quinta-feira, 29 de agosto de 2019

assobios...


Há uma passagem do livro “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche, na  qual Zaratustra cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de fragilidade, o anão suplicava amor e amizade  a Zaratustra, e lhe  pedia para ir em seus ombros. Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus ombros e seguiu sua viagem. Porém  não avançou muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava ver logo ali adiante. Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo destino dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e implorar aos carrascos perdão. Zaratustra já se inclinava para prostrar-se  derrotado  quando, de repente, um grito veio de dentro dele e protestou : “Pera lá, anão! Você quer é me submeter à tua covardia, às tuas pernas curtas!”. Livrando-se das seduções  da autopiedade, Zaratustra  expulsou o anão de suas costas. Foi a voz da vida,  da vida que resiste e avança, que protestou contra a resignação que já tomava conta do querer de Zaratustra. Em alguns, essa voz se faz alta para acordar e  levantar  quando carrascos nos querem ajoelhados; noutros, nos já despertos, essa voz  se faz poesia e se transfigura assobio, como em Manoel de Barros.



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