quarta-feira, 23 de maio de 2012

Zaratustra




Há uma passagem do livro Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, na qual o personagem que dá título ao livro cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de fragilidade, o anão suplicava misericórdia a Zaratustra, e lhe  pedia para ir em seus ombros.Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus ombros e seguiu sua viagem. Porém, não seguiu muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava divisar logo ali em frente. Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo infortúnio dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e implorar ao destino perdão. Zaratustra já se inclinava para isso quando, de repente, um grito que veio de dentro dele, de dentro da vida que avança, protestou: “Pera lá, anão! Ou você ou eu!”. Zaratustra venceu em si mesmo o sentimento de se julgar vencido antes mesmo de enfrentar a luta , bem como os favores da autopiedade, e assim expulsou o anão de suas costas. O anão é o espírito da gravidade, o espírito do peso; ele é a visão curta, que em tudo vê um muro, uma impossibilidade, uma morte. Aceitando o risco de ir, Zaratustra avançou.

Zaratustra é o nome do antigo deus Zoroastro, que era admirado pelos iranianos, antes destes se ajoelharem diante do Alcorão, esquecendo desde então o que é ficar de pé. Singularíssimo é Zaratustra: ele não é grego ou romano, muito menos chinês ou hindu, tampouco ele andou por onde andaram os judeus. Zaratustra é o Oriente, próximo. Ele é o distante tornado perto. Ele não é migrante ou retirante, ele é o deus itinerante, o deus que dispensa templos e igrejas, e que acompanha todos aqueles que avançam.


sábado, 19 de maio de 2012

Manoel de Barros e Espinosa ( trecho do livro)




Espinosa distingue o Afeto da Afecção. Na vida cotidiana, em meio aos encontros que fazemos com os outros seres e coisas, vivemos o afeto reportado quase sempre às coisas exteriores que agem sobre nosso corpo e alma. O afeto pertence à nossa alma, e expressa o sentimento que temos de nossa potência de existir e ser.Ao agirem sobre nós, os outros seres nos produzem afecções . Estas são efeitos das ações dos outros seres sobre o nosso ser. Espinosa também nos diz que essas afecções são “idéias confusas”, uma vez que elas não nos revelam nada acerca da essência do ser queage sobre nós. Elas são apenas o efeito de tal ação.Quando essas ações geram dependência do nosso ser em relação àquele que age sobre nós, nossa capacidade de sentir e existir se torna refém dessa afecção: ficamos prisioneiros de idéias confusas que nos roubam o pensamento e a ação.
É como se nos sentíssemos existindo somente por intermédio de outra coisa. Nossos afetos se fragilizam, levando nossa capacidade de agir e pensar ao mais baixo grau de potência e afirmação. Espinosa designa de “paixão triste” a esse estado no qual o afeto se vê submetido a uma afecção, a uma idéia confusa, que nos despotencializa. A “paixão alegre” , ao contrário , nasce quando a afecção que sofremos não nos despotencializa, embora ainda deixe o afeto na dependência da ação de um ser exterior a nós.
Ora, Espinosa ainda nos diz que nós mesmos podemos ser causa de nossos afetos, independentemente da ação das coisas exteriores sobre nós. Isto porque também somos uma idéia. Uma idéia que não podemos representar, mas expressar. Nós podemos agir sobre nós mesmos, mas com a condição de nos sabermos uma expressão da própria Natureza e seu rejúbilo de Vida.
Somos uma afecção singular da Natureza. Em nós, a afecção é sempre o produto de certa passividade decorrente da ação dos outros seres sobre o nosso. Porém, as afecções da Natureza são o resultado de sua atividade necessária. Cada afecção dela é uma maneira diferente que ela tem de expressar a si própria. Cada afecção é completamente única e diferente da outra. Reportada então à Natureza, nossa essência, ou Idéia, é uma afecção da potência absoluta de existir da Vida.
A realidade objetiva dessa idéia que somos é o nosso corpo . Quando percebemos nossa idéia/ser como afecção da própria Natureza-Artista, e sentimos a necessidade imanente às suas expressões, produzimos em nós um afeto/alegria, um afeto/amor, do qual somos a causa, e fugimos das idéias confusas, ordinárias, que nascem da despotencialização de nosso ser. O afeto assim concebido é inseparável de uma existência que , no seu devir, inventa a si mesma afirmando-se não como efeito de outra coisa, mas como expressão da Vida ― esta mesma Vida sobre a qual não se pode “passar régua”.
Em Manoel de Barros, o afeto está na gênese do processo que rompe o limite das significações, manifestações e designações, e faz a palavra “pegar delírio” : “empoemando”, ela se torna expressão . Ao “empoemar” o significado das palavras, o poeta faz nascer a “despalavra”:
Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da
despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades
de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades
de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar
as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
com suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes,
podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,
por eflúvios, por afeto.


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NOTA SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE AFETO E AFECÇÃO

Muitas traduções da obra de Espinosa perdem em clareza quando não atentam para a distinção entre dois termos : afeto e afecção. Algumas traduções, as mais danosas para a compreensão do pensamento de Espinosa, traduzem ambas por uma única palavra: "paixão". Outras ainda as traduzem por "sentimento". E há aquelas que mantêm apenas o termo afeto,reduzindo o sentido de afecção à mesma coisa que afeto.Todos esses procedimentos lançam confusão não apenas sobre o que Espinosa quer dizer, como também sobre o próprio sentido desses termos em nossas vidas diárias. Sem dúvida, a dificuldade maior para os tradutores reside no sentido do termo "afecção" ( affectio, em latim).Isto porque há um certo materialismo no sentido original deste termo, fato que os tradutores mais idealistas ou espiritualistas reputam indigno de colocar de forma essencial na compreensão de todas as coisas, inclusive o homem. Mas é um erro conceber o termo afecção apenas em sua acepção materialista.
Etimologicamente, afecção pode ser traduzido por "tocar", no sentido de que o artesão toca o barro, o pintor toca a tinta, o sol toca o nosso rosto, etc. A afecção é uma ação de um agente ( nos exemplos dados, o artesão, o pintor e o sol).Ao tocar aquilo que ele toca, o agente produz uma modificação naquilo que ele toca. Esta modificação é sempre instantânea, e modifica o corpo tocado.Nos exemplos que demos, a afecção é a modificação que um corpo sofre ( a tinta, o barro, nosso rosto) devido à ação de um outro corpo que lhe permanece externo. Esse primeiro sentido de afecção envolve a relação de determinação de um ser finito sobre o outro ( mesmo o sol, embora imenso, é um ser finito tanto quanto o nosso rosto que ele toca).Ora, toda ação engendra um resultado, um efeito. O efeito ou resultado de "tocar" é "ser tocado". O "ser tocado" é um índice ou sinal de que houve um "tocar". O ser tocado não é uma ação, como o tocar, mas um resultado, um padecer. O fato de ser tocado torna um ser paciente, no sentido de ele ser aquele que sofreu a ação.Enquanto o tocar é imediato, o ser tocado é sempre mediato: ele expressa uma ação que se fizera. O tocar envolve sempre uma percepção, ao passo que o ser tocado permanece existindo apenas na memória ou na imaginação, como uma imagem presente de uma ação ausente. Ou melhor, essa imagem se torna presente pelo esforço que nossa alma faz para recordar ou imaginar o tocar que se fizera em seu corpo, e do qual a imagem é o resultado, o indício ou signo. Na verdade, o ser tocado é a continuação do tocar persistindo na memória ou imaginação daquele que sofreu a ação. O "ser tocado" é exatamente o sentido de afeto ( em latim, affectus).
Vista da perspectiva do corpo que age, a afecção é um agir, um tocar. Entretanto, como ela nasce de um encontro de um corpo com outro, a afecção produz, no corpo que sofre a ação, uma marca, um indício, um vestígio. Esse vestígio ou marca não é um ser, ele é uma ausência do ser que agiu e produziu a marca. Então, no corpo passivo a afecção é esta marca da qual nasce a idéia que lhe é correspondente. Ora, uma ideia não nasce no corpo, ela nasce na alma. A ideia nascida dessa marca, dessa ausência, será exatamente o afeto.Tal idéia, por isso mesmo, será dita confusa, uma vez que uma idéia adequada expressa sempre a existência de um ser, e não a ausência dele. A idéia confusa também é chamada de “imagem” por Espinosa.É por isso que o afeto nascido da afecção é uma paixão.A paixão revela mais o estado do corpo que sofreu a ação do que a essência do corpo que agiu. Mas o corpo que sofreu a ação imagina que a idéia que nasce da ausência do corpo que agiu pode nos fazer conhecer o corpo agente. Essa idéia confusa se alimenta da ignorância de como ela nasceu, ela pressupõe a ignorância de que a afecção é ação de um corpo também. Quando compreendemos isto, percebemos que a afecção é uma ação inserida em uma Natureza que é Causa da ação de tudo que existe, posto que a Natureza é sempre Agente. As idéias confusas, as paixões, nos deixam reféns das imagens, dos efeitos. Sob as paixões, confundimos o efeito com a causa. Se as paixões nascem de ausências, por que elas têm tanta força sobre a alma?
Para Espinosa, é a alma que extrai de seu próprio ser a força para dar existência ao que é um mero efeito, uma imagem, um fantasma. É por isso que as paixões alienam a alma e impedem que ela se torne ativa. A alma se torna ativa pela compreensão nascida das idéias adequadas, que sempre expressam o que existe, e não a ausência do que existe alimentada pela impotência da alma para existir plenamente. Quando compreendemos que as afecções são sobretudo ações, e não o mero resultado passivo delas, conseguimos nos libertar da condição passional de sermos um mero resultado da ação das coisas sobre nós. Além disso, mesmo quando alguém se comporta movido por uma paixão, sobretudo as tristes, tal reagir também é uma ação: uma ação que pode menos do que poderia aquele que assim padece se ele de fato agisse de forma livre, alegre, potente. Quando compreendemos que tudo é ação, positividade, mudamos nossa perspectiva no entendimento daquilo que comumente chamamos de bem e mal, pois percebemos que nenhuma ação , nenhum existente, é um bem ou mal em si. Quando compreendemos a positividade da afecção, compreendemos que ser é existir, e existir é agir: mesmo na ação a mais pequena do mais ínfimo ser, intuímos a Ação da Natureza que nunca age visando outro fim que não seja sua própria Ação, sua própria Existência,que em nós se expressa como ação da alma, o compreender, e ação do corpo, o agir.Ser ativo não significa exatamente fazer muitas coisas que exigem músculos, movimentos agitados e "adrenalina", pois ouvir é uma ação, olhar também o é, e há uma virtude ativa em saber se calar ( segundo Espinosa, o "falar", o "falar muito" sem saber ouvir, é uma paixão muito comum em quem não tem realmente o que dizer).
De um certo tocar pode nascer o afeto do amor ou da amizade como resultado ou efeito ( as paixões alegres), ao passo que de um outro tocar pode nascer o ódio ou o rancor ( como paixões tristes). E o mais estranho: o afeto não é o tocar, mas o resultado acompanhado da idéia confusa ou imagem deste. É por isso que de um mesmo tocar pode nascer , em uns, o amor, em outros, o ódio . Por exemplo, o funk toca da mesma maneira, fisicamente falando, aqueles que o amam e os que o odeiam, pois o amar e o odiar não são o tocar, mas o resultado dele de acordo com a constituição ou modo de ser de cada um: de acordo com a maneira de ser de cada um, de um mesmo tocar nascerão afetos distintos; se uma pessoa se modificar, ou buscar viver de forma desalienada, o que hoje lhe provoca um amor passivo amanhã talvez não lhe provocará mais... Não podemos negar a existência de uma afecção, mas o vínculo entre a afecção e o afeto que dela nascerá dependerá do quanto somos passivos ou ativos diante daquilo que nos acontece. Não há uma causalidade férrea que determine que de uma determinada afecção nasça um afeto determinado. Quando compreendemos as razões que fazem uma afecção existir, nos tornamos capazes de desfazer os laços entre a ação das coisas e nossas reações em relação a elas, sobretudo se tais laços nos fizerem escravos ou passionais, isto é, incapazes de governarmos a nós mesmos.
Os tradutores mais apressados costumam então referir a afecção às modificações do nosso corpo causadas pela ação de outros corpos, ao passo que o afeto seria uma modificação nascida em nossa alma que espelharia a modificação gerada em nosso corpo. Todavia, essa visão dicotômica se torna incongruente quando nos debruçamos sobre um outro sentido de afecção, dessa vez referida não mais aos seres finitos, mas a Deus ou a Natureza. Tudo o que existe, segundo Espinosa, é uma modificação de Deus. Logo, tudo é uma afecção de Deus. As coisas nascem do tocar de Deus. Mas a quem Deus toca? Ora, por ser único, e tudo, Deus não pode ser tocado por algum outro ser que lhe seja externo. Se isso fosse possível, este ser teria que existir à parte de Deus. Mas se Deus ou a Natureza é, em Espinosa, tudo, não pode haver algo distinto dele , pois isso seria limitá-lo, o que é um absurdo. Assim, e isso parece e é poesia ( no sentido original de "poiésis", produção), Deus é um tocar que toca a si mesmo. É Deus que produz em si mesmo tudo aquilo que é uma modificação ativa dele mesmo. Deus é imanente a tudo: o que ele produz permanece nele, pois cada ser é uma maneira dele mesmo, uma modificação singular dele . Cada ser que existe é uma maneira de ser de um mesmo Ser que se expressa de infinitas maneiras. Em Deus, a afecção , o tocar, e o afeto, o tocado, são identificados à Potência divina de Existir.Todas as afecções de Deus existem de forma necessária. Em Deus, portanto, só há um afeto: o Amor. Das afecções de Deus não pode nascer outro afeto que não seja o Amor, e isto por uma necessidade que é idêntica à liberdade, necessidade esta que é imanente a cada ser singular que existe.Ser livre não é fazer o que quiser ou seguir uma inclinação, ser livre é agir de acordo com essa necessidade que produz o Amor. A identidade do tocar e do tocado, da afecção e do afeto, é o Amor que nasce do Amor: e por ele, nele e com ele nascemos nós mesmos como expressão singular de sua autoprodução.É a experiência desse Amor que leva o poeta, como afirma Manoel de Barros, a dizer “eu-te-amo a todas as coisas”.Esse Amor é uma Ação, não uma paixão ou um padecer. Esse Amor é uma Ação: ele é ação de produzir autoproduzindo-se , ele é Poiésis.
Somos uma modificação de Deus; logo, somos o resultado ou o produto desse Amor em Obra. Deus e o Amor são o mesmo, assim como são o mesmo, nele, o agente e o paciente. Ou melhor, em Deus há apenas o Amor como Agente: o paciente fica por nossa conta, quando desejamos aprender a Amar esse Amor, pois é com paciência que se o pratica. O afeto nascido assim é idêntico à idéia adequada que aprendemos a fazer de nós mesmos e da Natureza.
Deus é Ação, jamais uma paixão. Por não ser paixão, Deus jamais tem raiva ou fúria, tampouco pode modificá-lo o que os homens fazem ou deixem de fazer. Ele não espera devoção ou culto, nem obediência, pois somente os tiranos vaidosos, passionais, a isto querem.Deus não recompensa ou castiga. Ou melhor, a única recompensa é compreendê-lo, e viver de acordo com o Amor que ele é.Somos o produto desta Ação, somos uma parte dessa Ação, e compreender isso não se faz sem a Alegria que é idêntica ao Amor.Se somos um produto da Ação, é nossa essência o agir, e não o padecer ou sofrer.Deus é Perfeito porque ele é Ação de modificar-se: e é por essa razão que o homem mais sábio é aquele que se esforça para aperfeiçoar-se, e isto consiste em modificar-se. Em Espinosa, tudo o que existe é uma modificação ou afecção de Deus. Não apenas os corpos, as ideias também são afecções de Deus. Nesse sentido, há afecções que não são materiais, embora sejam tão reais quanto os corpos. Quando experimentamos e compreendemos nosso corpo e nosso espírito como afecções de Deus, dessa compreensão nasce um afeto que é a expressão de que somos tocados por aquele Amor, e a partir dele tocamos, produzimos, agimos, enfim, existimos.
Não existe o "mal em si", existe o mau em nós, não fora de nós. O mau é tudo aquilo que diminui nossa força, nossa potência.O mau é a tristeza e o ódio.Estes não existem fora de nós, eles não são ações, mas reações, padeceres.A tristeza e o ódio existem em nós como aquilo que diminui nossa existência e nos afasta de nossa saúde ( salut). Não é a partir de outra coisa, uma coisa que lhe seja exterior, que o homem age ou existe, já que toda ação se constitui  de acordo com a relação com a Potência que lhe é imanente. Não é subordinando-se a "fins externos" , teleológicos, que o homem age, pois toda ação nasce da nossa afirmação da Potência que é Ação Pura, Potência esta que não existe exterior a si mesma.É em relação com essa Potência ou Força que a alma conquista sua própria força e potência, sua confiança, sua virtu, sua firmeza, o que a torna apta para tomar posse de si mesma. Só quem dispõe de si pode exercer a generosidade.A Moral exige que a alma tenha força sobre o corpo, para assim dominá-lo e reprimir suas inclinações.A Ética de Espinosa afirma, ao contrário, que a alma só se torna potente quando conquista sua própria força,  agindo a partir desta.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Assim Falou o Samba




"Um movimento artístico, científico, 'ideológico',pode ser uma máquina de guerra potencial, na medida em que ele traça um plano de consistência, uma linha de fuga criativa."
(Deleuze e Guattari, Mil Platôs)
Não me lembro ao certo como cheguei à filosofia. Quando recuo na memória, deparo-me com algo que não pertence a ela; portanto, é apenas de forma confusa, mutilada, que encontro nela rudimentos de como nasceu esse Afeto em mim. O que me lembro bem é que eu fazia parte de um bando, de um grupo, de uma matilha, de um rizoma. Éramos cinco ou seis, éramos um, éramos múltiplos. Fazíamos o colegial. Nossa amizade nasceu na sala de aula, nas aulas de literatura.Unia-nos a música, a poesia e tudo aquilo que , como diz Manoel de Barros, "não se compra ou vende no mercado". Lembro-me que certa vez resolvemos ir à Bienal de Livro. Não tínhamos dinheiro, não tínhamos meios, mas não nos faltava o desejo . Não o desejo por dinheiro ou meios, mas o desejo. Quando se tem o desejo, inventam-se os meios e , para chegar, não nos impedem as distâncias que os homens, com suas convenções, criam.Chegamos então à Bienal. A viagem foi longa. Vínhamos não apenas do subúrbio, vínhamos também do lugar que fica atrás dos incontáveis muros erguidos pela engenharia da exclusão social. Contudo, escalamos os muros, os atravessamos, os explodimos.E em todos pixamos a nossa assinatura.Chegados então à Bienal, enfim os livros. Circulamos entre corredores, deambulamos entre labirintos.E foi no centro de um deles que eu vi a Terra emoldurando a capa negra de um livro. Sobre a Terra, o título: "Assim falou Zaratustra". E acima do título, um estranho nome:Nietzsche. Não sabíamos bem porque, mas tínhamos que habitar aquele planeta chamado Nietzsche. O nome "Nietzsche" não nos era exatamente desconhecido. Mas ele nos aparecia em uma névoa na qual estavam também, para nós, Gláuber, Lima Barreto, Van Gogh, Cartola, Pixinguinha, Dioniso...Enfim, não sabíamos conceitualmente o que era a filosofia, mas já nos afetávamos por ela porque nos afetava a vida e tudo aquilo que, segundo Manoel de Barros, "é rebeldia, rebeldia sobretudo contra o clichê". O bando viu o livro com os olhos que eram do bando, e não de cada um isoladamente. Todavia, não tínhamos dinheiro, faltavam-nos meios. Em conjunto, a máquina de guerra planejou uma ideia. Víamo-nos em uma batalha na qual era preciso resgatar um aliado do território inimigo. Forço a memória para me lembrar dos detalhes, das ações. Mas o que sei é que, de repente, olhamos para o lado e vimos, entre nós, mais um: o livro de Nietzsche foi embora em nossas mãos.O livro circulou entre nós, e o grupo decidiu que ele ficaria comigo. E comigo até hoje está. Levei-o muitas vezes para conhecer o subúrbio, pegar trem, ir ao samba. Certa vez, lembro-me bem, fui ao Morro dos Macacos com um amigo. Lá no alto desse morro nasceu a escola de samba Vila Isabel.E lá no alto ainda havia o mesmo berço de samba bom. Eu começara a fazer faculdade de filosofia. Um amigo que conhecia o lugar me disse: " o samba é bom, você vai ver. Mas o problema é, infelizmente, a bandidagem que fica por lá e pensa que é dona do morro". Naquela época, o tráfico não era tão violento, mas havia, sem dúvida, o risco. Chegando então lá no alto, havia o samba ( que estava para começar), mas os marginais pareciam a tudo vigiar de perto. Fui apresentado como "o filósofo". Quem me apresentou o fez com indisfarçável ironia, como a me dizer:" você não se diz um homem livre, se vira!". Um dos bandidos, com arma na mão,e que não tinha mais do que 17 ou 18 anos, achou graça na palavra "filosofia" e, sentando à mesa onde já se encontravam outros bandidos, me pediu para sentar também. Não tinha como recusar. Quando me sentei, sobre a mesa estavam, além das cervejas, várias armas dos mais diversos calibres. Vi então um espaço livre e coloquei ali, entre tais coisas, o livro de Nietzsche.O marginal olhou para aquele livro e me perguntou: "O que é isso que você colocou na mesa?".Pondo-me à margem daquela suposta margem, com firmeza respondi:"esta é minha arma".O marginal riu, algo nele parecia que entendeu. Ele me pediu para falar mais alguma coisa, mas eu respondi dizendo que estava ali para ouvir. Então, como se os sambistas tivessem ouvido o que eu falei, começou o samba.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

trechos do livro "Manoel de Barros:a poética do deslimite"(Editora 7letras/Faperj)


Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança*, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,

Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério
.


De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem”. Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda ( como Miró também o fez). O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,

A poesia tem a função de pregar a prática
da infância entre os homens.


***
[ *Nota sobre o devir-criança:Quando alguém se torna adulto, a criança que ele foi está no passado;quando tal adulto era criança, o ser adulto era seu futuro.O adulto é o futuro da criança enquanto esta é um estado com uma identidade que lhe prescreve uma definição, um contorno; de maneira análoga, a criança é o passado do adulto enquanto este representa a si mesmo como um estado circunscrito por uma identidade.Sob esta perspectiva,"criança" e "adulto" são estados que se opõem pelas suas respectivas identidades.O devir não possui passado ou futuro: ele é, como dizem Deleuze e Guattari,antimemória. Ou Melhor, se ele nos dota de uma memória, trata-se de uma memória como a que têm os anjos : memória que nos liga à eternidade.O devir está sempre no meio: ele não é uma linha que liga dois pontos, ele é linha que passa entre dois pontos, uma linha transversal( as linhas transversais nunca se fecham em contornos).O devir não é exatamente a diferença entre o adulto e a criança,mas Diferença que está entre o adulto e a criança, e que os faz se comunicarem pelas suas diferenças, criando um contágio, um Afeto. É a História ( pessoal ou coletiva) que possui o passado e o futuro como pontos que o presente liga, ao passo que o devir está sempre no meio. Porém, ele não é uma média, ele é meio : ele é zona indiscernível que constitui a vizinhança entre o adulto e a criança. O presente do devir não é o presente cujos termos complementares são o passado e o futuro, uma vez que o presente do devir é o presente da metamorfose: esquecimento que cura dos fantasmas do passado, criação do novo que nos liberta de todo sentimento de esperança em relação a um futuro que nos deixa passivos.A criança do devir-criança não está no passado: ela co-existe com o adulto, mas não é feita de lembranças psicológicas deste.Ela é uma "criança molecular", imperceptível à percepção que só vê o já visto.Segundo Deleuze-Guattari,molecular é aquilo que é, ao mesmo tempo, elementar e cósmico:elementos mínimos, heterogêneos,conectados ao absoluto.Intensos, tais elementos singulares não podem estar contidos em uma forma:seus limites são limiares trabalhados por dentro por uma Vida que de si mesma transborda.O devir-criança não é uma regressão ao estado de criança, tampouco ele é um mero imitar, infantilmente, uma criança.Quando devimos criança, tornamo-nos algo que a "forma adulto" nos impede de ser, ao mesmo tempo que a criança torna-se outra coisa que a criança definida em oposição ao adulto.No pintor Klee, por exemplo, a criança do devir-criança que ele inventa torna-se uma criança feita de linhas e cores,ao mesmo tempo que ele próprio se torna outra coisa , coisa esta que a obra testemunha e dar a ver.Esta criança que vemos na tela, e que é o produto de uma metamorfose, de um devir, não é menos real do que a criança que vive na nossa memória pessoal.Sua realidade é aquela que a arte engendra, libertando a Vida dos limites estreitos de nossas vivências pessoais. Quando devimos criança, captamos o que na criança há de intempestivo e eterno, cujo futuro não é virar adulto, mas produzir no adulto uma criança que não é a que ele foi. A criança do devir-criança não está no passado, tampouco somos o futuro dela: ela co-existe com nosso presente, libertando este do passado que ele imagina prolongar e do futuro em relação ao qual ele crê ser uma continuação daquilo que hoje é.Como dizia Espinosa, a criança do devir-criança não é um estado, mas uma atividade de re-generar-se, isto é, de nascer de novo para o novo.Devir é revir. Devir é retornar.Mas o retornar do devir não é um revir ao passado. Trata-se de retornar ao hoje, a este mesmo hoje do qual a imaginatio sempre nos afasta. Devir é retornar ao hoje para nele intuir o eterno que nunca é o mesmo a cada vez que a ele retornamos: muda ele, mudamos nós nele, como parte dele.]

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O deslimite pode ser compreendido como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se pode impor uma forma ou limite . Esta Vida somente se deixa apreender em uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado, mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo) .
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário, é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite , portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte ( nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que, rompendo seus limites, deixam ver a Vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

da amizade

"Odeio quem rouba minha solidão sem oferecer verdadeira companhia."
Nietzsche


É preciso ler essa frase de Nietzsche de uma perspectiva que não seja a de um ego, seja a do ego de Nietzsche ou a do nosso.Se não tomarmos essa cautela, corremos o risco de confundir Nietzsche com um pedante, um esnobe, um misantropo ou, o que é pior , com um ressentido; e o mesmo se aplica a nós mesmos se interpretarmos egoicamente a frase em epígrafe.Parece-nos que o entendimento adequado de Nietzsche exige que nos coloquemos no lugar daquele que vai ao encontro de alguém. Primeiramente, devemos evitar projetar sobre o outro, seja o outro quem for, ideias confusas acerca de sua maneira de ser: é preciso reconhecer o outro em sua diferença, e que esta diferença é uma virtude dele, esteja ele consciente ou não dela .Em segundo lugar, devemos considerá-lo como alguém que tem algo a dizer,mesmo que este algo seja seu silêncio, o que nos exige uma disposição de escuta.Enfim, devemos nos esforçar para sermos uma verdadeira companhia para o outro, o que pressupõe que o sejamos , antes de tudo,para nós mesmos. Dessa forma, venceremos os respectivos monólogos ( estes , sim, tristes exercícios de uma solidão a dois...), fazendo nascer, se possível, um bom encontro , como dizia Espinosa, no qual possa existir uma conversação, um diálogo.
Deleuze dizia que em certas horas é preciso desconfiar até mesmo dos amigos.Essa desconfiança é o efeito de uma confiança maior: a confiança nos intercessores. Destes não há desconfiança:sabe-o quem na vida necessitou mudar. Somente os intercessores nos mudam, e nós a eles. Os amigos nos querem o mesmo.Como vencer essa aparente incompatibilidade? Aprendendo a fazer do intercessor um amigo e, se possível, do amigo um intercessor. Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões comuns, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer um "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando.Um nós não nasce da intercessão de conjuntos com contornos delimitados, pois o intercessor é um "outsider", um "lado de fora" que incorporamos lá onde deveria estar um contorno, para assim inventarmos limiares.O "lado de fora" não é um fora que se opõe a um dentro, mas abertura para o fora que se faz de dentro, encontrando um intercessor . Um intercessor é "aquele que intercede a nosso favor". Mas intercede em relação a quais assuntos e diante de quem?Os assuntos que pedem intercessores são sempre aqueles verdadeiramente essenciais para que nós possamos , como dizia Nietzsche, "nos tornar nós mesmos".O intercessor intercede por nós diante da vida, diante do cosmos, diante daquilo que não podemos conhecer; ele é mão estendida que sempre puxa para cima: não exatamente para cima de um palco ou de um pódio, mas para um ponto onde nos distanciamos de nós mesmos, para assim aumentar nosso horizonte e perspectiva. Ele intercede sobretudo diante de nós mesmos, tornando-se a ponte entre nós e aquilo que verdadeiramente somos. Contudo, um intercessor não existe com uma etiqueta nos avisando:"Eu sou seu intercessor". Não raro, o intercessor está imperceptível aos olhos daqueles que olham mais para os outros do que para si : embora o intercessor possa estar maduro para eles, são eles que ainda não estão maduros para encontrar o intercessor. De certa maneira, somos nós mesmos que produzimos nossos intercessores quando,ativa e singularmente, desejamos produzir a nós mesmos, fato este que expressa não apenas discernimento e virtude, mas também arte. Assim, todo verdadeiro amigo é um intercessor. Descubra isso, ouse isso, creia nisso: produza-o e , antes de tudo, seja-o.

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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

ano novo




Arrumar a casa.
Limpar a poeira acumulada, para que as cores sufocadas respirem em nova aparição. Cuidar dos suportes físicos, para que eles sejam a imagem externa da integridade do nosso espírito.
Lustrar os vidros, para que nesta transparência nosso pensamento se possa ver.
Reorganizar as distâncias entre as coisas, para que o espaço não seja um vazio, e para que a presença dos objetos não impeça o deambular de nossa percepção.
Praticar o desapego daquilo cujo tempo passou, para que a luz do dia toque de novo os olhos do nosso desejo.
Fazer tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.
Depois de tudo revitalizado, alegrar que sejamos nossa primeira visita.

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Entre um segundo e outro do dia, unindo-os para a cotidiana travessia, é aí que se vive o verdadeiro ano novo: em nossas mãos, enquanto avançamos, ao invés de champanhe ou fogos, a água, o pão e o sonho.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

paisagem deslimite






Limpar da tela ainda branca os clichês que previamente a ocupam e impedem que sobre ela nasça de fato algo novo, singular;curar a mente das ideias confusas que encurtam toda visão. Quando tal clínica acontece, o que há para pintar e ver não é um outro mundo, mas este mesmo: o único mundo, simples e múltiplo, como o pintou Vermeer.


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Espinosa polia lentes.Antes de tudo, tal atividade expressava um paciente esforço nascido de um desejo aplicado sobre si mesmo. O que Espinosa desejava ver mediante a lente?Ora, Espinosa sabia que o ver não é uma atividade meramente passiva, que se apaga no objeto visto. Ver é uma atividade produtora do visto: "ver vendo-se" aumenta a compreensão de si mesmo naquilo que se vê, ao mesmo tempo que torna claro o que se vê quando este não é mais impedido de ser alcançado por uma lente opaca e turva.A lente é o olho do espírito. Este é polido pela prática de uma vida sábia, livre. A mão atua nesse trabalho de ampliação daquilo que o espírito pode tocar. Polir a lente é a atividade de autoconhecimento, de firme aperfeiçoamento. Através do que ele via, Espinosa queria ver a si mesmo vendo-se e diferenciando-se daquilo que ele via e que dependia dele ver.Ao ver vendo-se, Espinosa se compreendia como o visto de um outro Ver que era imanente ao seu próprio ver, uma vez que nada existe fora desse Ver como atividade de uma Luz em relação a qual nada se furta.Polir o nosso ver é desejar ver brotar nele o Ver que integra todo visto à sua atividade.Diante de tal Ver, nosso ver é ,também ele, um visto, isto é, um objeto que aumenta sua potência quando pacientemente lustrado e polido. O ver não nasce no visto, mas no instrumento de ver . Espinosa compreendida que seu ver não nascia nele, em seu ego, em sua pessoa; ele sabia que seu ver era instrumento de um Ver que tinha em sua imanência tudo o que pode ser visto.A clareza do que se vê depende da natureza da lente. Esta não é um mero vidro passivo,transparente; a lente do espírito é o espírito mesmo em sua atividade de ver, conhecer e compreender.Todavia, o visto não é inato ao ver, uma vez que o visto é o ver mesmo produzindo e desdobrando-se, para dentro e para fora, aumentando pelo meio.Ao invés da visão contemplativa do místico, o ver produtivo do artesão.
Etimologicamente, “idéia” significa , aproximadamente,“objeto visto”. Para termos ideias é preciso que tenhamos abertos os olhos, os olhos do espírito. Ao objeto visto precede um ver como atividade de pensar. O pensar não é o visto, ele é o abrir os olhos para ver; o pensar não é a idéia, ele é o produzir idéias. Nessa produção do visto, a idéia se descobre como sendo o afeto mesmo, porém apreendido de uma outra perspectiva. Então, já não somos dois, mas um só: o que o espírito vê, o corpo sente; o que o espírito sente, o corpo vê.
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Estende-se a paisagem sem pedir à natureza um limite:
nunca a pode conter a humana moldura que em nosso olho existe.

pietá

Com as duas mãos para trás, andando lentamente, o homem de meia-idade só pensava em uma coisa: no próximo passo a dar, o qual ele dava de forma hesitante. De repente, passa correndo por ele uma criança, sem nada nos pés, sem nada nas mãos, sem nada no estômago. Correndo atrás dela, o policial, o assistente social, o padre, o psicólogo, as balas de revólver. Dentro do homem escondeu-se aquela criança, entrando-lhe pela porta da sensibilidade apenas entreaberta: a criança se apossa , desfaz o laço e o nó das mãos às costas, e delas cai o passado que o homem segurava como uma pedra.

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Maria não falava sozinha. Ela falava com ela mesma, no interior de sua alma. Acontece que sua alma se estendia cerca de 30 centímetros além de sua pele , como se fosse uma aura. Maria descobriu que tinha esta alma externa quando ainda era uma menina, e como menina brincava a sério de ter uma alma que não cabia totalmente nela.Ela nunca mais parou de brincar assim, sem perceber que cresceu. Parte da alma de Maria estava fora dela. Esta parte da alma tomava chuva, sol e vento; não aquele vento que Deus soprou como espírito, apenas vento mesmo; não raro, tal vento se impregnava com os restos de comida que Maria cata por aí. Maria carregava uma mala que nunca abria, como também não estava aberta, apesar das aparências, esta alma fora dela. Apesar de não estar aberta, atravessavam-lhe os gritos, as sirenes, os pedidos de socorro, as fumaças de tudo quanto é incêndio e os fragmentos de todos os seres que um dia formaram um todo. Maria carregava a mala como se estivesse para ir ou para voltar: e no intervalo entre estes dois atos que ela de fato nunca fazia, neste intervalo todo lugar se tornava o estrangeiro onde ela não podia morar. Embora a alma externa não fosse inteira, metade dela era imaginação, metade desejo: a idéia que em uma parte morria, na outra ressuscitava pelo avesso. Como se fosse um espelho cujo aço se apagou, essa alma-fora não deixava Maria ver-se nela.Muitas vezes, era a partir desta alma-fora que Maria falava, sem ninguém ouvir ou entender. Esta voz que do fora nascia, por vezes entrava por dentro da boca de Maria, como se fosse uma prece ao contrário. Prestando atenção até onde essa voz ia, parecia que Maria ficava em silêncio. Mas a voz ia até onde não a podia mais escutar Maria; e tampouco o pode a Psiquiatria, a Psicologia, a Filosofia, a Teologia e tudo aquilo que o homem inventou para falar a si. Talvez escute essa voz de Maria apenas os ouvidos da Arte: talvez quando vier a resposta, se vier, já seja tarde.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

evento

Laboratório do Imaginário Social e Educação – LISEconvida


CICLO DE ESTUDOS Pensando com Arte
Palestra:MANOEL DE BARROS – UMA METAFÍSICA DO CHÃO

Prof. Dr. Elton Luiz Leite de Souza(UNIRIO) e Leonardo Maia (UFRJ)


Dia: 10 de novembro de 2011(quinta-feira)
Horário: 18h e 30min
Local: Sala de vídeo(220), Faculdade de Educação– UFRJ
Av. Pasteur, 250 - Praia Vermelha
Serão fornecidos certificados de participação ao final do Ciclo, no total de 8hs.