domingo, 24 de abril de 2016

manoel de barros: "o andarilho não precisa do fim para chegar"

"Poeta:
sujeito com mania de comparecer
aos próprios desencontros."

Manoel de Barros




Deixe-me ir, preciso andar...
Se alguém por mim perguntar,
diga que só vou voltar
depois que me encontrar.

Cartola


A linha de fuga é produção de uma desterritorialização
que se reterritorializa em um novo território  que não lhe pré-existe.

Deleuze & Guattari



O andarilho

“O andarilho sabe tudo sobre o nada" ( 1997, p. 47). Este nada é o dos nadifúndios .Ele anda "atoamente" , pois “vagabundear é virtude atuante para ele” ( 1997, p. 47). “Vagabundear” provém de “vaga”, “onda”. O vagar das ondas. Edmond Husserl, em seu livro Origem da Geometria, afirma existir uma proto-geometria cujo objeto de estudo são as “essências vagas”, também chamadas de “essências anexatas”. Não se deve confundir o anexato com o inexato. O anexato é inexato por essência, e não por acidente. Ele não é, portanto, uma cópia imperfeita do Exato. O anexato possui uma forma, mas é uma forma "vaga", e “vaga” é o nome que também se dá ao ritmo do mar, enquanto fluxo. A vaga expressa um ritmo, mais do que um ir em linha reta. O anexato é, como diz Manoel de Barros, uma "forma em rascunho".A forma de tudo aquilo que é anexato constitui uma passagem onde o que lhe está dentro lhe desborda, posto que em intensa variação.Enquanto a forma precária do inexato tende a se apagar, a forma em metamorfose do anexato não pára de se reinventar.
Os andarilhos não são exatamente os que andam em estradas já prontas, eles não são peregrinos ou meramente viajantes. Os andarilhos são os que inventam caminhos, sobretudo os caminhos que inauguram sentidos para a linguagem: sinto que “a estrada bota sentido em mim" ( 2010b, p. 59); o sentido está no meio da estrada, e não no seu começo ou fim.  E é talvez por isso que “o andarilho não precisa do fim para chegar”,(1996 p. 71).Os andarilhos “carregam a liberdade deles nos passos que não têm onde parar” ( 2010b, p. 168): “no fundo os andarilhos só estão apalpando a liberdade. O caminho deserto deles é viver debaixo do chapéu” (2010b, p. 124).O “caminho deserto” é um “espaço liso” no qual se produz uma linha de fuga (DELEUZE E GUATTARI, 1980).Os andarilhos não são retirantes ou imigrantes, eles são itinerantes: eles inventam itinerários.O andarilho exerce a "pré-ciência da natureza de Deus". A "pré-ciência" é conhecimento das "pré-coisas", é conhecimento daquilo que é forma em rascunho.



- Obras de Manoel de Barros consultadas:

Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.

Outras referências:

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.

BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica  em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.

CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2005

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.

_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.

_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.

LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.

RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.


Francis Bacon Study for a Portrait of Van Gogh II, 1957













O andarilho abastece de pernas as distâncias
Manoel de Barros

Um comentário:

Anônimo disse...

Que texto lindo ❤️