sábado, 13 de abril de 2024

Os hiperbóreos...

 

Segundo Nietzsche, há filosofias do “sol nascente” : nestas filosofias,  o pensamento  é como o sol que nasce e ilumina a natureza que a noite obscura ocultava. As filosofias do sol nascente coincidem com a própria origem da filosofia:  assim foi a filosofia  dos pré-socráticos, como um sol nascente a revelar a natureza, a “physis”.

 Mas  existem também filosofias do “sol poente”, filosofias do ocaso: elas coincidem com a filosofia europeia, na qual este mundo em que vivemos hoje foi , em grande medida, gestado. Essas filosofias substituíram a luz nascente da physis poética , tal como existia em Tales ou Heráclito,  pela luz poente da razão tecnocrática  , sendo o niilismo reativo  a sombra que acompanha essa luz fria , utilitária e despoetizada.

Porém  há ainda , segundo Nietzsche, a “filosofia dos hiperbóreos”. Entre os gregos , “bóreo” era o nome do vento mitológico conhecido como “vento do norte”. Esse vento por vezes também era chamado de “vento da morte” ( nos vários sentidos que a morte tem). Assim, o hiperbóreo era um lugar que ficava  além do que podia alcançar o vento bóreo, o vento da morte ( em grego, o prefixo “hiper” também significa: “o que está em lugar superior”).

Os gregos diziam que para as  regiões hiperbóreas iam alguns deuses, como Apolo, quando queriam recuperar  e renovar as forças. A região hiperbórea não é exatamente o norte da Europa,  e sim o limiar  desta .

Diferente do que se imagina,  não é para o norte que as bússolas apontam ; as bússolas apontam para o hiperbóreo , sobretudo as bússolas que indicam necessárias direções novas para revitalizarmos nossas forças.

O que mais caracteriza a região hiperbórea da terra é que nela o sol  jamais morre : ele está sempre no horizonte e corre sobre as montanhas,  horizontalmente,  mantendo sempre translúcido um  céu de imortal azul.  Na região hiperbórea é sempre  aurora, alvorada, amanhecer...  

“Hiperbóreos”,  assim deveriam ser  os pensadores  do futuro, acreditava Nietzsche,    para assim vencerem o vento da pulsão de morte e suas formas negacionistas, necropolíticas e niilistas,    que sempre tentam subordinar o valor da vida    ao dinheiro  e ao  mercado , incluindo o mercado da fé .

Como reconhecer um hiperbóreo? Um hiperbóreo é aquele em cujo horizonte aberto o sol da Arte , como um farol, sempre brilha intensamente  e nunca morre.

 

( imagem: capa do livro “O fazedor de amanhecer”, do poeta-hiperbóreo  Manoel de Barros; a capa e as ilustrações do livro foram feitas por Ziraldo, a quem deixamos esta pequena homenagem)




Bethânia lendo o hiperbóreo-Manoel ( trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna):




O hiperbóreo-Cartola:



sábado, 6 de abril de 2024

o monturo

 

Há um poema de Manoel de Barros no qual  ele descreve o que aconteceu  num monturo que  ele encontrou  no meio de um  caminho ermo.

Monturo não é exatamente um monte de lixo. No  monturo estão coisas que já deram sentido a uma vida, coisas que eram   partes de um todo, mas que agora são apenas fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.

No monturo podiam ser  vistos:  os cacos do que sobrou de uma taça que outrora já esteve repleta de vinho  ; os restos de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado   ;  a metade de uma concha que talvez já tenha guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram  no céu aberto como partes de uma asa; a casca seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha  de folhas amarelas que vicejaram  verdes  na primavera; os  ponteiros parados de um relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e  roído pelos anos em  seu solado gasto ; os retalhos desbotados  do que antes foi uma fantasia colorida; um álbum de retrato cujas fotos  o esquecimento apagou.

Junto a esses restos  também estavam: cacos de certezas que pareciam inquebrantáveis , farrapos de verdades que pareciam eternas...

Mas debaixo do monturo aconteceu uma surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.

Da semente brotou  um caule em  rascunho  . O caule   se enroscou e subiu por um pequeno raio de sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a perseverante  semente fez dele um útero do qual nasceu uma flor: um reluzente  lírio.

 

 

 “Poeta é ser que vê semente germinar.

Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.”(Manoel de Barros)

 

 

"Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético.”(Manoel de Barros)

 

“Fornecer aos pensamentos fechados uma corrente de ar fresco.” (Bob Dylan)

 

 “A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia,

 e pela dor eu descobri o poder da alegria.”

(Belchior, trecho da música “Fotografia 3x4”)








sexta-feira, 5 de abril de 2024

a origem do sentido

 

                                    A ORIGEM DO SENTIDO[1]

 

 

A palavra “semântica” vem do grego “sema”, que também costuma ser traduzido por “signo” ou “sinal”. Signo ou sinal é tudo aquilo cuja presença aponta ou sinaliza para outra coisa . Por exemplo, a palavra “casa” é o signo que “representa” ( re-apresenta) a casa concreta.

Na Grécia antiga quando alguém morria o corpo era cremado. Mas o fogo não consumia tudo. E antes que ele se extinguisse totalmente, as últimas chamas eram apagadas com água e vinho. A água para apagar o fogo, e o vinho para co-memorar, criar memória, daquela vida. Morte não é apenas despedida, também é celebrar que houve aquela vida.

Ao fim do rito, restavam apenas os fragmentos dos ossos alvos se destacando sobre o fundo das cinzas. Esses fragmentos eram recolhidos e guardados numa pequena urna, que então era plantada no seio da terra. Para os Gregos , colocar a urna no seio da terra era um processo semelhante ao plantar a semente , para que dela brote outra vida. Para os Gregos, só a vida é absoluta, nunca a morte. “Ab-soluto”: o que não é soluto, o que não se dissolve. Por mais que o fogo dissolva os ossos, algo daquele que viveu permanece ainda vivo.

Depois , era confeccionada uma pequena tabuleta com o nome da pessoa ali plantada e um epíteto , isto é, uma pequena frase semelhante a um verso que expressasse e traduzisse a vida daquele cujo nome estava escrito na tabuleta, que então era afixada sobre a  terra onde a urna foi plantada.

A tabuleta “sinalizava” e dava a conhecer uma vida, agora ausente. A tabuleta era uma presença que sinalizava uma ausência. Os gregos chamavam essa tabuleta de “sema”, pois ela era um signo que representava uma vida ausente.

Isso talvez ajude a compreender a enigmática frase  de Platão na Carta Sete, na qual o filósofo afirma que a filosofia  não pode ser escrita, a não ser secundariamente. Pois a filosofia nasce de uma experiência originária do filósofo com  a Ideia que o torna filósofo, sem a mediação de signos. O texto escrito é o relato dessa experiência ou experimentação transcendental. A filosofia é expressão da alma e corpo vivos expressos sobretudo pela palavra viva , e não pela palavra escrita como sinal que aponta para uma ausência, para uma morte.

A palavra “sema” é prima da “palavra “soma”, que em grego significa “corpo” ( como em “psicossomático”).Assim o sema é o corpo da palavra ( ou significante) , ao passo que a alma da palavra é seu sentido, que  aponta ou sinaliza para o ser ausente que a palavra re-apresenta.

Mas acontece algo diferente com a palavra do poeta, pois a palavra poética potencializa ainda mais o sentido. A palavra poética não re-apresenta algo ausente , ela faz com que se torne presente nela uma existência que se torna absoluta.

“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que a  seja”, explica-se o poeta Manoel de Barros. A palavra poética abre-se para o poeta amorosamente, para que a poesia que o poeta escreve não seja apenas re-apresentação do mundo, mas criação de outros mundos cujo sentido não se esgota apenas na palavra. É por isso que o poeta também diz: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, pois poesia não é representação do mundo dado , mas criação de outros mundos possíveis.  O poeta também diz que “escreve com o corpo”. O corpo expressivo[2] do poeta   não é apenas carne e osso, mas também espírito tangível que igualmente  é fogo. Não como aquele fogo que destroi e consome, como o fogo do ritual funerário, e sim fogo que aquece e ilumina, chama que é da vida. Fogo assim é o Princípio ou Arqué de tudo, ensina Heráclito.

 




[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Esse corpo expressivo é o que Deleuze, inspirando-se em Artaud, chama de “Corpo sem órgãos”. Tal corpo expressivo não pode ser explicado apenas pela ideia de função, isto é, mediante um sentido utilitário ou “orgânico”. Quando Espinosa afirma que “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”, ele também está se referindo a ações que não se explicam pelo aspecto orgânico e funcional do corpo. Quando a bailarina dança, por exemplo, ela põe em ação seu Corpo sem órgãos; quando a cantora canta, igualmente é seu Corpo sem órgãos que se expressa por ela. Quando o poeta escreve seus versos, o corpo da palavra não se explica mais pela funcionalidade da gramática, uma vez que a palavra , ela também, se torna um Corpo sem órgãos, um corpo expressivo.  

segunda-feira, 1 de abril de 2024

ditadura nunca mais

 

Eu tinha cerca de 12 anos e fazia o antigo ginásio. Era uma época difícil, sufocante...A  ditadura militar censurava, perseguia ,  prendia e torturava quem pensasse diferente do poder autoritário dominante.

Quem não passou por isso não faz ideia da violência, violência física e simbólica, da ditadura . Somente quem nela foi carrasco, cúmplice ou capitão do mato tem saudade daquela triste época.

Quando cresci e estudei história , aprendi que esses perseguidos pelo terror eram pessoas que sentiam que o mundo precisava ser mudado , e agiam para isso. Ainda criança, eu também sentia que o mundo dos homens estava errado , mas não encontrava nos livros lições que dissessem isso, pois pensar estava proibido.

Àquela época, a escola não era um espaço de descobertas : a ditadura controlava tudo, e usava as cartilhas e   tabuadas como meios de adestramento.

Poesia e literatura? Só eram aceitos os parnasianos, como aquele poeta elitista autor do Hino Nacional que a gente não entendia  nada da letra , porém nos obrigavam  a cantar em posição  militar, rigidamente, batendo continência para a bandeira, como se ela fosse um general sisudo sobre o Monte Parnaso.

Até que chegou à escola uma professora nova de língua e literatura. Tudo nela era diferente: a roupa,  o jeito , o olhar , enfim, a pessoa. Foi a primeira vez que entendi de verdade o que era uma educadora e tudo o que a arte pode em termos de (auto)descoberta .

Em vez de adotar livros parnasianos para a gente ler decorando datas e palavras que a gente não entendia, palavras mortas que nada nos diziam a não ser: “obedeçam!”, ela adotou um livro diferente cujas palavras  a serem interpretadas eram letras de música  dos Festivais da Canção acontecidos recentemente.

Assim , foi como poesia que li , pela primeira vez, Chico Buarque, Caetano , Paulinho da Viola e Gilberto Gil. Antes de conhecer a música deles , eu me empoemei , ainda criança, com a poesia  sob a forma de letra. Algo em mim se horizontou e veio para fora: era eu mesmo,  ainda de mim desconhecido.

Foi a primeira vez que  experimentei  o que é ler, pois ler é ler-se. Eu não entendia todas as palavras , mas sentia que eram palavras vivas que me ensinavam  um sentido que eu sabia ser o mesmo que os milicos não queriam que a gente aprendesse, um sentido libertário da plural e popular poesia.

A querida professora transformava  a sala de aula  numa lúdica academia , uma academia livre de adestradoras cartilhas, onde  a gente era alfabetizado  no  pensar lendo a poesia de  Chico, Caetano, Gilberto Gil , Geraldo Vandré e Paulinho da Viola.

 

Ditadura nunca mais! Democracia sempre!














quinta-feira, 28 de março de 2024

Uma das palavras mais bonitas

 

Uma das palavras mais bonitas da filosofia grega  é “eudaimonia”. No coração dessa palavra está o nome “Daimon”, pois “eudaimonia” é : “estar na companhia de um bom Daimon”.

Em português,  “eudaimonia” significa  “felicidade”. Para os gregos, felicidade não é andar sozinho, mesmo que seja numa carruagem de ouro; felicidade é andar na companhia de um “bom Daimon”, agenciado.

Na mitologia, o Daimon não mora no inacessível e aristocrático Olimpo, o Daimon mora onde houver a necessidade de uma travessia, pois ele é a divindade dos caminhos, sobretudo    dos caminhos que urgem ser criados quando precisamos atravessar  desertos  ,  escapar de labirintos ou transpassar  rochedos. 

 Para os gregos, a felicidade não é propriedade egoica de um indivíduo, a felicidade é   agenciamento coletivo: impossível o indivíduo ser feliz se a pólis está triste, tampouco pode o indivíduo ter saúde com a pólis  doente.

Aristóteles dizia que a felicidade é o que a ética  visa alcançar , já Espinosa ensina que felicidade não é um prêmio por sermos éticos, a felicidade é a vida ética mesma. A felicidade não está no ter, e sim no ser.

Mas o Daimon só nos faz companhia se aprendermos a ser companhia. Nietzsche diz que certa vez um Daimon soprou esta lição em seu ouvido: “Não aprecio  seguir ou  ser seguido: para me acompanhar aonde vou, é preciso aprender a amar andar ao lado”.

“Companhia” vem de “com-pane”. E “pane” é, em português, “pão”. Assim, fazer companhia é  saber “dividir o pão”. Companheiros: “aqueles que dividem o pão”.

Há o pão que alimenta o corpo, como aquele que faltou ao povo e trouxe o sofrimento  da fome. A elitista Maria Antonieta, zombando, disse: “Não têm pão? Que comam brioches!”

Quando um povo não aceita  ser rebanho de Marias Antonietas de ontem e de hoje,  nasce nele    a fome por outro pão: o pão da dignidade e da justiça, pão que  tem o fermento da arte, da educação e da poesia,   pão que alimenta a luta contra as tiranias.

 

( este livro é apenas uma sugestão )



 

Em homenagem a Jorge Ben Jor ( que no último dia 22 faria 85 anos):



quarta-feira, 20 de março de 2024

Outonos

 

Certa vez, eu estava explicando para uma turma um poema de Fernando Pessoa. Era uma turma muito simpática e atenciosa, que sempre pedia para eu tocar nesses temas poéticos-filosóficos , apesar de não caírem na prova...rs...

Quando terminei a narrativa, uma aluna  perguntou de repente  : “Professor, qual seu signo?” Quando respondi “touro”, ela ficou incrédula, e disse com humor : “professor, você não pode ser touro, os professores de touro gostam de ensinar apenas coisas utilitaristas sem poesia ...rs...”

Então, ela me pediu a data e hora do meu nascimento, incluindo os minutos,  ela queria fazer meu “mapa astral”. Como eu sabia esses detalhes,  passei a informação para ela. Na aula seguinte, ela entrou sorridente na sala e disse: “Sabia que havia alguma coisa diferente, você  é assim por causa de seu ascendente: Aquário!”

Em homenagem àquela turma simpática  ( e a todos que , presencial ou virtualmente, apoiam meu trabalho), elaborei um pequeno “horóscopo filosófico”, no qual o céu sob o qual nascemos expressa a atmosfera que irradia de  determinado filósofo .

Àquela época, eu morava perto de uma pracinha. De minha janela via as mães com seus filhinhos nos carrinhos de bebê. Deitados dentro dos carrinhos, os bebês ficavam o tempo todo  olhando para o céu. Pensei comigo: “se tudo nos influencia, ainda mais quando somos crianças, deve haver uma profunda influência dessa  primeira imagem do céu na alma e personalidade dos bebês”.

Assim, os que nasceram no verão veem um céu com  um sol intenso. Os bebês que trouxerem  esse sol para dentro deles se tornarão criadores-artistas . Chamei esse céu de CÉU DE NIETZSCHE.

Os que nasceram no inverno, ao contrário, veem um céu cinza, e assim terão que buscar  criar um sol dentro de si . Os que nascem sob esse céu tenderão a ser mais introspectivos, buscando mais a “luz interior” . Chamei esse céu de CÉU DE SCHOPENHAUER.

Os que nasceram sob o céu da primavera veem um sol que é como uma grande semente que faz tudo germinar. Os que plantarem  dentro de si esse sol-semente   tenderão a ter uma crença inabalável na vida, acreditando que a vida pode de novo sempre brotar, apesar do deserto. Chamei esse céu de CÉU DE EPICURO.

Enfim, os que nasceram no outono veem um céu de um azul profundo porém transparente, onde o sol brilha vivamente mas sem ofuscar, um sol como parte do infinito sempre aberto para voos emancipatórios: “Eu tentei me horizontar  às andorinhas” (Manoel de Barros). Os que nasceram sob esse sol e céu , se aprenderem com esse sol e céu a se horizontarem,  crescerão pensadores. Chamei esse céu de CÉU DE ESPINOSA.

Hoje começa o outono. Que a gente consiga   criar uma abertura na mente e no coração para que possam entrar a luz e o azul desse  “Céu de Espinosa”, e que a perseverança do pensar luminoso desse filósofo  nos inspire e fortaleça diante de toda forma de treva.

 

    (Imagem: “Outono”/ Monet)

 

Obs: Nesse “horóscopo-brincativo” ( “brincatividade” é ideia criada pelo poeta Manoel de Barros) poderíamos colocar outros filósofos ainda ao lado desses que mencionei para cada estação poético-existencial. Lucrécio e Sêneca, por exemplo, também são outono; Sartre , creio,  é verão; Epicteto , Bergson e Marx, primavera; e Cioran, inverno.




 

segunda-feira, 18 de março de 2024

Livro

 

Foi publicado recentemente este livro do qual participo. Apoiando-me em Plotino, falo no livro das relações entre poesia, ciência e filosofia.

Plotino possui uma maneira muito poética de ver o mundo, talvez uma das visões mais poéticas que a filosofia já produziu. Na verdade, não era sua visão que era poética, pois poético era o próprio mundo que Plotino sentiu , viveu e pensou. Assim, para ver esse mundo poético era preciso criar em si olhos para vê-lo, olhos também poéticos.

Porém,  não se trata do poético no sentido restrito  de palavra e versos, pois em Plotino, assim como  em Espinosa, poético  significa “produção”( poiésis ), no sentido do pintor que produz seu quadro, ou do músico que produz sua música, ou ainda do maestro que produz a unidade compósita, porém variada, dos diversos instrumentos que participam de uma polifonia.

Plotino diferia dos gregos também no seguinte ponto: os gregos achavam que Eros ( o Amor) deveria escolher entre a Alma ( Psiquê) e o Corpo ( Afrodite). Escolhendo a Alma, tal escolha conduziria ao amor   à filosofia; escolhendo  o Corpo, nasce dessa escolha o amor à arte e à poesia. Para Plotino, ao contrário, o autêntico Eros deve viver entre Psiquê e Afrodite, entre a Alma e o Corpo, para assim ser o elo que une a ambos. Assim, segundo Plotino,  para ser filósofo é preciso ser também poeta, pois em todo poeta existe também um filósofo. 

Referindo-se a Plotino, o filósofo Pierre Hadot afirma: “Hoje se toma por sonhador aquele que vive o que ensina .”

 

“O homem livre  nunca termina de esculpir sua própria estátua, pois a arte viva não está na pedra enfim moldada, mas no ato de fazer-se que nunca termina.” (Plotino)




 

 




"Aqueles que amaram a música e permaneceram puros quanto ao resto,

tornam-se pássaros canoros após morrer o corpo." (Plotino)

domingo, 17 de março de 2024

Elis Regina

 "Descanse tranquilo onde cantam,

  os maus não cantam."

                                    Schiller



Hoje, 17 de março, Elis Regina faria 79 anos.




sábado, 16 de março de 2024

A "caverna" e a luz

 

Em sua famosa alegoria, Platão compara a uma “caverna”  o mundo no qual vivem os homens alienados, ontem e hoje.

Esses homens não entraram  na caverna para  explorá-la. Ao contrário, eles são explorados dentro dela : nela vivem como   prisioneiros acorrentados.

Eles estão acorrentados de costas para a saída da caverna e de frente para o fundo dela. Como esses homens naturalizaram essa  condição, ignoram que são prisioneiros, não se dando conta que estão acorrentados.

As correntes não são de ferro ou aço, elas são feitas de um material que vem dos próprios homens aprisionados: elas são feitas com  suas passionalidades reativas e opiniões ressentidas, limitadas .

Ódio, ressentimento,  preconceito, medo...são exemplos de “paixões tristes”  que , como ensina Espinosa, tornam os homens prisioneiros deles mesmos e partes de um rebanho manipulável.

O mundo da caverna não é totalmente escuro, pois entra nele um pouco da luz que vem de fora.  Por isso, no fundo da caverna se projeta  o reflexo, apenas o pálido reflexo, das coisas reais que existem fora da caverna.

Mas como os acorrentados não sabem que existe um mundo fora da caverna,  aprisionados que estão ao negacionismo, eles imaginam  que o reflexo distorcido  do mundo é o próprio mundo, e assim tomam por real apenas sombras, “fake news”.

Os prisioneiros carregam a caverna não importa onde estejam:  ela é o mundo estreito dos que estão acorrentados na ignorância  e submetidos aos que os mantêm nessa condição de servos voluntários.

Na abominável caverna militar-teológico-política em que está aprisionada parte da sociedade brasileira,    os prisioneiros dela , autointitulando-se “homens de bem” , estão sempre falando em pátria e Deus;  mas a pátria e Deus deles são apenas sombras no fundo da  obscura caverna  da ignorância.  

Platão chamava de “espertalhões da caverna” os que  se aproveitam dessa  alienação  trevosa : eles  posam de governantes  e “líderes espirituais”, quando na verdade são tiranos do corpo e da alma.

Ontem e hoje , os tiranos da caverna odeiam a luz e contra ela fazem sua suja guerra , pois temem o lume  da educação emancipadora.

Pois a razão de ser dessa luz  é fortalecer quem a conhece e se autoconhece a partir dela, adquirindo assim força para agir individual e coletivamente em defesa  da dignidade e   da justiça,  para enfim pôr os tiranos  da caverna num outro lugar igualmente  em penumbra, lugar esse    que  deve ser o destino  deles : após o devido processo legal, sem anistia, a cela de uma cadeia.


( este livro é apenas uma sugestão)



 

 

Um dos “bons conselhos” de Foucault para uma vida não-fascista : “nunca se apaixone pelo poder”. Como ensina Espinosa, poder ( do latim “potestas” ) não é o mesmo que potência ( “potentia”).



quinta-feira, 14 de março de 2024

A porta de Marielle

 

No Museu da Maré há um espaço dedicado a Marielle Franco. Na exposição que leva seu nome, foi escolhido um objeto singular para nos fazer lembrar a vereadora: a porta do seu gabinete .Em sua atuação política, Marielle costumava colar mensagens na porta , além de sempre mantê-la aberta àqueles que vinham procurar por sua ajuda.

Pela ação de Marielle , aquela porta continha uma potencialidade de sentidos. E “potencialidade de sentidos” é o outro nome pelo qual atende a poesia enquanto prática de ressignificar as coisas e o mundo.

Pois poesia não é só versos: poesia também é produção de sentidos que podem transformar uma simples porta em um agente coletivo de enunciação . Transportada então para o interior do Museu da Maré, aquela porta se tornou um símbolo-mensagem do próprio ser de Marielle: porta aberta, receptiva, como seu sorriso.

Não por acaso, na mitologia era sob uma porta aberta, espaço de travessias, que se manifestava Hermes, a divindade associada à comunicação das mensagens que requerem a prática da interpretação.

Em grego, “interpretação” se escreve “hermenêutica”: “arte relativa a Hermes”. Mensagem não é a mesma coisa que informação. “A capital do Brasil é Brasília”, “dois mais dois é igual a quatro”, tais coisas não são mensagens. Mensagem é tudo aquilo cujo sentido requer a atividade de interpretação: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”, este verso de Manoel de Barros não é informação, é mensagem. “O homem é um ser político”, outra mensagem. Mensagens não são para se decorar ou reproduzir, mensagens existem para despertarem nosso pensar e nosso sentir , para assim aprendermos a ler mais do que frases ou palavras: crítica e criativamente, aprendermos a ler também o mundo.

Nem sempre mensagens se vestem com palavras, às vezes as mensagens vêm inscritas nas coisas ou são as próprias coisas portando sentidos a serem interpretados.

A porta de Marielle é mensagem que simboliza o sentido da travessia e da abertura ao outro, sobretudo ao outro que é marginalizado, injustiçado, explorado, perseguido.

Os Museus Casas são espaços que já foram residência, quase sempre palácios e mansões (em geral de gente oriunda da elite) . O museu Casa de Rui Barbosa, por exemplo, foi a casa de verdade de Rui Barbosa.

Mas pessoas do povo como Cartola, Nelson Sargento, Lima Barreto, Maria Carolina de Jesus, e tantos outros, não tiveram casa para ser patrimônio musealizado. A casa deles é a favela, a cultura popular, a criatividade e a inventividade do povo que luta.

A porta de Marielle é parte de uma casa assim: uma casa plural, aberta, heterogênea...espaço de resistência à Casa-grande f-a-s-c-i-s-t-a.

Exatamente há seis anos, 14/3/2018, Marielle foi assassinada. Mas a porta que ela simboliza , enquanto abertura à justiça, à educação e à cultura, esta porta nós não podemos deixar fechar, nem sua luta esquecida.

E permanece a pergunta a ser respondia: quem mandou matar Marielle ?

 

 

 

                                          (Imagem: a porta de Marielle e suas mensagens)





Este texto da postagem é parte de um artigo que escrevi:

https://ateliedehumanidades.com/2019/10/26/fios-do-tempo-a-porta-de-marielle-por-elton-luiz-leite-de-souza/


Link para a Dissertação de Mestrado de Marielle:

https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/2166/Marielle%20Franco.pdf;jsessionid=DC59CA9C61AA2067470A98419FE2CFA5?sequence=1


Uma visita virtual ao Museu da Maré e sua exposição sobre Marielle: