sexta-feira, 16 de setembro de 2016

terceira consulta ao Drº Espinosa


Talvez devêssemos viver de tal modo que , por nossas palavras e práticas, não fôssemos um exemplo , um triste exemplo, para os versos de Augusto dos Anjos,  dando-lhes razão. Não por questões morais , tampouco para ser “politicamente correto”. Os célebres versos dizem mais ou menos o seguinte: “A boca que hoje te beija, é a mesma que amanhã vai te escarrar”.
 Não se deve reduzir poesia a ressentimentos psicológicos. Mas há nesse poeta uma leitura da alma dos homens, revelando como ele supunha que os homens são.  O poeta traduziu em versos  as volubilidades do “outro”. É em relação ao outro que o poeta aconselha precaução e cautela , quando do outro recebemos amor e afeto. Ele quer dizer que o amor do outro facilmente se converte em ódio e desprezo, como se fosse uma lei da natureza humana. Todos que te odeiam, ontem te amaram, como se o amor fosse apenas uma razão para odiar.Há nessa visão amargura? Ou apenas ironia? Talvez, quem sabe, haja nesses versos  apenas aquele tipo de fingimento típico do poeta, como dizia Fernando Pessoa.
Mudando o foco do outro para nós mesmos, o Drº Espinosa, Clínico Geral,  diria: “Se tua boca hoje beija algo, jamais deixe que tua boca amanhã escarre naquilo que  ela beijou.” Ele prosseguiria: “ Não ceda a essa pequenez, pois ela nada mais é do que a imagem que o escravo, o homem triste, faz de sua liberdade”. Não há nenhuma liberdade em resolver escarrar naquilo que ontem se beijou. Se alguém crê que é livre escarrar hoje naquilo que ontem beijou, não apenas o escarro de hoje não é livre, como também não o era o beijo de ontem. Não havia amor naquele beijo.Não apenas ao outro não havia amor, como também não havia a si mesmo. Sem falar naqueles que apenas escarram e escarram, sempre achando motivos e razões para escarrar, pois na verdade não sabem beijar ( e essa incapacidade não raro encobre um ressentimento por nunca terem sido beijados).E há aqueles que apenas beijam na esperança de serem beijados ( estes são inclinados a sutis vinganças, quando não recebem de volta o beijo que negociaram, como se fosse um mercado de trocas, ou de compra e venda).
Clinicamente, em nome de uma prática não fascista e rancorosa, o Doutor Espinosa preceitua: não deixe de beijar o que você supõe ser merecedor do teu beijo. Beije, sem pedir nada em troca. Seja grato por ter a quem beijar, e não cobre ao beijado reconhecimentos pelo teu beijo. Não suponha que é ele que tem que te ser grato. Antes de tudo , porém, valorize teu beijo beijando tão somente o que merece ser beijado.
Aqui, beijo não é apenas o colar os lábios no rosto de alguém. É mais do que isso....Amizade, amor, admiração, elogio...são beijos. Maledicência, inimizade, intriga, zombaria...são escarros.Se por algum motivo você supõe que aquele que ontem você beijou  não merece mais que hoje você o beije, não transforme esse pensamento , ou imaginação, em ato, pois é vil todo pensamento que se expressa em escarro. Se ele não merece hoje seu beijo, não o beije mais. Porém não ceda à tentação de escarrar, pois se estará escarrando não no outro, mas no seu próprio beijo de ontem. Sua capacidade de beijar  perderá  a alegria vital e espontânea, de tal maneira que teu beijo será visto com desconfiança, e os sinceros fugirão do teu beijo. Se alguém que você beijou não merece mais seu beijo, esqueça esse alguém, afaste-se, e guarde sua energia, seu desejo, seu amor, sua imaginação, seu afeto...para achar  novamente quem seja digno do teu beijo. Mas se você imagina que ninguém merece teu beijo, vá se olhar no espelho, e veja se ainda não está no seu rosto restos do escarro que você recebeu de quem ontem te beijou. Não deixe que os outros vejam primeiro que você essa mancha.
Nunca beije quem jamais foi beijado apenas por pena. Cautela com os beijos que você recebe:não é por socos ou tapas, mas por beijos que os Judas se revelam e traem. Nem beije apenas para ter quem beijar. Evite contabilizar os beijos que recebe, e nem cobre pelos beijos dados. Se você for escarrado por quem ontem te beijou, limpe bem seu rosto, remova esse passado, não o deixe enrijecer, e seja firme na decisão de  nunca  buscar vingar-se beijando um outro apenas na esperança de amanhã poder escarrá-lo.

Não deixe na boca um escarro pronto como vingança, deixe um beijo que desarma o inimigo.É no exercício constante do beijar que alguém se torna digno de ser beijado, e não na mera esperança de ser beijado. 


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