Talvez devêssemos viver de tal modo que , por nossas palavras e práticas,
não fôssemos um exemplo , um triste exemplo, para os versos de Augusto dos
Anjos, dando-lhes razão. Não por
questões morais , tampouco para ser “politicamente correto”. Os célebres versos
dizem mais ou menos o seguinte: “A boca que hoje te beija, é a mesma que amanhã
vai te escarrar”.
Não se deve reduzir poesia a
ressentimentos psicológicos. Mas há nesse poeta uma leitura da alma dos homens, revelando como ele supunha que os homens são. O poeta traduziu em versos as volubilidades do “outro”. É em relação ao
outro que o poeta aconselha precaução e cautela , quando do outro recebemos amor
e afeto. Ele quer dizer que o amor do outro facilmente se converte em ódio e
desprezo, como se fosse uma lei da natureza humana. Todos que te odeiam, ontem
te amaram, como se o amor fosse apenas uma razão para odiar.Há nessa visão
amargura? Ou apenas ironia? Talvez, quem sabe, haja nesses versos apenas aquele tipo de fingimento típico do
poeta, como dizia Fernando Pessoa.
Mudando o foco do outro para nós mesmos, o Drº Espinosa, Clínico Geral, diria: “Se tua
boca hoje beija algo, jamais deixe que tua boca amanhã escarre naquilo que ela beijou.” Ele prosseguiria: “ Não ceda a essa pequenez, pois ela nada
mais é do que a imagem que o escravo, o homem triste, faz de sua liberdade”. Não
há nenhuma liberdade em resolver escarrar naquilo que ontem se beijou. Se
alguém crê que é livre escarrar hoje naquilo que ontem beijou, não apenas o escarro
de hoje não é livre, como também não o era o beijo de ontem. Não havia amor
naquele beijo.Não apenas ao outro não havia amor, como também não havia a si
mesmo. Sem falar naqueles que apenas escarram e escarram, sempre achando motivos e razões para escarrar, pois na verdade não sabem beijar ( e essa incapacidade
não raro encobre um ressentimento por nunca terem sido beijados).E há aqueles
que apenas beijam na esperança de serem beijados ( estes são inclinados a sutis
vinganças, quando não recebem de volta o beijo que negociaram, como se fosse um mercado de trocas, ou de compra e venda).
Clinicamente, em nome de uma prática não fascista e rancorosa, o Doutor
Espinosa preceitua: não deixe de beijar o que você supõe ser merecedor do teu
beijo. Beije, sem pedir nada em troca. Seja grato por ter a quem beijar, e não
cobre ao beijado reconhecimentos pelo teu beijo. Não suponha que é ele que tem
que te ser grato. Antes de tudo , porém, valorize teu beijo beijando tão
somente o que merece ser beijado.
Aqui, beijo não é apenas o colar os lábios no rosto de alguém. É mais do
que isso....Amizade, amor, admiração, elogio...são beijos. Maledicência, inimizade, intriga, zombaria...são escarros.Se por algum motivo você supõe que aquele que ontem você
beijou não merece mais que hoje você o
beije, não transforme esse pensamento , ou imaginação, em ato, pois é vil todo
pensamento que se expressa em escarro. Se ele não merece hoje seu beijo, não o
beije mais. Porém não ceda à tentação de escarrar, pois se estará escarrando não
no outro, mas no seu próprio beijo de ontem. Sua capacidade de beijar perderá a alegria vital e espontânea, de tal maneira que teu beijo será visto com
desconfiança, e os sinceros fugirão do teu beijo. Se alguém que você beijou não
merece mais seu beijo, esqueça esse alguém, afaste-se, e guarde sua energia,
seu desejo, seu amor, sua imaginação, seu afeto...para achar novamente quem seja digno do teu beijo. Mas
se você imagina que ninguém merece teu beijo, vá se olhar no espelho, e veja se
ainda não está no seu rosto restos do escarro que você recebeu de quem ontem te
beijou. Não deixe que os outros vejam primeiro que você essa mancha.
Nunca beije quem jamais foi beijado apenas por pena. Cautela com os beijos
que você recebe:não é por socos ou tapas, mas por beijos que os Judas se revelam
e traem. Nem beije apenas para ter quem beijar. Evite contabilizar os beijos que
recebe, e nem cobre pelos beijos dados. Se você for escarrado por quem ontem te
beijou, limpe bem seu rosto, remova esse passado, não o deixe enrijecer, e seja firme na decisão de nunca buscar vingar-se beijando um outro apenas na esperança de amanhã poder escarrá-lo.
Não deixe na boca um escarro pronto como vingança, deixe um beijo que
desarma o inimigo.É no exercício constante do beijar que alguém se torna digno de ser
beijado, e não na mera esperança de ser beijado.
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