por sinônimo jus, ao
passo que lei é a tradução de lex. O direito natural não é lei que obriga isto
ou aquilo. O direito natural também não é direito à alguma coisa. O direito
natural é a própria existência que, por existir, já é direito a si mesma. Ninguém
existe por obrigação, mas por uma espécie de necessidade que não se opõe à
liberdade. É a lei instituída pelos homens que determina o que é justo ou
injusto. Existir, porém , não pode ser algo justo. Se o fosse, haveria a
possibilidade de um existir injusto. O existir é. Ele não é justo ou injusto,
embora isso não signifique que existir seja indiferente ao justo e ao injusto
que as leis determinam. Pois o injusto é o que diminui o direito natural, ou
existência, de cada um ; o injusto é o que ameaça a potência de
cada um.
A
ética não pertence ao campo dos valores dicotômicos, como bem e mal, justo e
injusto, lícito e ilícito. A ética é o campo da existência. Uma existência não
é justa ou injusta, ela é potente ou impotente. Ser impotente significa: ser
menos do que se pode ser.
Segundo Espinosa, o homem deseja mais mandar
do que obedecer. Por exemplo, a criança cresce querendo mandar, e somente o
aprendizado, e não o mero castigo, a
ensina a obedecer. Mas ela não é má por querer mandar , tampouco há mais
virtude em obedecer do que em mandar. O viciado obedece ao vício, preterindo o
mandar em si.O falastrão obedece sua língua, mas quem sabe guardar silêncio manda em sua boca. O homem
livre não é aquele que manda nos outros, o homem livre é , antes, aquele que
manda em si mesmo, que comanda a si mesmo, que tem plena posse de si. Mandar é
exercer, agir; obedecer é ser passivo. Todos os homens aspiram a tal poder de
comandar, embora confundam como conquistá-lo e exercê-lo, pois imaginam que o
poder sobre si virá mediante o poder sobre os outros.
O
que vale para um homem vale igualmente para um partido: um partido que não
comanda a si mesmo quererá poder para mandar nos outros, subjugando-os. E estes outros
partidos também acharão que ter poder é mandar nos outros através do Estado
conquistado. Em Espinosa, a lei é um comando, nunca um comandado. Ela é um comando porque
expressa um poder originário que a instituiu para ser expressão dele. Se a lei for apenas comando de alguns, destes ela será
uma comandada: ela perderá sua atividade e será, ela própria, um padecer de um
poder que se colocará acima dela. Além disso, ela será vista apenas como ordem por
aqueles que não a comandam. Contudo, se tal acontece, o problema não está na
lei em si, mas naqueles que aceitam , sem resistência, serem comandados,
submetidos àquilo que os enfraquece.
Espinosa
acredita que o poder social nasceu para que os homens mandem em si mesmos sem
que esse mando seja opressão ou repressão de uns poucos sobre muitos ou de
muitos sobre poucos. Assim, o único poder que possibilita aos homens mandarem
em si mesmos, sem que apenas alguns mandem e outros obedeçam, esse único poder
é o da lei, da lex. Somente através da lei os homens mandam em si mesmos e ,
mandando, são livres, de tal maneira que desobedecer a lei é desobedecer a si
mesmo através de uma burla feita a todos. Mas a lei, em Espinosa, não é todo o
direito, ela é apenas instrumento do Direito, pois o único direito é o natural.
A vida social nasce quando delegamos ao Estado
o poder de agir por nós. Mas apenas certas coisas podem ser delegadas, outras são indelegáveis. Nós delegamos ao
Estado o poder de agir acerca de tudo aquilo que envolve a sobrevivência do corpo.
Todavia, é indelegável o que concerne à existência do espírito, embora as duas
existências, a do corpo e a do espírito, estejam interligadas. Delegar não é
renunciar.
As
pessoas que recebem nosso poder de agir têm, por isso mesmo, o poder social.
Contudo, elas também existem e , por existirem, não renunciam ao direito
natural, à potência. Mas quando tais pessoas se valem do poder que receberam e,
burlando as regras, tiram o máximo proveito para si mesmas, tais pessoas se
colocam em uma obscura região que já não é mais a do direito natural, mas que
ainda não é o social. Essa região
obscura, nem jus e nem lex, é o estado de natureza: este não é natural
(potência) ou social ( potestas), ele é pré-social. Nele imperam as paixões tristes.Ele é um querer mandar na
própria lei, ou um querer dobrá-la usando a força, seja a força física ou a
força da moeda corrompedora.
Por
natureza, a criança quer mandar, e nisto não há mal, pois não há mal na
natureza. Educada, ela aprende a obedecer a lei , compreendendo esta última como
comando dela mesma, de sua natureza. Mas o que caracteriza o estado de natureza
é que, nele, um indivíduo sozinho , ou um grupo de indivíduos, imagina que pode
desfazer o poder da lei sem evocar a
potência da ética. Somente o povo pode, afirmando a si mesmo, desfazer o comando da
lei, quando esta já não é mais o seu próprio comado democrático, plural. Quando
um ou alguns querem fugir da lei, tal ação configura crime. Mas quando o povo
desfaz a lex em nome do seu direito, tal ato é uma afirmação da liberdade. Por
esse motivo, a causa da corrupção e outras mazelas não é a natureza, tampouco a
sociedade . A causa dessas tristezas e ódios é o furtar-se à natureza , bem
como o querer comandar sem ser por intermédio das regras . O direito natural é o campo da potência, a
esfera social é o lugar das regras, já o pré-social é a obscura zona da qual
alguns se servem para negar ética e regras, jus e lex.Mas quanto mais alguém
deseja esconder-se nessa zona, mas este “esconder-se” aparece.
Assim
como o direito natural é insuprimível, a
não ser destruindo a vida de alguém ou cometendo o genocídio de um povo, também não se pode instituir um campo social imune à possibilidade de
alguns viverem no estado de natureza. E é para isso que existe a lex: para a
defesa da pluralidade democrática. Ditaduras e fascismos criam apenas indivíduos
dóceis ou dissimulados, pois toda ditadura e fascismo crê que o homem é um ser
cuja natureza é má. Caberia a um Estado forte corrigir a natureza torta do
homem, e extirpar os “incorrigíveis”.
Para
Espinosa, a natureza humana não é torta ou reta: ela é. Além disso, a questão
fundamental não é defender os contratos, mas sim garantir que eles possam ser
suspensos, caso o direito natural de todos corra risco. O direito natural corre
risco quando um grupo pretende destruir o instituído pondo-se no lugar da
pluralidade instituinte.Apenas um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, não têm
poder para suspender o instituído pela multiplicidade instituinte. Somente a potência instituinte tem esse poder. Por
outro lado, não é por um contrato que a sociedade nasce, ela nasce por uma
delegação de um comando, e não pela obrigação de obedecer a contratos.
Os
contratos jurídicos são precedidos por um contrato social, assim professam os
filósofos políticos clássicos. Ora, todo contrato envolve, no mínimo, duas
partes, separando-as. Espinosa recusa esse modelo contratualista como fundador
do liame social. Pois se a sociedade nascesse de um contrato, de um lado se encontraria o povo enquanto multiplicidade heterogênea, e do
outro estaria o Estado (o "Um"). Mas como poderia haver contrato entre o povo e aquilo
que nasce por delegação dele? Não pode o mais potente se submeter ao menos
potente. Mais potente, em Espinosa, é quem é mais direito.
Um partido, um juiz,
um presidente, um deputado, etc. recebem um poder que somente pode existir em razão da potência ou direito natural do povo ( embora a palavra "povo" não traduza muito bem a multiplicidade instituinte que constitui a multitudo). Quando
o direito instituído perde sua relação
com o direito natural ( que é, inclusive, o único direito de fato ), Espinosa
afirma que é preciso, nesse caso, fazer retornar o poder àqueles que , ontologicamente, o
possuem : o povo. O povo não é uma classe, o povo é uma multiplicidade
heterogênea. Aqueles que mais ambicionam existir como um todo à parte, seja sob
a capa de um partido ou de uma instituição do Estado, estes sempre temem a multiplicidade,
e contra ela sempre acham justificativas para evitar que o poder volte à
potência que o gerou.
Em
certas situações onde dois ou mais grupos querem existir à parte, pondo em
risco o existir plural de todos, nessas situações, preconiza Espinosa, é
preciso desfazer a potestas instituída. Porém não a serviço de um grupo ou
outro, mas a serviço do povo, para que novamente se ordene, planeje,
proponha-se, através de ideias , e não da força, outras maneiras de instituir
nova potestas por intermédio de meios legais, incluindo eleições gerais. Pois o poder nunca é posse ou um fim em si, ele é produção de meios que favoreçam
a existência. Não há direito natural que possa existir sem uma sociedade,
embora toda sociedade exista em razão de um direito natural que não deixa com
que ela se feche ou se autodestrua em virtude de bandidos e corruptos.
Quando
uma sociedade perde o vínculo com a ética, isto é, com o direito natural
enquanto afirmação da heterogeneidade, quando isso acontece grupos em confronto
arvorarão para si uma razão exclusiva, em guerra civil com a razão do outro
grupo .Mas a razão nunca briga consigo mesma, apenas paixões brigam entre si,
sobretudo as paixões tristes do ódio e da vingança E mais violento será o confronto quanto mais
todas as cores possíveis forem reduzidas ao preto e branco, ao sim e não, ao pró ou contra.
Para
Espinosa, existe uma alegria passional que tem por contrário um ódio igualmente
passional. Contudo, existe ainda uma alegria ativa que não tem contrário, pois
é afirmação da própria vida múltipla. Do mesmo modo, existe uma democracia
representativa que tem por contrário tiranias e fascismos de toda ordem. Mas
existe ainda uma democracia originária, voz e expressão da multiplicidade
ontologicamente existente. Essa democracia originária não é representativa: ela
não pode separar-se de si mesma para, em outro plano distante de si, colocar-se
como representante de si mesma. Essa democracia originária não é representativa,
ela é produtiva: ela produz , sobretudo, os meios que impedem que ela seja
negada, dividida em duas partes ou enfraquecida. A democracia originária produz
tão somente uma coisa: democracia, pois a democracia é, ao mesmo tempo, produtora e
produto dela mesma.
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