Com as duas mãos para trás, andando lentamente, o homem de meia-idade só pensava em uma coisa: no próximo passo a dar, o qual ele dava de forma hesitante. De repente, passa correndo por ele uma criança, sem nada nos pés, sem nada nas mãos, sem nada no estômago. Correndo atrás dela, o policial, o assistente social, o padre, o psicólogo, as balas de revólver. Dentro do homem escondeu-se aquela criança, entrando-lhe pela porta da sensibilidade apenas entreaberta: a criança se apossa , desfaz o laço e o nó das mãos às costas, e delas cai o passado que o homem segurava como uma pedra.
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Maria não falava sozinha. Ela falava com ela mesma, no interior de sua alma. Acontece que sua alma se estendia cerca de 30 centímetros além de sua pele , como se fosse uma aura. Maria descobriu que tinha esta alma externa quando ainda era uma menina, e como menina brincava a sério de ter uma alma que não cabia totalmente nela.Ela nunca mais parou de brincar assim, sem perceber que cresceu. Parte da alma de Maria estava fora dela. Esta parte da alma tomava chuva, sol e vento; não aquele vento que Deus soprou como espírito, apenas vento mesmo; não raro, tal vento se impregnava com os restos de comida que Maria cata por aí. Maria carregava uma mala que nunca abria, como também não estava aberta, apesar das aparências, esta alma fora dela. Apesar de não estar aberta, atravessavam-lhe os gritos, as sirenes, os pedidos de socorro, as fumaças de tudo quanto é incêndio e os fragmentos de todos os seres que um dia formaram um todo. Maria carregava a mala como se estivesse para ir ou para voltar: e no intervalo entre estes dois atos que ela de fato nunca fazia, neste intervalo todo lugar se tornava o estrangeiro onde ela não podia morar. Embora a alma externa não fosse inteira, metade dela era imaginação, metade desejo: a idéia que em uma parte morria, na outra ressuscitava pelo avesso. Como se fosse um espelho cujo aço se apagou, essa alma-fora não deixava Maria ver-se nela.Muitas vezes, era a partir desta alma-fora que Maria falava, sem ninguém ouvir ou entender. Esta voz que do fora nascia, por vezes entrava por dentro da boca de Maria, como se fosse uma prece ao contrário. Prestando atenção até onde essa voz ia, parecia que Maria ficava em silêncio. Mas a voz ia até onde não a podia mais escutar Maria; e tampouco o pode a Psiquiatria, a Psicologia, a Filosofia, a Teologia e tudo aquilo que o homem inventou para falar a si. Talvez escute essa voz de Maria apenas os ouvidos da Arte: talvez quando vier a resposta, se vier, já seja tarde.
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