domingo, 9 de agosto de 2020

espinosa: os bons e os maus encontros

 

Espinosa distingue duas espécies de encontros: os bons encontros e os maus encontros. Os bons encontros geram alegria; os maus, tristeza. No bom encontro, ora somos causa de certos efeitos que produzimos, ora somos efeitos de causas que agem sobre nós. No bom encontro, vivemos agenciadamente o conhecimento, o amor, a amizade, a justiça, a generosidade, a dignidade e, por que não?, a poesia ( no sentido amplo da palavra, como poética da existência). No bom encontro , ora somos causa da produção de tais efeitos-afetos nos outros, ora são os outros que são causa desses efeitos-afetos em nós. Assim, no bom encontro, mesmo quando somos efeitos de algo, isso não causa servidão : ao contrário, nos auxilia e potencializa a sermos nós mesmos, como a mão que puxa para cima. No bom encontro, diz Espinosa, o efeito se difere da causa por aquilo que recebe dela, e a causa se difere do efeito por aquilo que doa. O doar é o receber mesmo visto de outra perspectiva, e o receber é o doar mesmo visto de outra perspectiva, pois ambos são atos nascidos do desejo de potencializar a vida. Na amizade, ora doamos a amizade, ora a recebemos, sempre para fortalecer a amizade. E tanto no doar quanto no receber há potência, alegria.

O mau encontro, ao contrário, caracteriza-se por aquilo que ele nos tira. No mau encontro somos sempre efeito, efeito de uma causa que nos suga e tira. Ela nos tira sobretudo a capacidade de sermos causa de governar a própria vida. Não apenas uma pessoa pode ser um mau encontro para outra, também um governo pode ser, e assim nos ameaçar a tirar o ar, o futuro, a educação , a dignidade e, sobretudo, tentar nos tirar a nossa capacidade de sermos causa para produzir outra coisa diferente do que aí está. Luta-se contra os maus encontros fortalecendo os bons encontros e os multiplicando com o máximo de força que tivermos.



bozocídios

 100.000 mortos...

governo genocida, etnocida, futurocida,culturocida, educaciocida, ecocida, eticocida, sociocida...



sábado, 8 de agosto de 2020

manoel : aventura

 

No poema "Aventura", o personagem é um pote que Manoel de Barros encontra jogado fora de "barriga vazia para cima" em um lugar ermo. Nesse estado de abandono o pote continha apenas o vazio.  Esse pote já foi o centro das atenções, todos o queriam perto, quando ele ainda estava cheio de sorvete. Mal ele chegava à mesa, logo o cercavam olhares cheios de interesses, todos queriam ficar perto dele. E  assim o pote se iludia imaginando que o queriam por aquilo  que ele era  e não por aquilo que ele temporariamente tinha.  Tamanha deve ser a dor que ele  sente agora, abandonado . Rejeitado pelos  homens,  apenas a natureza  quis o pote. A natureza nunca despreza: ela recebe e regenera, preenche vazios -  disso também  já sabia Espinosa. “Inútil”,  o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo aquilo que, ao receber os cuidados dela ,  sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta.

Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar ermo. Lembrou do pote e se preparou para rever aquela imagem triste do sofrimento. Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco  que a natureza depositou:  “as chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio,  um poema vivo  milagrou:  do  ventre do pote   um pé de rosas desabrochou... “Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote por essa lição que dele recebeu  sob a forma de rosas. Pois repletos estavam agora   o pote e o poeta  com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca .

                                                                                                                                                     

“Quando uma  ideia nos fecunda , também sofremos  angústia de parto.  ” (Plotino)











sexta-feira, 7 de agosto de 2020

dia eterno

 

Espinosa foi o primeiro dos Iluministas, embora raramente seja citado nos livros sobre o tema. O Iluminismo é frequentemente associado ao sol :assim como a luz do sol desfaz a escuridão da noite, a luz da razão desfaz a ignorância que obscurece o homem. Mas a luz da razão também pode produzir “sombras”, como viu o filósofo Peter Sloterdijk. As sombras da razão são a tecnocracia, a tirania da opinião nas sociedades de massa, o consumo narcisista, a ideologia do progressismo cientificista, a destruição da natureza, a concentração excludente da riqueza...E é se ocultando atrás dessas sombras, e se alimentando delas, que cresce o monstro do fascismo. Melhor do que ninguém, Sloterdijk faz o diagnóstico dessas “sombras da modernidade” . Porém, o iluminismo de Espinosa escapa a essa forma canônica de compreender o iluminismo, tanto por parte de seus cultuadores quanto de seus iconoclastas, como Sloterdijk. É difícil falar desse iluminismo de Espinosa sem empregar uma linguagem também poética. O dizer poético é necessário quando o conceito filosófico, sozinho, não consegue dizer o que ele tem para dizer. Há em Espinosa não apenas luzes racionais , também há luzes afetivas. A luz de Espinosa não é apenas a luz da crítica, ela também é luz clínica: ela se torna remédio quando absorvida. O iluminismo de Espinosa não está centrado apenas em uma única luz, mesmo que seja a luz do sol . Em Espinosa, as luzes são múltiplas e várias, e cada uma tem seu foco, sua cintilação . Há realidades que somente podem ser iluminadas pela luz da lua, luz poética : assim são as realidades noturnas, fora e dentro do homem, como as paisagens do inconsciente que a luz do sol não alcança. Há realidades sutis que somente ficam claras sob a luz das estrelas, luz metafísica. As estrelas são infinitos sóis juntos, pois somente infinitos sóis podem iluminar o conhecimento da infinita natureza. Há ainda em Espinosa uma luz mais surpreendente e fulgurante : seu pensamento às vezes se assemelha à luz de um intenso relâmpago , como clarão libertário irrefreável. Todas essas múltiplas e heterogêneas luzes existem para abrir e potencializar a luz dos nossos olhos , para que a treva em torno não nos cegue.

 

( imagem: capas da edição em português e em espanhol do livro que inspira a postagem. Na edição brasileira, estranhamente Espinosa não aparece na capa; na espanhola , ao contrário, somente ele aparece, sendo essa capa mais fiel ao conteúdo do livro)


Foi neste quadro de Van Gogh ( “Noite estrelada sobre o Ródano") que vi os mil sóis juntos. Quando se olha de perto o quadro, percebe-se que Van Gogh pintou cada estrela como de fato cada estrela é : um sol. É por isso que esse quadro também poderia  chamar-se: “Infinitos dias” ou “dia eterno”.


Encontra-se  neste livro a  ideia de que o pensamento de Espinosa é como o clarão de um relâmpago : “L’eclair de Spinoza” / “O relâmpago de Espinosa”  ( infelizmente, o livro ainda não está  traduzido para o português: embora o livro esteja escrito em prosa, ele é, do que começo ao fim, uma poesia ) :





Em homenagem ao poeta-Caetano ( que hoje faz aniversário):



quinta-feira, 6 de agosto de 2020

com manoel


pop'filosofia

Não se deve confundir “popular” com “populismo”. A elite e seus partidários costumam dizer, insensíveis à urgência de quem tem fome: “dar o peixe às classes D e E é populismo. O certo é ensiná-los a pescar”.  Mas o rio comum onde vive o peixe a elite cercou, pôs seguranças armados e  diz que é propriedade dela, mesmo havendo mais peixes lá do que ela precisa. A elite também se apropriou da vara de pesca e do anzol, mesmo originalmente não sendo dela, negociando-os  a juros de agiota para acumular seu capital.

Mas o popular não é  a classe D ou E : tais classificações  fazem parte da ideologia de “pedigree” que reforça a lógica casa-grandista de que ter propriedades e dinheiro, não importando os meios , faz de alguém um superior, um   “Classe A”. O popular nada tem a ver com esse alfabeto do poder. O popular é multiplicidade horizontal sem castas, como a “multitudo” democrática de Espinosa. O popular não é pobreza, mas uma forma de riqueza que não se mede em dinheiro ou capital. O popular não é o que vende muito, o popular é o que não se deixa vender ou pescar pelos donos do sistema. O popular é uma nobreza nascida da potência criativa mestiça , e não de pedigrees elitistas pouco nobres.  A nobreza-popular se aprende na alma de Cartola,  no sax de Pixinguinha, na voz de Clementina ,  na viola do Paulinho, no lápis de Manoel: “Aproveito do povo sintaxes tortas” , ensina o poeta. “Popular” não é só um substantivo, como “povo”; “popular” também pode ser   um verbo expressando a ação de  (re)inventar um povo: “escreve-se em função de um povo por vir e que ainda não tem linguagem.”(Deleuze).

A primeira vez que ouvi a palavra “popular” foi há muito tempo, na boca do educador Darcy Ribeiro, que dizia: “ o popular não é monopólio de um único partido. Somente unidas as forças populares podem vencer a Casa-grande”. Depois, reencontrei a raiz de “popular” ("pop") na expressão “pop’filosofia”, de Deleuze. Pop’filosofia também é uma forma de fazer filosofia agenciada com a poesia, unindo o pensar, o sentir, o criar e o agir.

 



                   ( Clementina, Cartola & Pixinguinha)

 












devir-lunar

O filósofo Heidegger dizia que  uma coisa é  “diminuir a distância” , outra  bem diferente é o “criar proximidade”. A tecnologia diminui as distâncias, sem dúvida. Mas uma coisa é diminuir a distância entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido daquilo que nos é mais essencial e indispensável.  Esse sentido nem sempre está dado, às vezes ele precisa ser descoberto ou mesmo inventado.

Enquanto instrumento técnico, o telescópio diminui a distância entre a lua e nossos olhos, isso é fato. Porém, quando lemos num poema  a lua em versos, o poeta não põe a lua perto de nós no espaço, porém ele a põe  tão próximo que, empoemando-nos, experimentamos seu sentido também em nós, no "devir-lunar" que nos tornamos. E quando a lua está cheia, como está agora, o devir-lunar se torna ainda mais vivo e intenso : faz recuar a noite, a de dentro e a de fora.

Esses momentos de isolamento social nos colocaram longe espacialmente, porém nunca estaremos sozinhos existencial e politicamente se mantivermos viva e intensificarmos a  proximidade com as ideias e valores  que nos fazem seres pensantes e solidários.  A arte serve para nos ensinar a aprendermos criar proximidade com tudo aquilo que,  para existir e se tornar real, precisa ser criado.  Isso vale não só para um poema,  vale igualmente para a realidade humana e social que precisamos reinventar depois que todo esse pesadelo, o provocado pelo vírus e o perpetuado pelo verme,    tiver passado.














quarta-feira, 5 de agosto de 2020

pensar é empoemar-se

Segundo o filósofo Deleuze, e aqui ele segue as lições de Espinosa, o pensar é uma potência imanente a cada um de nós. Porém, essa potência somente é descoberta  e exercida quando algo acontece rasgando os roteiros , desdizendo as cartilhas, pondo sob dúvida costumeiros  credos.  Não que o pensar seja para poucos, porém não são muitos os que são despertados por ele, às vezes mais às custas de derrotas do que de vitórias, mais na dor do que na alegria. Mas quem pelo pensar é desperto, age para que ele desperte também os outros, e isso não se faz sem  alegria.  Manoel de Barros parece concordar com Deleuze quando diz que  o inimigo maior do pensar é o “mesmal”. O “mesmal” nasce da mente acostumada, dos olhos acostumados, enfim, do viver acostumado. O mesmal leva o homem a se  acostumar  não só com os hábitos, mas também com a torpeza que o cerca, com a ignorância que o ameaça e até mesmo com o fascismo que já pisoteou seu jardim e agora bate à porta,  querendo  arrombá-la. Manoel criou um verbo como antídoto para o mesmal: é o “empoemar-se”. O empoemar-se não é exatamente passar o dia lendo ou escrevendo poesia, tampouco entregar-se a narcisismos  líricos. Empoermar-se é mais do que ler versos, empoermar-se também é  educação, ética e ação política. Empoemar é um verbo que se conjuga em várias pessoas , em diversos tempos, em diferentes flexões, sempre como ato libertário. O conhecimento   empoema a mente; o agir  emancipador  empoema a ação; a  música empoema o som; pintar empoema as tintas; a saúde empoema o corpo; o ir adiante empoema os passos; o horizonte empoema a visão; o doar empoema a mão;  enfim,  o pensar empoema  a não resignação. E mesmo a vida talvez  tenha surgido no planeta como  um  empoemar-se da matéria  criando a si mesma como arte, e assim se diferenciando   do mesmal das leis físicas. O empoemar não é definível em palavras apenas , ele se explica sendo produzido  no mundo, na vida : subvertendo o mesmal.


"Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas."(Deleuze)


"A reta é uma curva que não sonha.

Aproveito do povo sintaxes tortas."(Manoel de Barros)














domingo, 2 de agosto de 2020

andar ao lado

A filosofia não se expressa apenas em palavras e teorias, pois gestos e cores também são capazes de simbolizarem o que cada filósofo pensa. É o que faz Rafael nesta famosa obra: cada pensador é ali representado conforme um gesto, uma expressão facial e a cor da roupa que veste. Chama a atenção na imagem as duas figuras que estão aparentemente no centro: Platão e Aristóteles. Os dois aparecem lado a lado, mas sob certa tensão divergente. Parece que eles conversavam e , de repente, pararam diante de um impasse irresolúvel. Se ao invés de pintura fosse cinema, veríamos que , não faz muito tempo, Aristóteles andava atrás de Platão, como discípulo. Até que ousou pôr-se ao lado de Platão, agora já não mais seu mestre. Platão que sempre andava à frente e sozinho, deve ter levado um susto ao ver alguém ao seu lado, e não para lhe fazer companhia...Platão aponta para o Céu, para um Outro Mundo como Pátria verdadeira da Alma cativa aqui na terra, enquanto Aristóteles pondera com a mão espalmada, querendo dizer que a terra também é a nossa casa. O livro que cada um segura reproduz o gesto da mão . Mas o centro verdadeiro da obra não é Platão ou Aristóteles, o centro é o espaço “entre” os dois: o centro é a Diferença. Na pintura, é chamado de “ponto de fuga” a esse centro que se abre ao infinito. Transpondo esse espaço para a filosofia, ele se transmuta em “linha de fuga”. Linha de fuga não é fugir ou evadir-se no imaginário, tampouco fugir do mundo; linha de fuga é fazer fugir algo que estava aprisionado. Linha de fuga é ato libertário. Nenhum filósofo específico ocupa esse centro, pois esse centro é acentrado: horizonte aberto onde o pensar encontra a vida heterogênea e múltipla. A filosofia pode ser identificada academicamente a um filósofo, porém o pensar é essa abertura onde a própria vida está. Quando lemos e aprendemos com um filósofo que se abre a esse centro, a gente se sente não como estando atrás , mas andando ao lado. Ou como fazia Espinosa: conduzindo pela mão.

 

“Deprecio tanto seguir como ser seguido:

para me acompanhar aonde vou, é preciso aprender a amar andar ao lado.” (Nietzsche)




(na postagem está apenas uma parte da obra, aqui acima está ela inteira. À direita, vestindo um tom de vermelho mais intenso do que o de Platão, está Plotino. Mais do que Aristóteles, talvez seja Plotino que realiza o gesto mais antagônico ao de Platão: Plotino aponta discretamente para baixo com o dedo indicador da mão esquerda, ele aponta para a terra, querendo dizer: a terra é o céu que desceu, tudo é Uno)



sábado, 1 de agosto de 2020

diferença entre criar e inventar (2)

"Criar” e “inventar” são atos diferentes. A diferença entre ambos fica mais clara nas realidades que tais atos produzem. “Inventar” aplica-se a coisas. Celular , automóvel, relógio , etc. existem porque foram inventados. Já o “criar” é um ato que gera tudo aquilo cujo sentido se explica como arte, na acepção ampla da palavra . “Criar” tem origem na antiga palavra “creare”. De “creare” também provém “crer” . “Creare” significava tanto crer como criar. É por isso que somente cria quem crê, e quem crê sempre cria, mesmo diante das maiores impossibilidades. Não só um poema é criado , uma filosofia também o é, na medida em que filosofia e poesia criam ideias: ideias para pensar e para sentir . Criar uma filosofia é crer no pensar, criar um poema é crer no sentir. Só cria novas possibilidades para a vida que crê na liberdade; quem não crê , resigna-se e chora as impossibilidades.

É por isso que também se diz: “criei um filho”, e não “inventei um filho”; ou “criei um laço de amizade”, e não “inventei um laço de amizade”; ou “criei um jardim” ,e não “inventei um jardim”. Pois tais realidades que criamos também são formas de arte nas quais acreditamos , nada tendo a ver com coisa mecânica. Já um revólver, enquanto objeto técnico, é fruto de invenção e, por isso, pode estar a serviço de um bandido ou de um fascista. A inventividade produz apenas coisas; e as coisas , por não possuírem vida, podem virar instrumento de morte a serviço de uma mentalidade mórbida . Porém a criatividade produz ideias, e as ideias são a vida e a saúde do pensamento. Em todo totalitarismo , não importando se político , comportamental ou acadêmico, são sempre os criativos os que sofrerão as maiores consequências. E são sempre deles, e neles, que nascem e perseveram as resistências.

 

 

"É possível que crer  nesse mundo, nessa vida, tenha-se convertido na nossa tarefa mais difícil, a tarefa de um modo de existência por descobrir sobre o nosso plano de imanência hoje." (Deleuze & Guattari, "O que é a filosofia?")