sábado, 24 de setembro de 2016

"os comparamentos matam a comunhão" (Manoel de Barros)

Amar e odiar não se aplicam apenas a pessoas, tampouco estão circunscritos a relações amorosas no sentido estrito. Há os que amam cargos, postos, títulos, apetrechos tecnológicos. Em todo amor, bem como em todo ódio, há um desejo envolvido. Quanto mais perfeito o ser que amamos, mais indestrutível é o amor, nunca ele se converte em ódio. Ao contrário, amar seres imperfeitos conduz , com o tempo, ao ódio. “Perfeição”, em Espinosa, não nasce da comparação entre dois seres, mas da capacidade que tem um ser de realizar uma ação, de acordo com sua maneira de ser. Perfeição não é um “modelo ideal” ou um “dever ser”. Perfeição é o que  um ser realiza,  acentuando sua singularidade; logo, afirmando ou potencializando sua existência. Na paraolimpíada que acabamos de assistir, por exemplo, faremos uma ideia equivocada da perfeição se compararmos um nadador paraolímpico com um olímpico, tomando este último como modelo, dado que a ausência de um braço ou perna no primeiro somente é uma “falta” quando o comparamos com o nadador olímpico que os tenha. Porém, nenhuma comparação nos ensina a conhecer a singularidade de algo. Visto nele mesmo, em sua singularidade, o nadador paraolímpico não se explica por algo que lhe falta, mas por aquilo que ele é capaz de fazer. E neste fazer não há falta, há potência como expressão da vida.
O ser mais perfeito, diz Espinosa, é Deus. Se nos compararmos com ele nos imaginaremos  menos que o nada: angustiados, nos acharemos  menos que um verme, e nos odiaremos, nos desprezaremos, a nós e aos outros homens . Contudo,  tal ideia é confusa : ela nada compreende acerca do que somos, e menos ainda do que é Deus . Este não é perfeito pelo fato de sermos vermes ou menos que nada. Ele é perfeito pela sua capacidade de produzir, de existir. Deus é perfeito porque é incomparável, assim como é incomparável tudo o que é singular. Nós somos um grau dessa perfeição, uma modificação dessa perfeição: e mais perfeito seremos quanto mais afirmarmos o infinito, “horizontando-nos”. Manoel de Barros dizia: “Não sou afeito a comparamentos, o poema surge da comunhão”.  Ser incomparável nada tem a ver com ser o primeiro de uma escala que vai do primeiro lugar ao último. Ser incomparável é ser único, fazer-se único.

Não é se comparando com outras ondas, e muitos menos com o oceano, que uma onda afirma sua singularidade. Uma onda afirma sua singularidade compreendendo que tanto ela quanto o oceano são compostos de água, é a água que os une. E o fato de o oceano ser água de forma infinita, isto em nada diminui a onda singular que lhe é uma parte, uma expressão, pois o infinito não se compreende de forma quantitativa, dado que o infinito é aquilo que se furta a toda quantidade e medida . Não é comparando-se com outra que uma onda singular pode afirmar sua diferença e singularidade. Se uma onda possui 30 centímetros e outra 20 centímetros, poderemos vasculhar à vontade a onda de 20 centímetros que nunca acharemos nela, como realidade dada, os 10 centímetros  a mais que a de 30 centímetros tem. Nenhum ser é constituído por aquilo que lhe falta. Portanto, como poderia ser o que lhe falta o modelo para julgá-la imperfeita? Seria como querer diminuir a lâmpada que ilumina nossa casa pelo fato de ela não ser um sol. A luminosidade da lâmpada  e a do sol são graus da luz. Quando achamos a realidade da qual cada uma é um grau diferente, libertamo-nos da propensão de compará-las como se nada elas tivessem de comum. O nadador paraolímpico e o olímpico têm algo em comum: são atletas. Cada um expressa esse comum de acordo com o que pode. E não é apenas com braços e pernas que eles nadam, eles nadam também com a mente. 


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