sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

da amizade

"Odeio quem rouba minha solidão sem oferecer verdadeira companhia."
Nietzsche


É preciso ler essa frase de Nietzsche de uma perspectiva que não seja a de um ego, seja a do ego de Nietzsche ou a do nosso.Se não tomarmos essa cautela, corremos o risco de confundir Nietzsche com um pedante, um esnobe, um misantropo ou, o que é pior , com um ressentido; e o mesmo se aplica a nós mesmos se interpretarmos egoicamente a frase em epígrafe.Parece-nos que o entendimento adequado de Nietzsche exige que nos coloquemos no lugar daquele que vai ao encontro de alguém. Primeiramente, devemos evitar projetar sobre o outro, seja o outro quem for, ideias confusas acerca de sua maneira de ser: é preciso reconhecer o outro em sua diferença, e que esta diferença é uma virtude dele, esteja ele consciente ou não dela .Em segundo lugar, devemos considerá-lo como alguém que tem algo a dizer,mesmo que este algo seja seu silêncio, o que nos exige uma disposição de escuta.Enfim, devemos nos esforçar para sermos uma verdadeira companhia para o outro, o que pressupõe que o sejamos , antes de tudo,para nós mesmos. Dessa forma, venceremos os respectivos monólogos ( estes , sim, tristes exercícios de uma solidão a dois...), fazendo nascer, se possível, um bom encontro , como dizia Espinosa, no qual possa existir uma conversação, um diálogo.
Deleuze dizia que em certas horas é preciso desconfiar até mesmo dos amigos.Essa desconfiança é o efeito de uma confiança maior: a confiança nos intercessores. Destes não há desconfiança:sabe-o quem na vida necessitou mudar. Somente os intercessores nos mudam, e nós a eles. Os amigos nos querem o mesmo.Como vencer essa aparente incompatibilidade? Aprendendo a fazer do intercessor um amigo e, se possível, do amigo um intercessor. Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões comuns, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer um "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando.Um nós não nasce da intercessão de conjuntos com contornos delimitados, pois o intercessor é um "outsider", um "lado de fora" que incorporamos lá onde deveria estar um contorno, para assim inventarmos limiares.O "lado de fora" não é um fora que se opõe a um dentro, mas abertura para o fora que se faz de dentro, encontrando um intercessor . Um intercessor é "aquele que intercede a nosso favor". Mas intercede em relação a quais assuntos e diante de quem?Os assuntos que pedem intercessores são sempre aqueles verdadeiramente essenciais para que nós possamos , como dizia Nietzsche, "nos tornar nós mesmos".O intercessor intercede por nós diante da vida, diante do cosmos, diante daquilo que não podemos conhecer; ele é mão estendida que sempre puxa para cima: não exatamente para cima de um palco ou de um pódio, mas para um ponto onde nos distanciamos de nós mesmos, para assim aumentar nosso horizonte e perspectiva. Ele intercede sobretudo diante de nós mesmos, tornando-se a ponte entre nós e aquilo que verdadeiramente somos. Contudo, um intercessor não existe com uma etiqueta nos avisando:"Eu sou seu intercessor". Não raro, o intercessor está imperceptível aos olhos daqueles que olham mais para os outros do que para si : embora o intercessor possa estar maduro para eles, são eles que ainda não estão maduros para encontrar o intercessor. De certa maneira, somos nós mesmos que produzimos nossos intercessores quando,ativa e singularmente, desejamos produzir a nós mesmos, fato este que expressa não apenas discernimento e virtude, mas também arte. Assim, todo verdadeiro amigo é um intercessor. Descubra isso, ouse isso, creia nisso: produza-o e , antes de tudo, seja-o.

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