sábado, 15 de dezembro de 2012

elo ( vasos atrás da persiana)








Ora indo por fora,
ora indo por dentro de mim mesmo,
nos dois caminhos o mesmo Deus encontro: a Natureza.
Ao encontrá-la, olho os dois caminhos e vejo que são o mesmo.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

o fio de Ariadne






Teseu representa a racionalidade simbolizada pelo homem como padrão.Teseu anda sempre firme, não dá um passo sem planejar antes onde pisa e como pisará.Teseu teme o imprevisto, e evita tudo o que não cabe em uma forma. Teseu quer a tudo dominar com régua e compasso. Seu caminho é feito de estradas retas , às vezes curvas.Mas raramente ele salta ou sai para “andar atoamente”, como diria Manoel de Barros.Um dia, uma vontade nasceu em Teseu: matar o Minotauro. Este era um ser híbrido: nem homem e nem touro, mas a soma dos dois, cujo todo fazia nascer um ser diferente do que a mera soma das partes.E era isso que o fazia um monstro: ele não era uma coisa ou outra, porém as duas ao mesmo tempo, e esta coisa que ele era não se podia classificar segundo um conceito.Um ser assim somente podia morar em um labirinto. Onde todos se perdem: era aí que o Minotauro se sentia em casa...O labirinto é um lugar que se entra, mas do qual não se sai, embora ele não seja infinito. No labirinto vira-se à esquerda ou à direita indistintamente, o que fere a lógica da direção. O labirinto é o fragmentar de uma reta, e é por isso que ele choca. Ele é o fragmentar infinito de uma mesma reta que não leva mais a nenhum lugar.É por isso que o centro do labirinto não é como o centro de um círculo ou como o centro de uma caverna, uma vez que ele não é um centro que abriga ou protege; ao contrário, nunca se sabe quando se chega nele, pois isso equivaleria a conhecer a própria ignorância. Contudo, conhecer a própria ignorância já é vencê-la. O labirinto não nos permite conhecer para aonde se vai ou de onde se veio. Há apenas o desejo de se sair dele, sem se saber os meios. Pois o que poderia ser um meio para dele se sair, pode ser um meio para nele entrar e se perder, sem se saber se se está no meio dele ou perto de sua saída. O Minotauro mora no centro do labirinto.Quem descobre o centro do labirinto, encontra o Minotauro, e desse encontro não há sobrevida: é a loucura, o absurdo da vida.Ligados umbilicalmente, um homem e uma besta, um homem e uma fera. E os dois formam um só. Isto devora e nos devora: devora o que em nós é homem. É a isto que Teseu não tolera: este um feito de contrários, pois isso impediria, segundo ele, a distinção do Bem e do Mal, do Racional e do Animal, enfim, da Lei e da Força.Mas o que Teseu desconhece é que tanto ele quanto o Minotauro são um aspecto da vida: o animal fundido com o homem, com o predomínio daquele; o racional junto ao animal, com aquele reprimindo este. Teseu pensa que pode vencer o Minotauro, e de fato o poderia se o encontrasse em céu aberto, sob a luz do sol da Razão. Todavia, Teseu ignora que não pode vencer o labirinto.O impede de vencer o labirinto exatamente a arma da qual ele extrai seu poder: o conhecimento retilíneo, racional.Para entrar no labirinto , Teseu teria que se despir de sua lógica. Entretanto, se isto ele fizesse, ficaria Teseu sem seu escudo e sem sua arma.
Então,salva-o um terceiro aspecto da vida: Ariadne. Em grego, Ariadne provém de um termo que significa “aranha”. A teia da aranha é uma espécie de labirinto onde a aranha aprisiona suas presas. Assim, Ariadne é uma produtora de labirintos. É por isso que ela o conhece bem, pois conhecer uma coisa é ser capaz de produzir a idéia que nos permite conhecê-la. Ariadne não está presa dentro de um labirinto, tal como o está um prisioneiro dentro de uma cela, sobretudo se esse prisioneiro ignora a prisão e imagina que a cela o torna forte pelo fato de ninguém conseguir sair dela, tal como acontece com o poder do Minotauro, que é o mero poder da destruição; tampouco Ariadne vive o labirinto como se fosse um meio externo que a limitasse . Artista, ela conhece como se produz um labirinto, e sabe que para vencer um labirinto é preciso um fio, uma linha. Não uma linha que se traça com esquadro ou régua, mas uma linha que se desprende de um novelo, e que permanece ligada a este, tal como permanece ligado o produto ao seu produtor, o raio à fonte de luz, os atos ao seu autor, o rio à sua nascente. O novelo é uma virtualidade da qual a linha nunca se separa, o que faz dela uma linha de fuga, como diriam Deleuze e Guattari. Novelo significa: "novo elo". Um novelo é feitos de elos, virtuais agenciamentos, e não linhas retas que começam e terminam em pontos, em egos.Entre o racional de Teseu e o irracional do Minotauro está Ariadne como expressão da Arte. É com o fio de Ariadne que Teseu, desperto, entra no labirinto e mata o irracional enquanto este dorme. O fio de Ariadne, fio do Amor, permite a Teseu entrar e sair do labirinto, sem morrer ou enlouquecer. Porém, Teseu apenas seduzira Ariadne, pois logo a abandona quando consegue lograr seus intentos neuróticos. Todavia, por muito tempo não chorou Ariadne , logo a desposa Dioniso, o Deus cujo nome seu poder revela: Di-oniso, “aquele que nasceu duas vezes”,onde o segundo nascimento, que é em verdade um renascimento, explica e dá sentido ao primeiro nascimento.Enquanto não se renasce, renascer nesta vida onde nascemos e não noutra, o primeiro nascimento permanece obscuro, sem sentido, um mero viver ao sabor do que acontece.O renascer não é uma outra vida: mas potencialização da Vida que nasce, renovada, de si mesma.

sábado, 24 de novembro de 2012

holos





Holístico procede de "holos", que significa, em grego,  "todo" ou "completo". Em uma época de especializações e conhecimentos compartimentados como a nossa, o pensamento holístico se apresenta como um antídoto a tal proceder esquizóide ( esquizo: o que vive à parte).Assim, o completo é aquilo ao qual nada falta.O holismo não é alcançado pela junção de partes, parte a parte, como num quebra-cabeça. O holismo se expressa na relação de cada parte com o todo, numa relação íntima, e não mediante determinações exteriores.Somos completos na medida em que nos sabemos como partes do que é Completo. Cada parte se torna completa quando expressa o todo em seu íntimo, em seu desejo.Integrada ao todo, cada parte se compõe com a parte que lhe é exterior, uma vez que o próprio exterior não é exterior ao todo: o exterior é uma maneira de apreender o que não tem fora, posto que não pode ser limitado ( o que pode ser limitado não é completo). Tampouco o todo existe como um todo à parte, tal como rezam certos misticismos ascéticos. Assim, o holismo não é um materialismo ou espiritualismo, mas a integração de ambos em um todo que não é cinza, mas integração de todas as cores e seus matizes, bem como suas combinações ainda por descobrir:todas as vozes  dizem o Completo  quando cada uma é completamente parte dele, polifonicamente.Em Espinosa, a Natureza é o Completo: cada parte do Completo é completa, uma vez que o Completo não pode nascer da soma de incompletos.O Completo não existe à parte de suas partes singulares, e é isto o que as torna completas, mesmo sendo partes.Assim, cada parte se sabe completa quando se sabe parte do Completo.O Completo não é o que está pronto, mas aquilo cuja essência é Produção Absoluta: é produção não porque seja incompleta, e sim porque é completamente Produção.







quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A natureza em Espinosa


Certa certeza ao certo me levará
ao acerto certo com a natureza.
Walter Franco   
                                                                                                    



 
Etimologicamente, "natureza" provém de natus, "nascido", mais urus, que significa "gerar", "produzir".Assim, natureza é "o nascido a partir de uma força geradora", força esta imanente ao próprio nascido."Natividade" e "natal" ( lugar onde se nasce) guardam proximidade com o sentido de natureza.Desse modo, a natureza é sempre força que gera ou faz nascer, nunca força que destrói ou mata.Na vida cotidiana, em meio a acontecimentos que nos fazem sentir temor ou dor, sobretudo quando nos imaginamos ameaçados,acabamos por ver o destruir em tudo, como se o destruir pudesse ser uma causa, como um "demônio" ou personificação do "Mal" . Sob tal imaginatio, muitos maldizem a vida como um "vale de lágrimas". Todavia, a natureza é sempre um fazer nascer: mesmo no que pensamos ser morte há um (re)nascer  que ignoramos.
Em grego, natureza se diz  physis. Todo ser finito, após nascer, vive a vida como um afastar-se desse acontecimento ( o nascer), e chama a esse afastar-se de crescimento. Assim, de criança o homem passa a adulto, e deste a idoso, o último termo do processo de afastamento da força que faz nascer.Dessa maneira, a vida aparece aos olhos do homem como um contínuo afastar-se do nascimento, como um rio que se perde da fonte,culminando com um ir para fora da natureza, para assim adentrar na "sobrenatureza" onde viveria o divino.Somente aí, dizem, a vida verdadeiramente começaria: longe da natureza.
Para Espinosa, porém, não existe sobrenatureza, a não ser como imaginação nascida do desejo de negar a natureza, isto é, o nascer.O idoso não é a criança que morre, mas o conservar na Vida uma vida que nasceu. O que pensamos ser a morte, é um conservar de outra maneira o que nasceu.Segundo Espinosa, a atividade da natureza para fazer nascer e a atividade para conservar o nascido são as mesmas, sobretudo porque a natureza é seu próprio fazer nascer: é deste que nasce o nascido.A natureza nasce dela mesma e se conserva como o nascido que traz em si o nascer.A natureza conserva o nascido no fazer nascer, de tal modo que a natureza nunca se afasta dela mesma, ela que é potência de produção da vida. Espinosa nos ensina que é possível, mediante a intuição , entrarmos em contato com essa força que faz nascer, para assim a apreendermos em nós mesmos , enquanto nascidos. Essa experiência sempre re-genera, nos faz nascer de novo, independentemente do quanto já tenhamos vivido, uma vez que o fazer nascer é a própria eternidade, e não algo que somente encontraríamos após morrermos.Em versos, Fernando Pessoa parece querer dizer o mesmo, quando diz que o poeta é sempre renascido quando vê/sente a "eterna novidade do mundo".

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

o amor em espinosa



Nossa suprema felicidade ou infelicidade depende da qualidade do ser 
com  o qual nos unimos através do amor.

Espinosa (Tratado sobre a emenda do intelecto)




I-Segundo Espinosa, quanto mais causas estão envolvidas na produção de uma coisa, mais esta coisa existe e menos ela pode ser destruída. O muito torna forte o um que dele nasce, a multiplicidade fortalece a vida da singularidade que lhe permanece ligada: a singularidade lhe permanece ligada não de fora, mas por dentro, intimamente. Um exemplo bem simples: o amor.Se o amor que sentimos por alguém tem por causa apenas um aspecto desse alguém , mais fácil esse amor poderá ser destruído: basta que desapareça esse aspecto que causou o amor .Os amores vencidos pelo ciúme, os amores infelizes, os amores inconstantes, os amores que fazem sofrer, todos esses amores têm por causa poucas causas, isto é, são poucos os aspectos do ser amado que realmente amamos. Então, passamos a querer modificar os outros aspectos que não amamos, o que só conduz à incompreensão , decepções e mútuas acusações de desamor. Se amamos alguém por causa da aparência de uma parte do seu corpo, poderá morrer o amor se esta parte mudar de aparência, o que sempre acaba ocorrendo com o tempo ou por um acidente.Mais grave: se amamos alguém por algo que lhe seja externo, como bens , propriedades ou poder, basta haver a diminuição ou perda dessas coisas para que o amor assim nascido também desapareça ou se perca.A autêntica beleza, além disso, nunca nasce apenas de um aspecto físico , mas da composição de elementos físicos e não físicos .Na mitologia grega, por exemplo, a graça , que é a alma de toda beleza,era representada por três irmãs: as Graças, cada uma diferente da outra ( o que significa dizer que a graciosidade de alguém sempre se deve, no mínimo, a três aspectos que nela estão de acordo).
Assim, diz Espinosa, o amor por alguém, seja esse alguém um par ou um amigo, será mais potente se esse amor tiver por causa vários aspectos desse alguém, e não apenas os aspectos físicos que o tempo pode mudar; o amor existe   mais   quando amamos  também os aspectos invisíveis de um ser, aspectos estes que se sente mas não se  pode tocar ou ver. Reduzir alguém a um aspecto apenas torna mais fácil a pretensão de querer dominá-lo e controlá-lo. Querer dominar é ódio, não amor.Se nosso amor, diferentemente, tem por causa vários aspectos, desse amor não nascerá o querer dominar, pois tal amor nos produzirá novos aspectos, que serão nosso ser ampliado.As pessoas não são apenas rosto ou corpo, muito menos carros ou profissões, elas também são atmosferas, acontecimentos, sensações, mistérios.Sobretudo, que seja causa do seu amor a pessoa inteira e mais o universo que está dentro e fora dela. Quanto mais causas, menos poderá ser destruído o amor assim nascido e vivido, seja ele o amor no sentido estrito ou o amor universal, como aquele que sentimos por um amigo. E mesmo quando da pessoa amada morrer tudo o que for visível, permanecerá ainda o amor causado pelo que nela é eterno.E o eterno em alguém nunca é uma coisa só, mas uma multiplicidade de aspectos . Antes de tudo, seja você mesmo um ser que uma multiplicidade faz ser. Não ser vários,voluvelmente, mas ser uma singularidade que existe porque muitas causas o fazem .Um estilo, por exemplo, nunca se expressa por linha reta, mas pelas linhas curvas, espiraladas, serpenteantes, labirínticas, abstratas...pois tais linhas expressam as várias forças que as dobram e as fazem ter curvas, como tudo o que é vivo.Sobretudo, ame-se  a partir dessas muitas causas, e não apenas a partir do seu ego.O amor que tem muitas causas , embora seja um só, nos produz uma infinidade de coisas: ele também se torna causa para que em nós nasçam muitas coisas, sobretudo mais amor em seus múltiplos aspectos.
 Por outro lado, torno-me capaz de vencer o ódio quando também o refiro a várias causas, e não apenas à pessoa ou coisa que odeio.Não apenas devo referir o ódio a várias causas, como devo compreender essas várias causas como o produzindo: incluindo eu mesmo, pois sou causa parcial do ódio que sinto.Isso não significa relativizar o ódio que sinto, e sim tornar absoluta a idéia adequada que me permite compreendê-lo.Ab-soluto: o que não se dissolve.Somente a compreensão impede que o ódio nos dissolva.Para Espinosa, o amor existe mais do que o ódio:reportar o amor a muitas causas o torna ainda mais forte, ao passo que o reportar o ódio a muitas causas o faz diminuir. Quando associamos o ódio a apenas uma causa, mais odiaremos a pessoa ou coisa que imaginaremos ser a causa exclusiva do ódio que sentimos. Esse é o princípio da demonização. As causas são as diferentes e múltiplas realidades que constituem tudo o que existe: quanto mais realidades são conectadas ao amor, mais o amor existe; quanto mais realidades são conectadas ao ódio, menos ele existe. Isso porque o ódio, como paixão triste, é mais imaginação do que realidade.Não obstante, isso não impede que o homem se deixe dominar pelos frutos de sua imaginação, dada a ignorância sob a qual muitas vezes vive, e , cego, roube,mate, minta, zombe, enfim, empreste seu coração , mãos e cérebro para que por eles viva um fantasma.A escuridão não é um outro princípio ativo distinto da luz , mas tão somente a ausência  da luz como princípio ativo:"o dia que nasce é a noite ao despertar", canta Alvaiade. Em Espinosa, a luz é idêntica ao amor: somente o amor é verdadeiramente causa. Quando assim o vivemos, o amor se torna inseparável do desejo.
O amor em Espinosa não se confunde com o Eros grego, tampouco com a visão romântica, que acabou impregnando toda a compreensão posterior desse afeto, reduzindo-o ao mero sentimento psicológico, subjetivo. Espinosa é o herdeiro de certa visão romana desse afeto, como se encontra por exemplo no filósofo Lucrécio. Não a Roma centrada em si mesma, belicosa e imperialista,e sim a Roma como microcosmos da natureza, como cosmópolis :cidade do cosmos, do mundo. É sob essa inspiração que nasce a concepção do amor como a-mor, isto é, a junção da letra "a" com função de negação ( como em a-fasia, "sem fala") e a abreviação da palavra "morte". Desse modo, para os romanos de então, como para Espinosa, o amor é "não morte": fora do amor, tudo é morte . Não apenas morte física, mas morte no sentido mais amplo dessa palavra.
O amor que o sábio sente e vive é o mais indestrutível,pois tal amor tem por causa o que nunca morre, e que está presente em cada coisa, mesmo naquelas diminutas coisas que ninguém vê ou dá importância. O sábio sente que sua essência tem por causa o universo inteiro. Por isso, ele sente de alguma maneira que sua essência é indestrutível, pois para destruí-la seria preciso destruir o universo inteiro. Ele sente isso sem alarde, sem se gabar, sem se achar um santo ou alguém acima dos outros. Como dizia Manoel de Barros, o sábio-poeta é aquele que diz “eu-te-amo para todas as coisas”.
Remeter a existência de algo a muitas causas somente faz sentido quando as referidas causas são outros modos finitos existentes. Se conseguirmos perceber uma relação necessária entre algo e muitas causas ,vencemos a contingência e sua inconstância, uma vez que a contingência se caracteriza pela relação restrita entre algo e pouquíssimas causas, ou pela imaginação de que algo acontece devido a “causas” incompreensíveis. Todavia, podemos ainda relacionar a existência de algo à sua essência, o que significa dizer que não é pela mera relação entre existências que a compreenderemos, mesmo levando ao infinito a cadeia explicativa.A compreensão da essência de algo implica na relação deste algo com sua causa imanente, e esta nunca lhe é exterior.Tudo o que realmente existe traz em sua imanência a causa que a produz e a torna inteligível.Descobrimos, assim, um infinito de potência, que é um infinito de capacidade. O que pode o amor? Pode um infinito. Esse infinito que o amor pode não lhe é exterior, como o são as infinitas coisas que existem fora de nós. O infinito que é imanente ao amor é imanente a todas as coisas finitas que nos são exteriores: é experimentando em nossa imanência esse infinito que compreendemos o infinito que é imanente a cada coisa, e não experimentando cada coisa uma a uma, como para ter certeza de que a Natureza lhe está imanente, isto por que o infinito não nasce da mera soma de coisas finitas. As coisas finitas não se tornam infinitas pela soma delas, mas pelo infinito que já lhes é imanente na singularidade de cada uma. O infinito não nasce da soma de finitos exteriores uns aos outros: o infinito é imanente a cada coisa em sua diferença, em cada coisa singular o infinito está inteiro.O infinito é o que multiplica cada coisa singular,dotando-a da potência de produzir o que sua mera existência não nos deixa conhecer totalmente.O infinito não multiplica algo por mil, um milhão ou um bilhão: ele multiplica cada coisa tornando múltipla sua potência, pois múltipla é toda potência que singulariza.
Desse modo, compreendemos o verdadeiro sentido de “reportar o amor a muitas causas”: para assim compreendermos que ele não se torna mais forte quanto mais depender de muitas coisas externas, do mesmo modo que um escravo não se torna livre pelo acréscimo infinito de seus senhores. Um escravo se torna livre pela causa da liberdade, e esta nunca nasce do aumento da escravidão, mas pela sua destruição.Todavia, a liberdade não é destruição da escravidão, mas afirmação de liberdade, e liberdade nada tem a ver com escravidão. De maneira análoga, as muitas causas que tornam o amor mais forte são todas já amorosas, são todas já amor. Logo, já são imanentes ao amor, e não lhe estão fora.

II-Toda produção de um indivíduo pressupõe um processo de individuação. Um automóvel, por exemplo, antes de ser um indivíduo com seus contornos e características,ele foi chapa de ferro, borracha, aço, etc. Ou melhor, nem mesmo isso ele era, pois uma coisa é o ferro, a borracha, etc., outra coisa é um automóvel. Ademais , o processo de produção de um automóvel significou a criação de um indivíduo, não de uma ideia geral ( "O" automóvel).Todo indivíduo possui semelhanças e diferenças em relação a outros indivíduos. Tudo o que existe foi produzido de forma análoga. Um indivíduo humano, por exemplo, é o produto de um processo de individuação químico, físico, biológico e psíquico. Quando tal indivíduo assume papéis e funções na sociedade, um novo fator entra no processo de sua individuação: o fator social. Todo processo de individuação nunca termina, dado que constantemente o indivíduo lida com elementos externos que ameaçam a sua individualidade.Para conservar a si mesmo, não raro os indivíduos disputam por elementos necessários à sua manutenção como indivíduo.É comum ao indivíduo ver-se  em oposição   a um meio externo físico ou social que lhe pode ser hostil ou favorável, conforme o tempo e a situação.Mas e o amor, onde entra?
O amor é um processo também, assim como a individuação. Como tal, ele também produz. O amor é um processo de singularização.A singularidade não é a mesma coisa que o indivíduo, disso sabe quem ama, mesmo que não tenha a consciência dessa diferença.Antes de se amarem , Romeu e Julieta eram dois indivíduos de duas famílias que se odiavam.Antes de se amarem , era assim que eles se conheciam. Contudo, quando se amaram perceberam que o antigo conhecimento, o que fomentava o ódio, era na verdade uma forma social de ignorância.O amor faz conhecer coisas que o conhecimento do indivíduo ignora. A ciência ora pende para o universal,como no Racionalismo, ora para o individual, como no Empirismo.Entretanto, nenhuma dessas formas de conhecimento consegue atingir o singular.Conhecer o singular torna singular a nós também.
Quando amamos algo ou alguém, singularizamos este alguém: criamos uma realidade que existe graças ao nosso desejo. Embora não seja meramente química, física, biológica, psicológica ou social, a realidade criada pelo amor vivifica tais outras realidades, as potencializa, integrando mundo físico e espiritual como  partes de uma mesma realidade que se conhece sentindo. É o amor que singulariza. Quando amamos algo, este algo passa a existir mais, uma vez que sua existência aumenta também a nossa. Nesse sentido, amor e desejo são a mesma coisa, embora  desejo e prazer não sejam o mesmo. O prazer quase sempre se relaciona à posse ou destruição do indivíduo que provoca o prazer ( o prazer da comida, da bebida e outros prazeres corpóreos gastam elementos que novamente precisam ser reparados ou substituídos quantitativamente, daí a possível vinculação do prazer com o vício, que é a tara pela quantidade), ao passo que o desejo expressa sempre um aumento de existência, e este aumento nunca é um fenômeno meramente quantitativo ou numérico. Amar a si mesmo, por exemplo , é singularizar-se, mais do que meramente se individualizar se opondo a outros indivíduos, ou acumulando coisas. Singularizar-se é produzir um estilo.
Os processos de individuação nos apresentam os indivíduos como realidades já prontas. A gíria e o jargão profissional têm algo em comum: são indivíduos linguísticos que, para pertencermos a um grupo, os tomamos e os reproduzimos, apesar da aparência de que estamos sendo originais, sobretudo no caso da gíria.O poeta, ao contrário, singulariza a palavra, fazendo-a, como diz Manoel de Barros, "abrir o roupão para ele". Singularizar é tornar-se ativo, produtor.
Deus é amor, afirma Espinosa. Deus ama a si mesmo como realidade singular, não como indivíduo. Deus é singular, uma vez que ele é ativo perante ele mesmo: ele se autoproduz produzindo a tudo. E cada coisa que ele produz é uma modificação dele: enquanto tal,cada coisa é singular. É por isso que o amor nos faz expressão do divino: pois onde todos somente  vêem indivíduos, aprendemos a ver a singularidade, a espontaneidade, a arte. Como singularidade, aprendemos a não nos opor a um meio externo que supomos nos limitar, dado que apreendemos o infinito que nos é imanente.
Quando amamos alguém, singularizamos esse alguém, singularizando a nós mesmos.Percebemos que somos frutos de um processo que não nos é anterior, tal como o processo de individuação é anterior ao indivíduo; diferentemente, experimentamos o amor como um processo que é inseparável de nós: quanto mais ele se potencializa, mais nos potencializamos, quanto mais o produzimos, mais ele nos produz.O amor nos torna "forma em rascunho".
Amar a Deus é expandir o amor ao universo inteiro, deixando o universo inteiro se expandir  em nosso íntimo como processo que nos singulariza e nos faz existir mais, posto que nos torna parte singular de sua Potência que a tudo produz, conserva e regenera.
Quando compreendemos/experimentamos a Natureza/Deus como causa de tudo, percebemos que o reportar algo a muitas causas é apenas o caminho para apreender a única Causa que produz a tudo. Assim, descobrimos o verdadeiro valor do "muito": muito não numericamente, como mera quantidade, mas muito como Potência que age mesmo no mais singular e raro acontecimento. O muito da Potência é o muito que multiplica cada coisa singular, tornando-a mais integrada ao Todo que a torna inteligível e compreensível.




















sexta-feira, 28 de setembro de 2012

trecho do livro





Podemos dizer que a poética de Manoel de Barros é uma original “empoética” sem regras ou cânones , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra conjuga quando perde seu limite utilitário (...).“Empoemando”, a palavra adquire a potência de expressar. Através desta potência, dá-se “um inauguramento de falas” que “insana”o significado habitual , gramatical e ordinário. Mas essa “insanidade”, ou agramaticalidade, produz uma verdadeira saúde : a de uma linguagem que redescobre a natureza extraordinária, singular, do sentido. Graças a essa poiésis da agramaticalidade,a linguagem é redescoberta como fonte de inauguramento de sentidos: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, revela-nos o poeta.
Empoemar as palavras é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Esta empoética não possui regra de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer agramática.O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Empoemar a palavra é torná-la despalavra, verbo-substantivo onde se pode enxergar “o feto dos nomes”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar desde que “abra seu roupão para o poeta”, e o deixe sê-la.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica, consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto no final da frase.

("O menino que carregava água na peneira", livro: Exercícios de ser criança)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

jardim de primavera







O tempo não é um velho,
mas uma criança:
dentre os seus vários brinquedos,
o sempre novo é a esperança. 

***   ***   ***

Um pardal me trouxe, no bico, uma carta sua:
era uma folha de amendoeira pelo tempo amarelada.
Despida desse passado um verde novo na árvore já vai nascer.

o ponto de interrogação

A metafísica nada mais é do que a tentativa de responder as questões das crianças.
Groethuysen

O que tornou o ser humano, humano?Que fato?Que idéia? Qual acontecimento? Segundo a ciência, em tempos muito remotos, um fato transformou um determinado ser que, em postura e hábitos, mal se distinguia do que hoje chamamos de chipanzé.Este fato foi uma mudança de postura, postura esta que nunca antes tal ser ousou: ficar de pé. Ficar de pé não apenas eventualmente, como fica o urso, mas ficar de pé como acontecimento incorporado mais do que aos músculos,nervos e ossos, mas também à mente, à visão, ao espírito. O ficar de pé fez o homem. Esta atitude, o ficar de pé, também foi uma nova relação que o homem estabeleceu com ele próprio e com o mundo.
Uma nova pergunta se impõe: o que fez o homem ficar de pé?Para o paleontólogo Leroi-Gourhan, no livro O gesto e a palavra, o acontecimento que produziu o ser humano foi a lenta e irreversível transformação de nossas mãos. Embora, claro, sejam os pés que nos sustentam na postura ereta, esta foi produzida, no entanto, pelas mãos.No início, as mãos eram usadas fundamentalmente como meio de locomoção, como se fossem patas. O homem andava e corria apoiado também sobre elas, e não apenas sobre os pés.Pouco a pouco, as mãos foram sendo desterritorializadas do chão. Desterritorializar-se significa, entre outras coisas, “libertar-se”, “desfazer um vínculo”, “desfuncionalizar-se”, “fugir de um território”, enfim, “nomadizar-se”.Desterritorializadas, as mãos foram adquirindo autonomia em relação à função de locomoção, passando a serem usadas para uma nova função: a preênsil. Esta consistia em pegar, transportar e manipular os objetos que despertavam o interesse do homem, e que o ajudavam a sobreviver,seja como ferramenta ou como arma; desse modo, o homem se sobrepunha aos animais ,ou mesmo aos outros homens.
Todavia, não é a nova função preênsil que explica o deixarem de ser as mãos meras patas. Entre a antiga função e a nova há um intervalo que não se explica pelo discurso meramente funcionalista, utilitário. Este intervalo é ocupado pela invenção, pela potência da vida, pela autoprodução – que interage com o meio externo, mas não é mero efeito deste. As mãos se desterritorializaram do chão e se reterritorializaram no instrumento, pois foi isto que nasceu junto com a mão: o utensílio, o instrumento, o mundo do fazer. Reterritorializar-se é mais do que servir ou se adaptar a uma nova função: é criar um novo mundo, um novo território existencial, ao mesmo tempo técnico e simbólico.Um galho de árvore, por exemplo, deixa de ser apenas um pedaço da árvore: ele se torna um bastão, uma extensão das mãos do homem. A desterritorialização nunca incide apenas sobre um dos termos, mas de pelo menos dois: a desterritorialização das patas fez nascer as mãos, ao passo que essa mesma desterritorialização também agiu sobre o galho, que se tornou utensílio quando as mãos se reterritorializaram sobre ele, fazendo nascer um novo mundo,mundo este que não pré-existia à reterritorialização, pois foi ela, ao contrário, que o fez nascer junto com ela. É por isso que toda desterritorilização se faz para produzir um agenciamento: no caso, o agenciamento mão-utensílio.
A postura ereta produziu uma nova estrutura da abóbada craniana, arredondando-a ( na arquitetura, por exemplo, as cúpulas arredondadas , esféricas, conferem às construções um ar de controle sobre as forças desestruturantes do peso). No gorila e no chipanzé a pontiagudez do crânio resulta do maciço osso que ali se salienta , suporte que é dos poderosos músculos que dão força à mandíbula.O osso da testa, igualmente robusto e protuberante nesses animais, no homem ele se adelgou e alongou. Atrás da testa pôde nascer então o neocórtex, que é a parte mais recente do cérebro, responsável pela linguagem e outras atividades simbólicas. Com a verticalização da testa e recuo da mandíbula, nasceu a face, o rosto. Este passou a ser a superfície de expressão do mundo interno. Por ser direcionado ao outro, a rostificação daquilo que nos animais é apenas a cara indicava também a positivação da relação social e sua importância para a vida do indivíduo. Aqui, surge um novo agenciamento: mão-rosto, uma vez que as mãos, na situação social de comunicação interpessoal, também comunicam: como gesto, isto é, movimento expressivo, no qual o sentido é como que desenhado no ar. Essa é a explicação da ciência para o surgimento do homem. Mas a poesia também fornece seu sentido para o fato, e quem o narra é Fernando Pessoa.
Para o poeta, em tempos remotos o homem andava de quatro, mais ou menos como o faz, hoje, um cão.A coluna vertebral do homem era como um travessão paralelo ao chão.A cara, quase sempre direcionada para o chão, procurava avidamente por restos, pedaços, rastros, resíduos, sinais.Até que houve uma desterritorialização, uma libertação. Esta ocorreu não com as mãos, como afirma a ciência, mas com os olhos: libertando-se das algemas do chão, da gravidade e do imediato, os olhos voltaram-se para o céu.Os olhos se desterritorializaram em relação ao chão e se reterritorializaram no que não tem limites e contornos, e que existe sem que o diminuam as pequenezas, os interesses, as cobiças e posses. Reterritorializando-se no infinito, abriram-se no homem mais do que os olhos do corpo: abriram-se os olhos do espírito. Aconteceu muito provavelmente durante as noites, após o sol retirar-se e, com ele, a presença das coisas tangíveis que se podem cheirar e tocar.Sob as estrelas, os olhos se libertaram da passividade que os reduzia à ação das coisas externas, finitas, e pôde o olhar lançar-se através do olho animal que o homem ainda tinha, fazendo-o alçar-se consigo.Sobre a abóbada do crânio, o olhar se alçou à outra abóbada , que nunca se fecha, eterna fábrica de mundos.Mais do que os olhos de ver, alçaram o homem os olhos de explorar.
Se toda desterritorialização é um libertar-se, os olhos se libertaram da percepção do imediato, reterritorializando-se na apreensão do eterno.Se toda reterritorialização é um agenciamento, o agenciamento que produziu o homem tem por essência o seu caráter poético e produtivo, cuja ferramenta que potencializa o homem é o próprio pensamento, ferramenta com a qual ele produz se autoproduzindo, agenciado não com o conhecido, mas com a potência de conhecer; não com o objeto, e sim com a potência de pensar e sentir.O homem passou a ver através de um ver que sempre se renova, um ver que não constata ou mede, conta ou reconhece, uma vez que o que ele vê não é objeto ou coisa, mas abertura que a tudo amplia.Foi esse olhar que pôs o homem de pé, e não apenas de maneira física, sobre os pés. Desse olhar nasceu um afeto como experiência do homem consigo mesmo, tendo como moldura o infinito.
Etimologicamente, “afeto” significa “ser tocado”.E o que tocou o homem de então pode o homem de qualquer época experimentar, pois tal realidade se apreende com a percepção, e não com a memória. É por isso que tal realidade se renova e renova, e somente assim, como renovação, pode ser conhecida.Espinosa afirma que ela re-genera, gera novamente.Esta é a potência do homem: gerar-se novamente de acordo com a Potência que a tudo gera, e que permanece imanente ao que gera.
Então, segundo o poeta, foi assim que o homem nasceu: com a necessidade de nunca deixar de renascer. Como conseqüência, a coluna vertebral do homem deixou de ser um travessão paralelo ao chão, tampouco se converteu em linha vertical em ângulo reto, mero ponto de exclamação. O que mantém o homem de pé, sua coluna vertebral, transformou-se em um ponto de interrogação, pois é assim que se mostra a coluna quando olhada de perfil. Assim, não são os pés, mas o questionamento que dá estatura ao homem.O que mantém o homem de pé é o olhar que não apenas vê ou reconhece, mas indaga o Sentido.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

visão fontana X olhar da morte


Segundo Maurice Blanchot, no texto intitulado “O olhar da morte”, o homem da ciência, quando faz do objetivismo um credo , conduz-se como alguém que, para conhecer um quarto, põe-se fora dele, e passa a olhá-lo pelo buraco da fechadura.Escondido, oculto, “neutro”, sem ter lugar naquilo que conhece, tal homem descreve todos os aspectos do quarto, suas dimensões e propriedades, mas se ausentando, ele mesmo, daquela realidade. Tal homem empresta seus olhos, ainda em vida, para que através deles olhe para a vida a morte. E ele crê que é daí que se pode produzir a “verdade”. Fatos como respirar, transpirar, rir, afetar-se, tudo o que conota a presença do corpo, são mantidos fora do quarto, neste lugar nenhum inventado por quem se ausenta da vida.Antes de tudo, o que tal postura objetiva é eliminar o corpo e o acontecimento, em nome de uma razão ou “ego transcendental” que imagina não fazer parte do mundo que conhece.
Os livros, as doutrinas , as leis, as academias, as “especializações”, etc., muitas vezes são como a fechadura dessa porta atrás da qual se quer esconder o desejo. Para a fechadura ter seu poder, é preciso que a porta esteja fechada, e a chave fique na posse dos doutos e dos sacerdotes de toda espécie, que a guardam como aquilo que não se pode ter acesso, a não ser depois da obtenção de Títulos, unções, batismos, latifúndios no Lattes... Até crescer nas costas um fardo, que é a “corcunda” que identifica , como diz Nietzsche, os que se deixam prender tanto com algemas de aço quanto com algemas feitas de algodão, estas últimas especialmente eficazes para a servidão voluntária.
Tal visão do conhecimento mantém o conhecedor sem se conhecer, uma vez que ele está onde não se vê, e tampouco pode ser visto . Mas se ele se ignora, como pode ele conhecer qualquer outra coisa?A morte vive de cercar, compartimentar, criar muros e portas, de trancar o que vive fora da vida, o que aumenta o valor das fechaduras e dos claustros, e legitima os ritos de tudo o que se isola em celas , sobretudo na cela das disciplinas fechadas sobre elas próprias. Este lugar fora do quarto, lugar nenhum, nele se apóia a ciência que se arroga como nada mais nada menos do que a “razão pura”.
A autêntica perspectiva, enquanto atividade constituinte da diferença, nunca se produz de fora, mas de dentro, na imanência. Para o conhecimento autêntico, o mundo não é um espaço em relação ao qual devemos nos colocar de fora, pois o mundo não tem paredes: ele é processo que se conhece sem segredos ou mistérios. O mundo não tem chaves ou fechaduras, embora ele possua passagens que levam sempre para dentro dele, ele que é, como diz Foucault, o Fora: indo para dentro dele, vamos igualmente para dentro de nós mesmos, pois somos do mundo uma dobra, como a onda o é do oceano.Se o mundo é o Fora, ir para dentro dele é afirmar o agenciamento, o encontro com outras dobras de nós diferentes, mas que são dobras do mesmo mundo que lhes existe e insiste imanente.Agenciamento é o processo de produção não de sujeitos, mas de agentes. O sujeito cartesiano ou kantiano “cogita” isolado, ele é o que olha atrás da porta, através da fechadura, ao passo que o agente produz sua autonomia no agenciamento, no qual o outro agente pode ser uma música, uma pintura , uma paisagem , uma molécula , um animal.
A perspectiva é relação, não isolamento atrás da porta. A perspectiva singular é afirmação também do desejo. A visão que apreende o mundo precisa ser multi,pluri, interconectada (com a vida, e não somente com a tela de um computador), tal como, no poeta, a “visão fontana”.Os instrumentos que aumentam a perspectiva imanente são os micros e os telescópios , tanto os físicos como os simbólicos, apontados para o infinito cosmológico e para o infinito microfísico. Também potencializa nossa perspectiva o bom cinema e as artes, sobretudo as não figurativas. Ter uma perspectiva não é se isolar ou se opor a outras perspectivas, mas achar o seu lugar numa rede de relações, tal como um ponto singular, ou raiz,  de um rizoma.
Os rizomas são formações vegetais que não possuem centro, e que crescem horizontalmente. Ao contrário das árvores, que possuem uma raiz que as fixa ao solo, um rizoma é constituído por uma multitudo de raízes, e em cada uma delas o rizoma se apóia para se mover e se expandir. As raízes de um rizoma são, ao mesmo tempo, sua semente e seu fruto, uma vez que é da raiz singular que o rizoma brota, raiz esta que o próprio rizoma produz.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

entre as duas margens





Às vezes, há apenas a sensação da vida, mas não o viver. A vida não é apenas sensação da vida, ela é o viver.
Se toda sensação nasce  de algo nos tocar, a vida é também este outro lado, esta outra margem, na qual está não um chão imóvel, mas a continuidade indefinida  do que está "entre", no meio, e que é processo sem termo.