terça-feira, 17 de maio de 2016
sábado, 14 de maio de 2016
a rua e a praça
O andarilho abastece de pernas as distâncias.
Manoel de Barros
Ir, indo.
Caetano
Os
gregos inventaram a praça como espaço de poder. A praça era o plano horizontal
das relações políticas, distinto do plano vertical dos Templos e da clausura dos Palácios.
A praça era chamada de ágora , o coração da pólis. O termo "ágora" provém de “agon”, raiz presente também
em “agonia”. Uma alma agoniada é aquela na qual quereres diferentes ou
pensamentos distintos lutam para a dominarem. “Agon” significa “disputa”. A
praça, a ágora, era o lugar onde aconteciam disputas, lutas, medições de
forças. Mas a arma de tais disputas não era a faca ou a lança, e sim outra
arma. Arma sutil, eminentemente simbólica, mas que podia ser mais forte do que Aquiles ou ir mais longe do que a flecha. Essa arma era a palavra. Contudo, a
palavra dita na ágora era palavra proferida individualmente: não raro tal palavra servia
apenas a quem a enunciava ( ou então ao
círculo dos que professavam, ou fingiam professar, o mesmo credo, a mesma posição)
. Por isso, quem tinha dotes retóricos
saia-se vencedor nos embates dialéticos, mesmo que por de trás das palavras
convincentes não existissem ideias consistentes. Muitos se valiam da retórica
para esconderam não apenas interesses escusos, como também a carência de
ideias.
Os
gregos inventaram a praça como espaço político, mas eles não inventaram as
ruas. As ruas foram invenção dos romanos. As praças são lugares de parada, são
espaços centrípetos. As ruas, ao contrário, são espaços de circulação , de
deambulação e mesmo de linhas de fuga a inventar. A praça possibilitou o surgimento do filósofo acadêmico, porém a mesma praça tornou-se oportunidade lucrativa para espertos sofistas, de tal modo que sempre foi
difícil separar aquele destes. A rua, diferentemente, fez nascer o andarilho, o
cosmopolita, o desterritorializado, o itinerante: o filósofo-cometa, o pensador-artista liberto de academias ou escolas.
Sob o Império Romano, entretanto, as
ruas eram vias limitadas ligando as cidades que o Império dominava . Com o
fim do Império, as ruas se tornaram chão dos peregrinos. Entre estes havia aqueles que, como São Francisco, iam de pés descalços em busca da rua que levasse à invisível Pólis Celeste.
Com o fim do poder imperial, muitas das ruas por tal poder construídas, não obstante estarem inteiras, findavam agora em cidades em ruínas : as mesmas cidades que ,outrora ,gabavam-se eternas. Uma cidade desaparece por meio de guerras ou catástrofes. Mas uma rua somente desaparece se o mato ou a floresta a fizerem retornar à natureza de onde saíra.
Com o fim do poder imperial, muitas das ruas por tal poder construídas, não obstante estarem inteiras, findavam agora em cidades em ruínas : as mesmas cidades que ,outrora ,gabavam-se eternas. Uma cidade desaparece por meio de guerras ou catástrofes. Mas uma rua somente desaparece se o mato ou a floresta a fizerem retornar à natureza de onde saíra.
Com
o crescimento da vida urbana, a rua deixou de ser mera coadjuvante da praça. A rua fez passar
para dentro da cidade a experiência que outrora somente era vivida por aqueles
que, saindo dos muros da cidade, cruzavam territórios ainda desertos. A praça
tem limites. Mas as ruas não têm limites, pois uma se conecta com outra, às
vezes se atravessam, rizomas que são.
A Revolução Francesa se inspirou no modelo grego
da ágora. Contudo, o século XIX, sob a inspiração de anarquistas e socialistas,
tal século descobriu a rua como espaço político. A política que vem da rua é
diferente daquela que é feita na praça. Em Brasília, por exemplo, fala-se da "Praça dos Três Poderes". Mas é na rua que vive a potência inumerável. Na praça, a palavra ainda está refém da
retórica individualizada, ao passo que a rua tem outra fala, às vezes anônima,
mas altamente singularizada, pois por ela se expressam agentes coletivos de
enunciação.
O espaço político da rua é um espaço de travessia, não para
chegar ao Palácio , tampouco ao Templo; pois a rua descobre o deus
dos caminhos, bem como a anarquia coroada, multifacetada, da multitudo em movimento. Enquanto
espaço político, a rua tem vida própria,
libertando-se até mesmo dos lugares aos quais
ela leva, de tal modo que ela devém elo que liga o povo a ele mesmo, não exatamente
ao seu passado, mas à sua condição ativa de povo por vir.
Eu amo as ruas.
João do Rio
quarta-feira, 4 de maio de 2016
o brinquedo
O tempo não é um velho,
mas uma criança:
dentre seus vários brinquedos,
o sempre novo é a esperança.
mas uma criança:
dentre seus vários brinquedos,
o sempre novo é a esperança.
Pondo no rosto uma expressão séria,
o menino levantou um dos braços, espalmou a mão e ordenou:
"Pare tempo!”
Como o tempo não parou,
o garoto saiu correndo,
o ultrapassou,
e, sorrindo,
deu uma careta pro tempo, dizendo:
"você não me pega,
quando crescer vou ser ser poeta!"
quarta-feira, 27 de abril de 2016
manoel de barros: a empoética terapêutica
(trecho do livro)
Podemos dizer que a poética de Manoel de Barros é uma original “empoética” sem regras ou cânones , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra conjuga quando perde seu limite utilitário (...).“Empoemando”, a palavra adquire a potência de expressar. Através desta potência, dá-se “um inauguramento de falas” que “insana”o significado habitual , gramatical e ordinário. Mas essa “insanidade”, ou agramaticalidade, produz uma verdadeira saúde : a de uma linguagem que redescobre a natureza extraordinária, singular, do sentido. Graças a essa poiésis da agramaticalidade,a linguagem é redescoberta como fonte de inauguramento de sentidos: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, revela-nos o poeta.
Empoemar as palavras é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Esta empoética não possui regra de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer agramática.O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Empoemar a palavra é torná-la despalavra, verbo-substantivo onde se pode enxergar “o feto dos nomes”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar desde que “abra seu roupão para o poeta”, e o deixe sê-la.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica, consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.
("O menino que carregava água na peneira", livro: Exercícios de ser criança)
( Ternura, choro de K-Ximbinho, por Conjunto Época de Ouro)
domingo, 24 de abril de 2016
manoel de barros: "o andarilho não precisa do fim para chegar"
"Poeta:
sujeito com mania de comparecer
aos próprios desencontros."
Manoel de Barros
Deixe-me ir, preciso andar...
Se alguém por mim perguntar,
diga que só vou voltar
depois que me encontrar.
Cartola
A linha de fuga é produção de uma desterritorialização
que se reterritorializa em um novo território que não lhe pré-existe.
Deleuze & Guattari
- O andarilho
“O andarilho sabe tudo sobre o nada" ( 1997, p. 47). Este nada é o dos nadifúndios .Ele anda "atoamente" , pois “vagabundear é virtude atuante para ele” ( 1997, p. 47). “Vagabundear” provém de “vaga”, “onda”. O vagar das ondas. Edmond Husserl, em seu livro Origem da Geometria, afirma existir uma proto-geometria cujo objeto de estudo são as “essências vagas”, também chamadas de “essências anexatas”. Não se deve confundir o anexato com o inexato. O anexato é inexato por essência, e não por acidente. Ele não é, portanto, uma cópia imperfeita do Exato. O anexato possui uma forma, mas é uma forma "vaga", e “vaga” é o nome que também se dá ao ritmo do mar, enquanto fluxo. A vaga expressa um ritmo, mais do que um ir em linha reta. O anexato é, como diz Manoel de Barros, uma "forma em rascunho".A forma de tudo aquilo que é anexato constitui uma passagem onde o que lhe está dentro lhe desborda, posto que em intensa variação.Enquanto a forma precária do inexato tende a se apagar, a forma em metamorfose do anexato não pára de se reinventar.
Os andarilhos não são exatamente os que andam em estradas já prontas, eles não são peregrinos ou meramente viajantes. Os andarilhos são os que inventam caminhos, sobretudo os caminhos que inauguram sentidos para a linguagem: sinto que “a estrada bota sentido em mim" ( 2010b, p. 59); o sentido está no meio da estrada, e não no seu começo ou fim. E é talvez por isso que “o andarilho não precisa do fim para chegar”,(1996 p. 71).Os andarilhos “carregam a liberdade deles nos passos que não têm onde parar” ( 2010b, p. 168): “no fundo os andarilhos só estão apalpando a liberdade. O caminho deserto deles é viver debaixo do chapéu” (2010b, p. 124).O “caminho deserto” é um “espaço liso” no qual se produz uma linha de fuga (DELEUZE E GUATTARI, 1980).Os andarilhos não são retirantes ou imigrantes, eles são itinerantes: eles inventam itinerários.O andarilho exerce a "pré-ciência da natureza de Deus". A "pré-ciência" é conhecimento das "pré-coisas", é conhecimento daquilo que é forma em rascunho.
- Obras de Manoel de Barros consultadas:
Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.
Outras referências:
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.
BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.
CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo : Annablume, 2005
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.
_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.
_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.
LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.
PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.
RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.
SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.
Francis Bacon Study for a Portrait of Van Gogh II, 1957
O andarilho abastece de pernas as distâncias
Manoel de Barros
sábado, 23 de abril de 2016
para além do preto e do branco...
Que pobreza, meu deus:
reduziram tudo ao preto e branco....
Mas há mais de branco neste preto
e de preto neste branco
do que imaginam aqueles que reduziram tudo ao preto-branco.
As cores ficam para depois, dizem eles.
Para quando exatamente?
Para depois que o preto destruir o branco,
ou o branco ao preto.
Mas terá de ser uma destruição completa,
dizem eles,
sem deixar resíduo do outro,
sem deixar memória, lembrança , rastro...
Assim, quando não houver mais branco para o preto odiar,
e preto para o branco,
somente assim o ódio se extinguirá
e dará vez à Verdade toda branca , se o branco ganhar;
ou toda preta, se o preto vencer.
Enfim, o Paraíso monocolor? Não...
Pois ficará a Verdade do Branco à espreita de divergências
pretas,
ou a Verdade do Preto à espreita de dissensões brancas.
E o branco
justificará a impossibilidade da cor em razão do perigo do preto;
e o preto dirá o mesmo....
De tal modo que um precisa do outro ,
como o reflexo precisa do espelho.
pelo poder incolor,
a vida reinventa-se
múltipla,
mesmo na dor,
mesmo na dor,
e em cor resiste na mão e na vida
dos que estão na margem.
dos que estão na margem.
sexta-feira, 22 de abril de 2016
manoel de barros e as "formas em rascunho"
Se a gente não der o amor,
ele apodrece em nós.
*** ***
A maior riqueza de um homem é sua incompletude.
*** ***
Os raminhos com que arrumo
as escoras do meu ninho
são mais firmes do que as paredes
dos grandes prédios do mundo.
*** ***
O menino sentenciou:
se o Nada desaparecer a poesia acaba.
E se internou na própria casca ao jeito que o
jabuti se interna.
*** ***
Não sou da informática:
sou da invencionática.
Manoel de Barros
Segundo o poeta Manoel de Barros, somos “formas em rascunho”.Somente quem está pronto se assume assim, como “forma em rascunho" de si mesmo. Pronto não como o que está acabado e não muda mais, mas pronto como aquilo cujo essência é o produzir e o autoproduzir-se,o autoinventar-se.Se o viver é processo, somente como forma em rascunho estaremos na vida não como a pedra está no rio, ficando imóvel enquanto ela, a vida, passa. Uma longa tradição nos inculcou que todo rascunhar existe em razão de uma forma pronta : o “Modelo”, e que , este sim, dá a ver o que de fato somos. Inclusive, esta forma pronta precederia ao rascunho, como a árvore ao grão, como o adulto à criança. Mas só como forma em rascunho aprenderemos a não opor mais a verdade ao erro, o ensinar ao aprender, a forma ao processo, o modelo à invenção.A forma em rascunho refaz seus contornos em razão de uma potência que lhe é imanente, mas que não lhe é um centro, posto que é abertura.Tudo é forma em rascunho para quem aprende a viver as coisas de dentro, como processo e metamorfose: o amor, a arte, o pensar, o corpo, o desejo, o cosmos inteiro...tudo é forma em rascunho que de dentro se vive e se afirma.
segunda-feira, 11 de abril de 2016
fiar junto
Pensamos em novelo.
Maria Gabriela Llansol
Diz a exata ciência que as linhas retas são a menor distância entre dois pontos imóveis. Mas o fio que que tece narrativas alcança os mais distantes pontos e os conecta, os aproxima, para assim criar elos, ampliando-nos até eles, mesmo que eles estejam em espaços que ainda não existem: espaços desejantes de invenção e utopias.
Etimologicamente, novelo é: novo elo. Traçamos fios juntos para criar novos elos.Essa é a razão de ser do novelo: não acúmulo de linha, mas manancial de novos elos, novos agenciamentos. Mesmo um objeto pode ser um novelo, um novo elo, desde que nos coloquemos como agentes produtores dos fios , fios de sentido, que nascem deles.Um objeto não é apenas uma coisa que se usa, ele pode ser um agente de novos elos.
Arthur Bispo do Rosário viu-se preso no labirinto de seus delírios. Porém,o fio da arte o fez achar uma linha de fuga : em cada lençol , em cada roupa, em cada coberta ou casaco que lhe davam no incomunicável quarto do asilo , ele soube achar nessas coisas o novelo ainda ali vivo; na coisa pronta ele soube descobrir o processo que as fez nascer.Não havia mais camisa ou lençol, mas um novo elo para ele se achar no mundo, achando-se em si mesmo. Ele viu o novelo que ainda vivia nas coisas como memória, imaginação, potência, invenção, virtualidade, enfim, vida...Sua bordadura poética fez viver de novo o fio que se fiou nas coisas, para assim fazer viver no finito o infinito novelo de qual todas as coisas saíram. E quem a isso vê, produz em si mesmo uma clínica, uma saúde.Dos fios desfiados de camisas e lençóis já quase em farrapos, Arthur soube com eles fiar as bordaduras de uma existência nova. Dos fios de um uniforme que vestia o louco, ele desfez a forma, libertou o fluxo dos fios, e com estes inventou a capa multicolorida de um rei.
(Arthur Bispo do Rosário)
São os novos elos que nos possibilitam criar linhas de fuga que vencem os labirintos.Mas não se fia esse fio sem o confiar nos elos, não se fia esse fio sem o agenciamento que todo con-fiar é.
Toda ideia é um fio que se fia junto, e o novelo do qual ela nasce é o pensar. Pois é isto o pensar: ele nada tem a ver com um ponto-ego, dado que ele é prática de fazer novos-elos, de os criar.
O amigo fia a ideia da amizade ao crer no amigo; o amante fia o amor para amar a quem ele se une em elo. É a justiça, a ideia da justiça, que dá ao juiz o poder que ele tem, não sua toga ou paramentos: a sentença somente é justa se for um fio que se puxa do novelo da justiça.
Os bons encontros de que fala Espinosa são fiações, bordaduras, tessituras das relações que nascem do Novelo infinitamente infinito da Natureza.
terça-feira, 5 de abril de 2016
"é preciso transver o mundo" (Manoel de Barros)
Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que possui visão fontana, uma visão que é fonte do que vê. Não é uma visão que constata o referente ou objeto; diferentemente, ela é uma visão que vê , antes, o sentido - que é a alma das coisas. Toda fonte se comunica com um fluxo invisível , que é de onde vêm as águas que nela nascem e fluem. Embora possam estar, hoje, sob o chão, tais águas já estiveram, outrora, no céu - do qual caíram como chuva; elas já circularam também no interior dos animais, como sangue e suor ; já desceram as montanhas quando a neve derreteu; já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; já foram o meio que alimentou o feto no interior da placenta. Um dia tais águas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; sobre elas o Espírito, um dia, andou ;hoje sobre elas se surfa, se desliza, se mergulha. E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos a bebem. É esse elemento que está em tudo , e que é a Vida de tudo em processo, é este elemento o que o poeta vê e sente , primeiro nele, como metamorfose e encantamento.
sábado, 2 de abril de 2016
a ideia de democracia em espinosa
O
pensamento político de Espinosa tem um ponto de apoio fundamental: a ideia de um
poder instituinte originário. Somente
o poder instituinte originário é, de fato, poder ontológica e democraticamente afirmado. O poder instituinte antecede o poder
constituinte: aquele institui, primeiramente, a si mesmo como fonte de todo
poder instituído. O poder instituinte é sempre afirmação, jamais negação: ao
afirmar-se, ele já faz desparecer todo instituído que o nega, pois nada tem
mais força do que o poder instituinte originário, quando este se une a si mesmo.
Afirmando-se, ele também se torna constituinte, para assim constituir novas
formas de positividade jurídica e social .Todos os outros poderes ( do juiz, do
policial, do deputado, do chefe do executivo, etc.) são poderes derivados, isto
é, eles não existem por si: eles somente
podem ser exercidos quando não se colocam contra ou ameaçam o poder instituinte
originário. Mesmo a lei é um poder derivado. Juízes servem a um poder derivado
( o poder da lex), parlamentares recebem um poder que não lhes pertence e que,
por isso, pode lhes ser tirado pelo poder instituinte originário, e tão somente
por este ( ou em casos previstos em lei ou regimento).
O
poder instituinte é “originário” não porque esteja no passado distante. Na
verdade, ele não está no passado histórico ou existe enquanto promessa de um
futuro igualmente histórico. O poder
instituinte cria história, desfaz outras, em razão de um tempo que é o das rupturas inovadoras. Ele é originário em razão
de cada um ser parte dele, porém não enquanto cada um é professor, aluno,
filiado a partidos ou sindicatos, igrejas ou associações. Ele é originário
porque antecede a todas essas determinações sociais instituídas. E se alguém é,
o tempo todo, apenas o que instituíram que ele deveria ser, jamais este compreenderá
ou fará parte do poder instituinte originário, ou compreenderá a sua força produtora.
O poder instituinte originário torna a
todos artistas, mais do que teóricos ou juristas. Ninguém é, por natureza,
médico, policial, deputado, presidente, etc. Tais designações são instituídas socialmente.
É o poder instituinte que institui a
sociedade onde passarão a existir designações e práticas instituídas. Tudo é
instituído, menos o poder instituinte. Tudo é produzido, e assim afirma o poder
instituinte do qual nasce.Nenhum outro poder antecede o poder instituinte originário, assim
como nenhuma vida pode anteceder a vida , a não ser sendo mais viva. Manoel de Barros diz que tudo o que vem
primeiro “tem primazia”. O poder instituinte originário é o poder da primazia, e não dos privilégios.
Para
a maioria dos pensadores políticos modernos que inspiraram tanto
liberais quanto socialistas , o poder político nasce com a
renúncia ao direito natural. Mas em Espinosa o direito natural é irrenunciável: ele é o direito que precede
o chamado direito do Estado , suas leis e sistemas de representação. O povo que
renuncia ao poder de instituir torna-se servo consentido da potestas que o
enfraquece e entristece.
O
direito natural , em Espinosa, tem outro nome: ética. “Direito natural” não
significa a existência meramente biológica ou material. À época em que Espinosa escreveu e
viveu, “natureza” era entendida como sinônimo de essência. E a essência de algo
é o princípio que a faz ser, existir, agir. Assim compreendida, a natureza
implica o corpo e a mente. Outra distinção importante feita por Espinosa é
aquela que envolve duas noções: potentia e potestas. Esta última palavra pode
ser traduzida por “poder”. Contudo, perde-se completamente o sentido da obra
política de Espinosa quando também se traduz potentia por poder.Em latim,
potentia também tem por sinônimo jus, ao
passo que lei é a tradução de lex. O direito natural não é lei que obriga isto
ou aquilo. O direito natural também não é direito à alguma coisa. O direito
natural é a própria existência que, por existir, já é direito a si mesma. Ninguém
existe por obrigação, mas por uma espécie de necessidade que não se opõe à
liberdade. É a lei instituída pelos homens que determina o que é justo ou
injusto. Existir, porém , não pode ser algo justo. Se o fosse, haveria a
possibilidade de um existir injusto. O existir é. Ele não é justo ou injusto,
embora isso não signifique que existir seja indiferente ao justo e ao injusto
que as leis determinam. Pois o injusto é o que diminui o direito natural, ou
existência, de cada um ; o injusto é o que ameaça a potência de
cada um.
A
ética não pertence ao campo dos valores dicotômicos, como bem e mal, justo e
injusto, lícito e ilícito. A ética é o campo da existência. Uma existência não
é justa ou injusta, ela é potente ou impotente. Ser impotente significa: ser
menos do que se pode ser.
Segundo Espinosa, o homem deseja mais mandar
do que obedecer. Por exemplo, a criança cresce querendo mandar, e somente o
aprendizado, e não o mero castigo, a
ensina a obedecer. Mas ela não é má por querer mandar , tampouco há mais
virtude em obedecer do que em mandar. O viciado obedece ao vício, preterindo o
mandar em si.O falastrão obedece sua língua, mas quem sabe guardar silêncio manda em sua boca. O homem
livre não é aquele que manda nos outros, o homem livre é , antes, aquele que
manda em si mesmo, que comanda a si mesmo, que tem plena posse de si. Mandar é
exercer, agir; obedecer é ser passivo. Todos os homens aspiram a tal poder de
comandar, embora confundam como conquistá-lo e exercê-lo, pois imaginam que o
poder sobre si virá mediante o poder sobre os outros.
O
que vale para um homem vale igualmente para um partido: um partido que não
comanda a si mesmo quererá poder para mandar nos outros, subjugando-os. E estes outros
partidos também acharão que ter poder é mandar nos outros através do Estado
conquistado. Em Espinosa, a lei é um comando, nunca um comandado. Ela é um comando porque
expressa um poder originário que a instituiu para ser expressão dele. Se a lei for apenas comando de alguns, destes ela será
uma comandada: ela perderá sua atividade e será, ela própria, um padecer de um
poder que se colocará acima dela. Além disso, ela será vista apenas como ordem por
aqueles que não a comandam. Contudo, se tal acontece, o problema não está na
lei em si, mas naqueles que aceitam , sem resistência, serem comandados,
submetidos àquilo que os enfraquece.
Espinosa
acredita que o poder social nasceu para que os homens mandem em si mesmos sem
que esse mando seja opressão ou repressão de uns poucos sobre muitos ou de
muitos sobre poucos. Assim, o único poder que possibilita aos homens mandarem
em si mesmos, sem que apenas alguns mandem e outros obedeçam, esse único poder
é o da lei, da lex. Somente através da lei os homens mandam em si mesmos e ,
mandando, são livres, de tal maneira que desobedecer a lei é desobedecer a si
mesmo através de uma burla feita a todos. Mas a lei, em Espinosa, não é todo o
direito, ela é apenas instrumento do Direito, pois o único direito é o natural.
A vida social nasce quando delegamos ao Estado
o poder de agir por nós. Mas apenas certas coisas podem ser delegadas, outras são indelegáveis. Nós delegamos ao
Estado o poder de agir acerca de tudo aquilo que envolve a sobrevivência do corpo.
Todavia, é indelegável o que concerne à existência do espírito, embora as duas
existências, a do corpo e a do espírito, estejam interligadas. Delegar não é
renunciar.
As
pessoas que recebem nosso poder de agir têm, por isso mesmo, o poder social.
Contudo, elas também existem e , por existirem, não renunciam ao direito
natural, à potência. Mas quando tais pessoas se valem do poder que receberam e,
burlando as regras, tiram o máximo proveito para si mesmas, tais pessoas se
colocam em uma obscura região que já não é mais a do direito natural, mas que
ainda não é o social. Essa região
obscura, nem jus e nem lex, é o estado de natureza: este não é natural
(potência) ou social ( potestas), ele é pré-social. Nele imperam as paixões tristes.Ele é um querer mandar na
própria lei, ou um querer dobrá-la usando a força, seja a força física ou a
força da moeda corrompedora.
Por
natureza, a criança quer mandar, e nisto não há mal, pois não há mal na
natureza. Educada, ela aprende a obedecer a lei , compreendendo esta última como
comando dela mesma, de sua natureza. Mas o que caracteriza o estado de natureza
é que, nele, um indivíduo sozinho , ou um grupo de indivíduos, imagina que pode
desfazer o poder da lei sem evocar a
potência da ética. Somente o povo pode, afirmando a si mesmo, desfazer o comando da
lei, quando esta já não é mais o seu próprio comado democrático, plural. Quando
um ou alguns querem fugir da lei, tal ação configura crime. Mas quando o povo
desfaz a lex em nome do seu direito, tal ato é uma afirmação da liberdade. Por
esse motivo, a causa da corrupção e outras mazelas não é a natureza, tampouco a
sociedade . A causa dessas tristezas e ódios é o furtar-se à natureza , bem
como o querer comandar sem ser por intermédio das regras . O direito natural é o campo da potência, a
esfera social é o lugar das regras, já o pré-social é a obscura zona da qual
alguns se servem para negar ética e regras, jus e lex.Mas quanto mais alguém
deseja esconder-se nessa zona, mas este “esconder-se” aparece.
Assim
como o direito natural é insuprimível, a
não ser destruindo a vida de alguém ou cometendo o genocídio de um povo, também não se pode instituir um campo social imune à possibilidade de
alguns viverem no estado de natureza. E é para isso que existe a lex: para a
defesa da pluralidade democrática. Ditaduras e fascismos criam apenas indivíduos
dóceis ou dissimulados, pois toda ditadura e fascismo crê que o homem é um ser
cuja natureza é má. Caberia a um Estado forte corrigir a natureza torta do
homem, e extirpar os “incorrigíveis”.
Para
Espinosa, a natureza humana não é torta ou reta: ela é. Além disso, a questão
fundamental não é defender os contratos, mas sim garantir que eles possam ser
suspensos, caso o direito natural de todos corra risco. O direito natural corre
risco quando um grupo pretende destruir o instituído pondo-se no lugar da
pluralidade instituinte.Apenas um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, não têm
poder para suspender o instituído pela multiplicidade instituinte. Somente a potência instituinte tem esse poder. Por
outro lado, não é por um contrato que a sociedade nasce, ela nasce por uma
delegação de um comando, e não pela obrigação de obedecer a contratos.
Os
contratos jurídicos são precedidos por um contrato social, assim professam os
filósofos políticos clássicos. Ora, todo contrato envolve, no mínimo, duas
partes, separando-as. Espinosa recusa esse modelo contratualista como fundador
do liame social. Pois se a sociedade nascesse de um contrato, de um lado se encontraria o povo enquanto multiplicidade heterogênea, e do
outro estaria o Estado (o "Um"). Mas como poderia haver contrato entre o povo e aquilo
que nasce por delegação dele? Não pode o mais potente se submeter ao menos
potente. Mais potente, em Espinosa, é quem é mais direito.
Um partido, um juiz,
um presidente, um deputado, etc. recebem um poder que somente pode existir em razão da potência ou direito natural do povo ( embora a palavra "povo" não traduza muito bem a multiplicidade instituinte que constitui a multitudo). Quando
o direito instituído perde sua relação
com o direito natural ( que é, inclusive, o único direito de fato ), Espinosa
afirma que é preciso, nesse caso, fazer retornar o poder àqueles que , ontologicamente, o
possuem : o povo. O povo não é uma classe, o povo é uma multiplicidade
heterogênea. Aqueles que mais ambicionam existir como um todo à parte, seja sob
a capa de um partido ou de uma instituição do Estado, estes sempre temem a multiplicidade,
e contra ela sempre acham justificativas para evitar que o poder volte à
potência que o gerou.
Em
certas situações onde dois ou mais grupos querem existir à parte, pondo em
risco o existir plural de todos, nessas situações, preconiza Espinosa, é
preciso desfazer a potestas instituída. Porém não a serviço de um grupo ou
outro, mas a serviço do povo, para que novamente se ordene, planeje,
proponha-se, através de ideias , e não da força, outras maneiras de instituir
nova potestas por intermédio de meios legais, incluindo eleições gerais. Pois o poder nunca é posse ou um fim em si, ele é produção de meios que favoreçam
a existência. Não há direito natural que possa existir sem uma sociedade,
embora toda sociedade exista em razão de um direito natural que não deixa com
que ela se feche ou se autodestrua em virtude de bandidos e corruptos.
Quando
uma sociedade perde o vínculo com a ética, isto é, com o direito natural
enquanto afirmação da heterogeneidade, quando isso acontece grupos em confronto
arvorarão para si uma razão exclusiva, em guerra civil com a razão do outro
grupo .Mas a razão nunca briga consigo mesma, apenas paixões brigam entre si,
sobretudo as paixões tristes do ódio e da vingança E mais violento será o confronto quanto mais
todas as cores possíveis forem reduzidas ao preto e branco, ao sim e não, ao pró ou contra.
Para
Espinosa, existe uma alegria passional que tem por contrário um ódio igualmente
passional. Contudo, existe ainda uma alegria ativa que não tem contrário, pois
é afirmação da própria vida múltipla. Do mesmo modo, existe uma democracia
representativa que tem por contrário tiranias e fascismos de toda ordem. Mas
existe ainda uma democracia originária, voz e expressão da multiplicidade
ontologicamente existente. Essa democracia originária não é representativa: ela
não pode separar-se de si mesma para, em outro plano distante de si, colocar-se
como representante de si mesma. Essa democracia originária não é representativa,
ela é produtiva: ela produz , sobretudo, os meios que impedem que ela seja
negada, dividida em duas partes ou enfraquecida. A democracia originária produz
tão somente uma coisa: democracia, pois a democracia é, ao mesmo tempo, produtora e
produto dela mesma.
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