sexta-feira, 3 de maio de 2013

Manoel de Barros e o conatus ( trecho de novo livro sobre o poeta a sair no segundo semestre)






Minha linguagem não tem função explicativa,
só brincativa.

Manoel de Barros



1.No poema Lacraia, o poeta nos fala de uma lacraia cujas partes foram desmembradas. Isto ele viu quando criança.O poeta, afirma Manoel, é aquele que "vai à infância e volta".Inteira, a lacraia se assemelha a um trem: neste, vagões unidos que se seguem a partir da locomotiva que vai à frente;naquela, gomos unidos a partir da cabeça.As semelhanças entre uma lacraia e um trem param sobretudo neste ponto:descarrilado, um trem sucumbe em pedaços que , por conta própria, jamais  voltam a formarem uma unidade; já quando a lacraia é desmembrada, e cada gomo/vagão seu é separado do outro, logo a "força de Deus" mostra-se onde menos se espera: cada parte da lacraia se move e busca a outra, elas se procuram. Busca na outra o todo sob o qual cada uma existe mais. Cada parte se esforça para se integrar ao todo que é mais do que a mera soma das partes.Essa força também é amor.Segundo Espinosa, cada ser se esforça para perseverar na existência. O nome desse esforço é conatus , ou desejo. Co-natus: junto ao que nasce. Assim, o conatus está sempre junto ao que nasce para permanecer existindo, pois o esforço para permanecer na existência nunca está no passado, mas no presente - não como coisa parada ou estática, e sim  como esforço dinâmico, como potência,  desejo e afirmação. Em nós mesmos, cada molécula, cada célula, cada parte que nos constitui expressa o mesmo conatus, o mesmo desejo.Existir é idêntico a esse esforço de tudo aquilo que, nascido, continua a (re) nascer a cada momento.Por isso, o nascer é um ato que nunca se completa, posto que nunca termina para aquele que se percebe como parte da natureza que é sempre nascer, e nunca morrer.Natureza vem de natura, que é exatamente nascer. Em grego é physis, que tem o mesmo sentido. O conatus é o esforço do ser finito para permanecer no infinito renascer da natureza.Manoel de Barros, por sua vez, fala em "natências" , não como data em que nascemos, mas o "tempo quando" , não cronológico,  no qual , como duração viva e intensa, estamos sempre a (re)nascer.
Cortada a lacraia em 5 partes, cada uma das partes expressa um conatus que não pode ser numericamente quantificado, posto que ele é, ao mesmo tempo, um e múltiplo. Mesmo na lacraia inteira cada parte dela, suas infinitas partes, já se esforçam para perdurar expressando o todo-lacraia, que é sua essência e ideia.O desmembramento da lacraia poderia ser em 10 ou cinquenta partes: em cada uma dessas partes o mesmo conatus se expressa de forma única e singular, como potência. É esse todo que dá a cada parte a sua inteligibilidade  e explica o fato de cada parte se mover de forma que não é apenas movimento como resultado de ações externas, pois há uma força que guia cada parte : guia não por fora, mas a partir da imanência de cada uma. As partes desejam  refazer a relação que eram, o todo que eram.Em cada parte está a expressão do mesmo conatus, ao mesmo tempo um e múltiplo, posto que multiplicidade. E mesmo na lacraia inteira cada parte dela persevera no mesmo desejo: o de continuar na sua existência, e essa é a maior perfeição que ela aspira. Uma lacraia  não precisa ser um homem ou um anjo para, enquanto lacraia e permanecendo lacraia, expressar sua maneira de ser, seu modo, sua perfeição enquanto lacraia.Segundo Manoel de Barros, as partes procuram se emendar, elas são movidas por uma emendatio, tal como o intelecto  precisa se emendar quando se acha separado do contínuo existir da vida, a começar pela vida do seu corpo. No Tratado sobre a emenda do intelecto, Espinosa afirma que todo aquele que deseja produzir algo necessita de um rascunho. O rascunho é o esboço de um ser a produzir, não de um ser a imitar ou copiar. Como se participasse dessa discussão, Manoel de Barros afirma que a poesia nos põe em "estado de rascunho", tornando-nos "formas em rascunho".Emendar não é apenas ligar uma parte à outra, mas ligar cada parte à outra em razão de um todo que faz cada parte existir mais.Isto vale para uma lacraia, como vale para um livro, um poema, uma obra, uma vida.

2.Há uma diferença entre "parte" e "pedaço".Para se poder compreender a diferença, porém, é preciso que se faça a ideia do todo. Na arqueologia, por exemplo, muitas vezes se acham pedaços. Para que estes virem partes, e se tornem mais inteligíveis e compreensíveis, é necessário fazer uma ideia do todo ao qual tais partes pertenciam, mesmo que este todo não seja dado de forma tangível, como é o caso do todo da cultura. Se não se consegue formar uma ideia do todo, do pedaço não nasce a parte.A parte faz parte, ao passo que o pedaço é o caco que restou de um ser partido.O mesmo vale para a natureza.A maioria dos homens se comporta como pedaços, não como partes.Os pedaços não se compõem, as partes sim.Frequentemente, a passionalidade e a ignorância tornam o homem um pedaço com contornos pontiagudos, prontos para ferir ou supostamente se defender da pontiagudez do outro, o que finda por ferir, primeiro , aquele que assim pensa e age, pois o fere por dentro a ideia confusa e equivocada, fruto que é da  tristeza e do ódio.A natureza não é um Frankenstein, mas uma polifonia.Acumular muitos pedaços quantitativamente é menos do que ter de uma coisa apenas uma parte, por mais diminuta que ela seja.Através da parte sempre se vê o todo do qual ela faz parte, ao passo que quanto mais pedaços se vê e tem menos se enxerga e se conquista, menos se compreende.A natureza não é feita de pedaços, ela é feita de partes. O mesmo vale para nossos desejos e ações.No homem livre cada pensamento e ação é uma parte dele, ao passo que no escravo as ações e os pensamentos são vividos como pedaços sem muito sentido, posto que deles está ausente o todo, que é o que dá vida.No amor e na amizade  cada um é uma parte, não do outro, mas do encontro.A infelicidade acontece quando um quer fazer do outro um pedaço seu , na ausência de um todo, de um bom encontro.As imagens e aparências somente deixam de ser pedaços, e se tornam partes, quando aprendemos a ver para além delas, em busca das essências que elas expressam.A essência não é uma forma estática, ela não é uma figura com contornos e limites  rígidos; a essência , diz o poeta, é “um minadouro”: dela mina e brota um sentido sempre novo,  que ela retira de sua imanência, de seu coração.

Na minha infância havia um personagem louco que caminhava pelas ruas do bairro portando um pedaço de um espelho.Ele nunca olhava para as coisas e pessoas diretamente, mas sempre através daquele pedaço de espelho.Apressadamente, contorcendo-se, ele se esforçava para em muitas posições mover o tronco e a cabeça, virando também o pedaço de espelho em várias direções, como se quisesse apreender dos seres todas as suas faces, tal como o faz o artista cubista.Mas naquele pedaço tudo o que se refletia eram pedaços, um mundo em pedaços.O louco carecia da ideia que, dando saúde a seus olhos, permitiria que ele visse cada coisa como parte de um todo, a começar por ele mesmo. Aquele pedaço de espelho pertencera a um espelho cuja unidade se quebrara e jamais voltaria, talvez, a ser restituída.E, junto com a unidade perdida, perdeu-se para aquele homem a unidade da linguagem, do seu corpo, da sua mente.Assim, procurava ele pela unidade onde ela jamais esteve.E a mera soma de pedaços só faz aumentar o tamanho do todo perdido ( como as muitas fotos guardadas do amor que acabou).
O todo é sempre maior que suas partes. Mas é um maior  que não torna cada parte dele menor do que si mesma; ao contrário, quanto mais cada parte  expressar, em seu íntimo, esse todo, mais ela se torna maior , mais ela existe, mais ela se compõe com a outra parte, mais ela adquire singularidade e afirma sua diferença, sem negar ou destruir a outra parte, que é outra parte do mesmo todo. O que é verdadeiramente maior nunca diminui, nunca age por "comparamentos", mas por "comunhão". Enfim, diminuir é negar ( e como poderia o todo negar sua parte? Se ele o fizesse, estaria negando a si mesmo, o que seria um absurdo!).
Fernando Pessoa narra em um de seus poemas um fato que ele presenciara ainda bem jovem: distraída, a ama deixa cair , do alto de uma escada, um vaso de rara porcelana. O vaso rola pela escada, salta sobre o último degrau e se quebra, esparramando-se pelo chão em incontáveis pedaços, como estrelas sem um céu.Em cada um dos pedaços, Pessoa se viu inteiro, como "outro": "e havia mais cacos do que havia de louça no vaso".
Conforme afirma Arnheim, "um pedaço é como uma melodia interrompida pela metade", enquanto que a parte é feito um momento singular que se conecta com os outros momentos singulares para durarem na continuidade de uma melodia polifônica.O pedaço é sempre incompleto, ao passo que a parte somente se completa por não ser, sozinha, inteira.
A parte é partícipe, e extrai seu sentido não sozinha, mas em conexão. O pedaço, ao contrário, é sempre desconexo, como se fosse um todo à parte: à parte do todo, à parte de si mesmo. Esse existir como um todo à parte é a solidão característica de tudo o que é pedaço, enquanto que a diferença constituinte de toda singularidade se expressa e se afirma em um fazer parte, mesmo que seja um fazer parte de um "todo ainda por vir", como diria Nietzsche. Esta conexão que constitui uma singularidade recebe, em Deleuze, um nome: agenciamento.


3 comentários:

Anônimo disse...

Acabo de ler o seu outro livro sore Manoel de Barros ("Poética do deslimite"). Muito interessante e bem confeccionada a "costura" do poeta com os pensadores relacionados (destacando-se Deleuze).
Ao mesmo tempo, "um ajuda o outro a ser compreendido", as correlações fazem com que se implicando, expliquem-se mutuamente (o poeta e os outros.
E é impressionante as coincidencias de perspectivas de D com M. de B.! Até de termos!
Tadeu.

Anônimo disse...

Acabo de ler o seu outro livro sore Manoel de Barros ("Poética do deslimite"). Muito interessante e bem confeccionada a "costura" do poeta com os pensadores relacionados (destacando-se Deleuze).
Ao mesmo tempo, "um ajuda o outro a ser compreendido", as correlações fazem com que se implicando, expliquem-se mutuamente (o poeta e os outros.
E é impressionante as coincidencias de perspectivas de D com M. de B.! Até de termos!
Tadeu.

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Obrigado, Tadeu.
Sim, são impressionantes as convergências. Nesse novo trabalho, achei algumas outras: o poeta fala em "raízes crianceiras", que lembram o "rizoma" de Deleuze & Guattari;fala também no "canto dos passarinhos", que me parece muito próximo do "ritornello"; e há ainda a referência ao "Andarilho", que é o personagem das itinerâncias ( Mil Platôs), o nômade dos "espaços lisos"( Mil Platôs).
Mas talvez o caso mais impressionante seja o emprego, por ambos, da ideia de "agramaticalidade"...
Um abraço,