quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Ruína...

cena do filme Língua de brincar, de Gabraz Sanna e Lúcia Castello Branco


- poema Ruína, de Manoel de Barros
Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro (O olho do monge estava perto de ser um canto). Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo


http://www.uniderpfm.com.br/fmb/noticia/uff-faz-homenagem-a-centenario-de-manoel-de-barros/662#.V-0oovArLIU

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Kierkegaard : a comunicação indireta


O filósofo Kierkegaard propunha como conversão à vida autêntica um método não dialético de ensino/aprendizado, no qual aquele que ensina também aprendia junto com aquele que se queria ensinar. Na relação tradicional, de comunicação direta, mas unilinear, alguém que supostamente sabe, o professor-mestre, ensina conteúdos a seu aluno. Nessa forma de relação dual, o conhecimento parte de um polo ativo, aquele que sabe, e se dirige a um polo passivo, aquele que deve aprender. Se o suposto aluno, por mera pretensão ou com conhecimento de causa, nega o que ensina o professor, com intenção de corrigi-lo ou superá-lo, instala-se um conflito dialético.
Kierkegaard questionava esse modelo submisso/conflituoso, exatamente pela sua dualidade. A autêntica comunicação nunca é dual, mas triádica. É preciso, diz ele, achar um terceiro que seja, pela sua vida, o que se quer que aquele que aprende seja. Ao invés do “faça isto que mando” ou “imite isso que sou”, sugerir um comportamento ou atitude mediante a inspiração de um terceiro. Desse modo ,aquele que ensina se habilita a falar porque, antes, viu, ouviu, afetou-se por algo dele diferente. Não é apenas um conteúdo abstrato que ele ensinará, ele ensinará uma experiência, um agenciamento.  Ensinará não exatamente verdades,  ensinará  perspectivas:  é para ter uma que aquele que aprende deverá , através daquele que ensina, alcançar sua própria visão daquilo que o educador viu, experimentou.
Assim, não apenas àquele que aprende será comunicado um ensinamento, será ensinado também àquele que ensina: ambos aprenderão. Esse terceiro não precisa ser um mestre, um iluminado, um douto. O próprio Kierkegaard evoca a criança como um terceiro, e assim também o fez Nietzsche, Deleuze, Heráclito e Manoel. Esse terceiro se torna um intercessor. Deleuze às vezes evoca o tordo, noutras a orquídea e a vespa. Esses também se tornam um terceiro que comunica indiretamente uma mensagem que não é feita apenas de palavra. Aquele que ensina se torna o meio e o agente dessa comunicação indireta, aprendida por aquele que ensina, para que assim a ensine aprendendo. É sempre um terceiro que ensina àquele que ensina, de tal modo que aquele que aprende melhor conhecerá aquele terceiro quanto menor for a distância entre aquele que ensina e o exemplo: aquele que ensina deve ser o exemplo do exemplo.

A autêntica comunicação é sempre indireta: comunicamo-nos com o outro através de um terceiro que também nos comunica através do que comunicamos ao outro. Aí está, talvez, o autêntico educar, educando-se. Uma conversa a três, nunca a dois. E nem sempre o terceiro que escolhemos como exemplo do que queremos ensinar sabe falar, contar, medir ou teorizar. Às vezes, ele sabe apenas singularmente cantar, como o livre tordo; ou ser inocente, brincativamente,como a criança.




domingo, 25 de setembro de 2016

o passarinho , o mau espírito e a carranca

A carranca na proa espanta apenas os maus espíritos.
Já os passarinhos inocentes brincam sobre seus dentes:
 entre eles até fazem ninho, brincando contentes.
                                                           
A carranca é madeira esculpida,
é forma apenas por fora. 
Por dentro continua madeira,
e de ser má se finge agora.       

O mau espírito é carranca por dentro,
sob  sedutoras aparências fica escondida.
Foge a maldade de si própria,
ao ver-se na  madeira refletida.





sábado, 24 de setembro de 2016

"os comparamentos matam a comunhão" (Manoel de Barros)

Amar e odiar não se aplicam apenas a pessoas, tampouco estão circunscritos a relações amorosas no sentido estrito. Há os que amam cargos, postos, títulos, apetrechos tecnológicos. Em todo amor, bem como em todo ódio, há um desejo envolvido. Quanto mais perfeito o ser que amamos, mais indestrutível é o amor, nunca ele se converte em ódio. Ao contrário, amar seres imperfeitos conduz , com o tempo, ao ódio. “Perfeição”, em Espinosa, não nasce da comparação entre dois seres, mas da capacidade que tem um ser de realizar uma ação, de acordo com sua maneira de ser. Perfeição não é um “modelo ideal” ou um “dever ser”. Perfeição é o que  um ser realiza,  acentuando sua singularidade; logo, afirmando ou potencializando sua existência. Na paraolimpíada que acabamos de assistir, por exemplo, faremos uma ideia equivocada da perfeição se compararmos um nadador paraolímpico com um olímpico, tomando este último como modelo, dado que a ausência de um braço ou perna no primeiro somente é uma “falta” quando o comparamos com o nadador olímpico que os tenha. Porém, nenhuma comparação nos ensina a conhecer a singularidade de algo. Visto nele mesmo, em sua singularidade, o nadador paraolímpico não se explica por algo que lhe falta, mas por aquilo que ele é capaz de fazer. E neste fazer não há falta, há potência como expressão da vida.
O ser mais perfeito, diz Espinosa, é Deus. Se nos compararmos com ele nos imaginaremos  menos que o nada: angustiados, nos acharemos  menos que um verme, e nos odiaremos, nos desprezaremos, a nós e aos outros homens . Contudo,  tal ideia é confusa : ela nada compreende acerca do que somos, e menos ainda do que é Deus . Este não é perfeito pelo fato de sermos vermes ou menos que nada. Ele é perfeito pela sua capacidade de produzir, de existir. Deus é perfeito porque é incomparável, assim como é incomparável tudo o que é singular. Nós somos um grau dessa perfeição, uma modificação dessa perfeição: e mais perfeito seremos quanto mais afirmarmos o infinito, “horizontando-nos”. Manoel de Barros dizia: “Não sou afeito a comparamentos, o poema surge da comunhão”.  Ser incomparável nada tem a ver com ser o primeiro de uma escala que vai do primeiro lugar ao último. Ser incomparável é ser único, fazer-se único.

Não é se comparando com outras ondas, e muitos menos com o oceano, que uma onda afirma sua singularidade. Uma onda afirma sua singularidade compreendendo que tanto ela quanto o oceano são compostos de água, é a água que os une. E o fato de o oceano ser água de forma infinita, isto em nada diminui a onda singular que lhe é uma parte, uma expressão, pois o infinito não se compreende de forma quantitativa, dado que o infinito é aquilo que se furta a toda quantidade e medida . Não é comparando-se com outra que uma onda singular pode afirmar sua diferença e singularidade. Se uma onda possui 30 centímetros e outra 20 centímetros, poderemos vasculhar à vontade a onda de 20 centímetros que nunca acharemos nela, como realidade dada, os 10 centímetros  a mais que a de 30 centímetros tem. Nenhum ser é constituído por aquilo que lhe falta. Portanto, como poderia ser o que lhe falta o modelo para julgá-la imperfeita? Seria como querer diminuir a lâmpada que ilumina nossa casa pelo fato de ela não ser um sol. A luminosidade da lâmpada  e a do sol são graus da luz. Quando achamos a realidade da qual cada uma é um grau diferente, libertamo-nos da propensão de compará-las como se nada elas tivessem de comum. O nadador paraolímpico e o olímpico têm algo em comum: são atletas. Cada um expressa esse comum de acordo com o que pode. E não é apenas com braços e pernas que eles nadam, eles nadam também com a mente. 


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

os aparelhos de captura

Segundo Deleuze e Guattari, o Contrato é um “aparelho de captura” que funda as sociedades modernas. O poder não apenas reprime, ele também captura. Ele captura desejos, pensamentos, vidas. Não é o modo de produção que define um tipo de poder, é um tipo de poder que transforma a produção em modo. E o que se produz primeiro é o que é capturado: ao capturar, o poder produz o que captura. O Contrato é o principal aparelho da captura do estado moderno.
Todavia, apesar do que comumente se pensa, antes de haver o contrato entre duas pessoas, há um Contrato entre o Eu e o eu no interior de uma mesma pessoa. Tal é a natureza do Contrato: um poder de subjetivação que cria um Sujeito. Mas este Sujeito nasce cindido, ele é dois: Transcendental e empírico. O primeiro, o Eu Transcendental, é o fiador moral , racional, da existência social, psicológica, jurídica, econômica, enfim, da existência histórica e sensível do homem empírico. É o Eu Transcendental que confere inteligibilidade ao que faz, sente e fala o homem empírico. Ninguém nunca viu esse Contrato, embora sejam visíveis os efeitos do seu rompimento. A mentira, a dissimulação, o engodo, a trapaça, a maledicência, a imoralidade, a corrupção e tudo o que brota dela, são os efeitos, entre outros, da quebra daquele Contrato. Quem o pode transgredir é sempre o eu empírico, quando este torna cego o seu desejo. Mas sem o Contrato que o torna uma Pessoa Moral, Política e  Econômica , o eu empírico torna-se o perverso, o subversivo, o marginal. Se o Contrato já não pode capturá-lo pela subjetivação, o poder o tornará o objeto de práticas objetivas de sujeição:  as prisões, os hospitais psiquiátricos, as excomunhões de toda ordem.
Em Espinosa, e aqui está um dos aspectos do seu anticontratualismo, o Eu e o eu são idéias da imaginação, eles nascem das afecções corpóreas, ao passo que a parte eterna da alma tem com o Absolutamente Infinito, a Natureza, uma relação que não é de contrato, de subjetivação, mas de produção , de objetivação de si através de uma prática de acordo com o pensamento que a acompanha. Mais do que nos tornar sujeitos, a prática em Espinosa tem por causa eficiente um pensar que nos faz agentes. A palavra “agenciamento” nasce de “agente”. O agente é aquele que age. O agente  é o sujeito de um movimento, sobretudo quando este movimento é o pensar. O pensar é um movimento que nos torna agentes, para assim vencer tudo aquilo que nos separa de nossa potência de agir. Enquanto agentes, devimos sujeitos. Mas só nos tornamos sujeitos agenciados. Pode parecer paradoxal, mas não se faz um sujeito sem ao menos dois. Não dois sujeitos, mas dois  processos .Só nos tornamos sujeitos na imanência de um agenciamento. Para falar como Espinosa, o agenciamento é um encontro, um bom encontro.
É sempre como parte de um agente coletivo que nos tornamos agentes. Um sujeito coletivo é um agenciamento cujas partes são agentes. O Eu e o eu não são agentes, eles  são pacientes  de afecções que os produzem como sujeitos isolados , à parte de todo coletivo, de toda multiplicidade.Espinosa afirma que existe uma comunidade de essências. Nela, cada essência está conectada com todas de forma necessária. Estar conectada não significa estar composta: a composição nasce de um encontro, ao passo que a conexão é o que faz nascer cada coisa. A existência do homem se acha afastada de sua essência. É por isso que a existência do homem possui outras formas de comunidade distintas daquela que constitui as essências. Mas não há como o homem aproximar sua existência de sua essência sem que ele viva sua existência de acordo com a idéia de comunidade. O estado de natureza, por exemplo, é ausência de comunidade exatamente porque a existência se encontra separada da essência. Comunidade não significa homogeneidade. Ao contrário, toda comunidade é complexa. É no plano da existência que ocorre a composição: esta liga não apenas uma existência à outra, ela liga também cada existência à sua essência mediante a essência comum que conhece ter com a outra.A composição tem um termo contrário: a decomposição, a tristeza; mas não há contrário à conexão, uma vez que isso corresponderia a um viver à parte da realidade, como um todo à parte. Quando buscamos composições, bons encontro, produzimos o necessário de acordo com a conexão necessária, a multiplicidade,  que nos produziu.
 É preciso escapar de duas idéias inadequadas: a primeira delas tem origem em Descartes, e crê que só nos tornamos sujeitos quando nos identificamos com um   cogito  apartado paranoicamente  do mundo; a outra ideia , imagem invertida da primeira,  ora com tons de  cinismo , ora de ceticismo, municia os diversos oportunismos que,  pregando o  ocaso  do pensamento, anunciam   o fim da história e o  triunfo do Mercado Absoluto. Segundo tal oportunismo cínico, somente o Mercado seria verdadeiramente o Sujeito.






domingo, 18 de setembro de 2016

Luiz Alfredo Garcia-Roza: 80 anos...

Hoje me veio à boca uma palavra que há muito eu não dizia. Andam me faltando as oportunidades para dizê-la, embora também fossem raras as oportunidades para dizê-la na época em que eu , como aluno, a dizia - pois a disse a poucos, pouquíssimos. Eu mesmo, não sei se merecendo, já fui designado recentemente por essa palavra, pois hoje sou professor. Embora seja honroso ser por esse nome chamado, nada se iguala a poder ter alguém a quem chamar por esse nome, que será sempre o professor do professor, fazendo-nos não esquecer que o aprender precede todo ensinar.
Hoje, como dizia, eu caminhava pela rua quando vi, vindo na minha direção, um senhor de cabelos muito brancos, como neve a adornar altos picos. Aliás, creio que apenas em homens elevados, e que auxiliam os outros a se elevarem, deveria nascer tal cobertura branca. Não obstante sua vida muito vivida, tal senhor se mostrava altivo, e seu olhar parecia estar lá naquele lugar que somente o espírito desperto alcança, e onde sempre há coisas novas para ver , descobrir e colher. Quando ele estava bem perto, pude enfim dirigir-me a ele, dizendo a tal palavra que há muito eu não dizia: “Mestre!”.  Esta palavra não estava guardada em meu cérebro, ela estava em meu coração. E subiu até minha boca como se tivesse vida própria, renascendo em meu dizer quando vi fora de mim quem merece ser por ela chamado.Quando a dizemos a quem a merece, nada há de submissão em seu sentido. Ao contrário, merece esse nome quem ajuda a despertar no olho de cada um o olhar que lhe é próprio, olhar este que nos ajuda a ver para além de nós mesmos.
Então, o Mestre me viu, reconheceu-me e sorriu. Estendeu-me a mão, encontrando a minha que já estava em sua direção. Trocamos poucas palavras. Mas nem precisavam muitas. Ele se foi, e segui meu caminho tendo agora a companhia de suas lições que ainda estavam em mim como se eu as tivesse escutado ontem, embora eu as tenha ouvido há mais de vinte anos, pois quanto mais o tempo passa mais se aviva em nós o que tem valor e mereceu ser aprendido .
Pensei comigo: “será que ele sabe o quanto suas aulas foram importantes para mim?”.
O nome do Mestre: Luiz Alfredo Garcia-Roza.






sexta-feira, 16 de setembro de 2016

terceira consulta ao Drº Espinosa


Talvez devêssemos viver de tal modo que , por nossas palavras e práticas, não fôssemos um exemplo , um triste exemplo, para os versos de Augusto dos Anjos,  dando-lhes razão. Não por questões morais , tampouco para ser “politicamente correto”. Os célebres versos dizem mais ou menos o seguinte: “A boca que hoje te beija, é a mesma que amanhã vai te escarrar”.
 Não se deve reduzir poesia a ressentimentos psicológicos. Mas há nesse poeta uma leitura da alma dos homens, revelando como ele supunha que os homens são.  O poeta traduziu em versos  as volubilidades do “outro”. É em relação ao outro que o poeta aconselha precaução e cautela , quando do outro recebemos amor e afeto. Ele quer dizer que o amor do outro facilmente se converte em ódio e desprezo, como se fosse uma lei da natureza humana. Todos que te odeiam, ontem te amaram, como se o amor fosse apenas uma razão para odiar.Há nessa visão amargura? Ou apenas ironia? Talvez, quem sabe, haja nesses versos  apenas aquele tipo de fingimento típico do poeta, como dizia Fernando Pessoa.
Mudando o foco do outro para nós mesmos, o Drº Espinosa, Clínico Geral,  diria: “Se tua boca hoje beija algo, jamais deixe que tua boca amanhã escarre naquilo que  ela beijou.” Ele prosseguiria: “ Não ceda a essa pequenez, pois ela nada mais é do que a imagem que o escravo, o homem triste, faz de sua liberdade”. Não há nenhuma liberdade em resolver escarrar naquilo que ontem se beijou. Se alguém crê que é livre escarrar hoje naquilo que ontem beijou, não apenas o escarro de hoje não é livre, como também não o era o beijo de ontem. Não havia amor naquele beijo.Não apenas ao outro não havia amor, como também não havia a si mesmo. Sem falar naqueles que apenas escarram e escarram, sempre achando motivos e razões para escarrar, pois na verdade não sabem beijar ( e essa incapacidade não raro encobre um ressentimento por nunca terem sido beijados).E há aqueles que apenas beijam na esperança de serem beijados ( estes são inclinados a sutis vinganças, quando não recebem de volta o beijo que negociaram, como se fosse um mercado de trocas, ou de compra e venda).
Clinicamente, em nome de uma prática não fascista e rancorosa, o Doutor Espinosa preceitua: não deixe de beijar o que você supõe ser merecedor do teu beijo. Beije, sem pedir nada em troca. Seja grato por ter a quem beijar, e não cobre ao beijado reconhecimentos pelo teu beijo. Não suponha que é ele que tem que te ser grato. Antes de tudo , porém, valorize teu beijo beijando tão somente o que merece ser beijado.
Aqui, beijo não é apenas o colar os lábios no rosto de alguém. É mais do que isso....Amizade, amor, admiração, elogio...são beijos. Maledicência, inimizade, intriga, zombaria...são escarros.Se por algum motivo você supõe que aquele que ontem você beijou  não merece mais que hoje você o beije, não transforme esse pensamento , ou imaginação, em ato, pois é vil todo pensamento que se expressa em escarro. Se ele não merece hoje seu beijo, não o beije mais. Porém não ceda à tentação de escarrar, pois se estará escarrando não no outro, mas no seu próprio beijo de ontem. Sua capacidade de beijar  perderá  a alegria vital e espontânea, de tal maneira que teu beijo será visto com desconfiança, e os sinceros fugirão do teu beijo. Se alguém que você beijou não merece mais seu beijo, esqueça esse alguém, afaste-se, e guarde sua energia, seu desejo, seu amor, sua imaginação, seu afeto...para achar  novamente quem seja digno do teu beijo. Mas se você imagina que ninguém merece teu beijo, vá se olhar no espelho, e veja se ainda não está no seu rosto restos do escarro que você recebeu de quem ontem te beijou. Não deixe que os outros vejam primeiro que você essa mancha.
Nunca beije quem jamais foi beijado apenas por pena. Cautela com os beijos que você recebe:não é por socos ou tapas, mas por beijos que os Judas se revelam e traem. Nem beije apenas para ter quem beijar. Evite contabilizar os beijos que recebe, e nem cobre pelos beijos dados. Se você for escarrado por quem ontem te beijou, limpe bem seu rosto, remova esse passado, não o deixe enrijecer, e seja firme na decisão de  nunca  buscar vingar-se beijando um outro apenas na esperança de amanhã poder escarrá-lo.

Não deixe na boca um escarro pronto como vingança, deixe um beijo que desarma o inimigo.É no exercício constante do beijar que alguém se torna digno de ser beijado, e não na mera esperança de ser beijado. 


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Na ponta do meu lápis...




"Na ponta do meu lápis há apenas nascimento": evento em homenagem ao centenário do poeta Manoel de Barros acontecido no Centro de Artes da Uff. Com o cineasta Gabraz Sanna ( diretor de Língua de brincar),  Luiz Henrique Barbosa (pesquisador da obra do poeta ),  Mário Chagas (poeta e museólogo), Tiago Barros ( neto do poeta) e Douglas Queiroz ( da Fundação Manoel de Barros).




quarta-feira, 7 de setembro de 2016

a travessia e o salto

Eu tinha por volta de seis ou sete anos, não mais que isso. Fui com minha família a Sepetiba em passeio dominical, coisa simples , bem simples. De repente, íamos atravessar uma larga rua. Na verdade, olhando hoje para trás não sei se a rua era de fato larga ou se assim me parecia, tendo em vista a criança que eu era. Lembro-me de estar de mãos dadas com meu pai. Ao nosso lado, minha mãe segurava as mãos de outros dois irmãos menores. Olhei para a rua com olhos que meus pais não sabiam que eu tinha. Nem eu mesmo sabia que  tinha tais olhos, pois somente sabia da existência deles quando eles surgiam e me tomavam e impunham que eu fizesse o que eles vislumbravam, "transviam".  Com esses olhos de rebeldia, de insubmissão, olhei para o perigo diante de mim, e , sem medo, vislumbrei sua travessia. Acho que foi a primeira vez na vida que compreendi o que é ter uma ideia. Esta não nasce de poses ou planejamentos bem calculados. Ter uma ideia não é só imaginá-la, mas pô-la em prática, torná-la real, mesmo sob todos os riscos. Uma ideia faz nascer olhos que vislumbram o que ela quer. Então, vi a outra margem da rua como a me desafiar. Nasceu em mim um desejo de independência, um desejo de enfrentar o perigo do qual a mão de meu pai queria me proteger.
Sem hesitar, larguei a mão dele e iniciei minha travessia, meu único apoio eram minhas pernas. Algo em mim talvez quisesse mostrar ao mundo que eu já podia enfrentar uma travessia. A mão do pai é a mão da lei, da autoridade, do interdito. É a mão que oferece a segurança, mas ao preço da obediência. Ousei largar dela e fazer a travessia. Fui rápido e firme; estava um pouco nervoso, mas feliz; não me pude conter: eu sorria. Quem é livre se alegra.Deixei atrás de mim a família, a segurança e, livre, encontrei-me pela primeira vez no meio de uma rua, a rua que eu atravessava com minhas próprias pernas. Queria alcançar a outra margem, aquele horizonte próximo.
Porém, subitamente surgiu um carro não sei de onde. Era um carro todo preto, pesado, hostil, sem rosto; ele vinha para cima de mim como se eu fosse um intruso àquele território. Ele parecia querer me  punir pela transgressão que eu ousara.A liberdade tem seus obstáculos, seus riscos. Mas eu já estava no meio de minha linha de fuga. Não há linha de fuga sem  coragem e esforço, como dizia Espinosa. A linha de fuga mais necessária e libertária não é aquela na qual se foge para um lugar ermo ou isolado; a linha de fuga mais singularizante é aquela que se faz no meio dos trajetos costumeiros, quebrando a lógica acostumada dos códigos e roteiros prévios. Porém, primeiro que tudo, é preciso largar a mão daquilo que , mesmo querendo sua proteção, impede que você , com suas próprias pernas, faça a travessia que lhe conduza não a pódios ou centros, mas a margens.
O carro sisudo  vinha para cima de mim, como um abutre. Parecia que eu não tinha a menor chance de escapar , era um monstro metálico contra um menino.Foi então que dei um salto como nunca dera antes. Saltei mais do que metros, saltei mais do que um pedaço de rua, hoje sei. Creio que somente Espinosa poderia entender aquele salto que nem eu mesmo sabia que podia, pois o filósofo dizia : “Ninguém sabe o que pode o corpo”.
Foi minha alma arteira que fez minha mão abandonar a segurança do já conhecido; mas foi meu corpo que , saltando, pôs minha liberdade a salvo, mais viva que nunca,  em um chão novo sob mim, fazendo-me pousar na outra margem , a mesma que me desafiou a alcançá-la com minhas próprias forças.Saltei, alcancei a outra margem: a morte passou perto, fria e apressada...
Como pousar em um chão novo precedido pela ousadia? Como eu mesmo ser o apoio do ato que ia além de mim? Minhas pernas não sabiam, tampouco qualquer outra coisa em mim sabia. Eu não tinha experiência de tais voos, de tal "voar fora da asa", de tal modo que cai do outro lado sem forças suficientes nas pernas para sustentar a altura em que fui: cai no chão e rolei...
Eu ainda estava no chão quando minha mãe e meu pai se acercaram, juntamente com algumas pessoas que viram a cena. Minha mãe não estava nada contente com minha atitude, mas não brigou comigo, tampouco meu pai. No rosto deles vi apenas uma expressão que nunca vira antes, um misto de surpresa e de orgulho, mas acompanhada de um traço de amorosa preocupação com aquela atitude que me punha longe das mãos deles e de toda segurança estável e sensata, e perto da margem que somente se alcança saltando o salto que desafia nossa capacidade de saltar, pondo-a à prova.





Marc Chagall : Au-dessus de la ville, 1924.


a ideia de democracia em espinosa (2)

A paixão sem a razão é cega;
a razão sem a paixão é inativa.
(...)
É aos escravos, e não aos homens livres,
que se dá um prêmio para os recompensar 
por se terem comportado bem.
Espinosa

O pensamento político de Espinosa tem um ponto de apoio fundamental: a ideia de um poder instituinte originário. Somente o poder instituinte originário é, de fato, poder ontológica e democraticamente  afirmado. O poder instituinte antecede o poder constituinte: aquele institui, primeiramente, a si mesmo como fonte de todo poder instituído. O poder instituinte é sempre afirmação, jamais negação: ao afirmar-se, ele já faz desparecer todo instituído que o nega, pois nada tem mais força do que o poder instituinte originário, quando este se une a si mesmo. Afirmando-se, ele também se torna constituinte, para assim constituir novas formas de positividade jurídica e social .Todos os outros poderes ( do juiz, do policial, do deputado, do chefe do executivo, etc.) são poderes derivados, isto é, eles não existem por si: eles  somente podem ser exercidos quando não se colocam contra ou ameaçam o poder instituinte originário. Mesmo a lei é um poder derivado. Juízes servem a um poder derivado ( o poder da lex), parlamentares recebem um poder que não lhes pertence e que, por isso, pode lhes ser tirado pelo poder instituinte originário, e tão somente por este ( ou em casos previstos em lei ou regimento).
O poder instituinte é “originário” não porque esteja no passado distante. Na verdade, ele não está no passado histórico ou existe enquanto promessa de um futuro igualmente histórico.  O poder instituinte cria história, desfaz outras, em razão de um tempo que é o das  rupturas inovadoras. Ele é originário em razão de cada um ser parte dele, porém não enquanto cada um é professor, aluno, filiado a partidos ou sindicatos, igrejas ou associações. Ele é originário porque antecede a todas essas determinações sociais instituídas. E se alguém é, o tempo todo, apenas o que instituíram  que ele deveria ser, jamais este compreenderá ou fará parte do poder instituinte originário, ou compreenderá a sua força produtora. O poder instituinte originário  torna a todos artistas, mais do que teóricos ou juristas. Ninguém é, por natureza, médico, policial, deputado, presidente, etc. Tais designações são instituídas socialmente. É  o poder instituinte que institui a sociedade onde passarão a existir designações e práticas instituídas.   Tudo é instituído, menos o poder instituinte. Tudo é produzido, e assim afirma o poder instituinte do qual nasce.Nenhum outro poder  antecede o poder instituinte originário, assim como nenhuma vida pode anteceder a vida , a não ser sendo mais viva.  Manoel de Barros diz que tudo o que vem primeiro “tem primazia”. O poder instituinte originário é  o poder da primazia, e não dos privilégios.
Para a maioria dos pensadores políticos modernos que inspiraram  tanto  liberais  quanto  socialistas , o poder político nasce com a renúncia ao direito natural. Mas em Espinosa o direito natural  é irrenunciável: ele é o direito que precede o chamado direito do Estado , suas leis e sistemas de representação. O povo que renuncia ao poder de instituir torna-se servo consentido da potesta que o enfraquece e entristece.
O direito natural , em Espinosa, tem outro nome: ética. “Direito natural” não significa a existência meramente biológica ou  material. À época em que Espinosa escreveu e viveu, “natureza” era entendida como sinônimo de essência. E a essência de algo é o princípio que a faz ser, existir, agir. Assim compreendida, a natureza implica o corpo e a mente. Outra distinção importante feita por Espinosa é aquela que envolve duas noções: potentia e potesta. Esta última palavra pode ser traduzida por “poder”. Contudo, perde-se completamente o sentido da obra política de Espinosa quando também se traduz potentia por poder.Em latim, potentia também tem por sinônimo jus,  ao passo que lei é a tradução de lex. O direito natural não é lei que obriga isto ou aquilo. O direito natural também não é direito à alguma coisa. O direito natural é a própria existência que, por existir, já é direito a si mesma. Ninguém existe por obrigação, mas por uma espécie de necessidade que não se opõe à liberdade. É a lei instituída pelos homens que determina o que é justo ou injusto. Existir, porém , não pode ser algo justo. Se o fosse, haveria a possibilidade de um existir injusto. O existir é. Ele não é justo ou injusto, embora isso não signifique que existir seja indiferente ao justo e ao injusto que as leis determinam. Pois o injusto é o que diminui o direito natural, ou existência, de cada um ; o injusto é o que ameaça a potência de cada um.
A ética não pertence ao campo dos valores dicotômicos, como bem e mal, justo e injusto, lícito e ilícito. A ética é o campo da existência. Uma existência não é justa ou injusta, ela é potente ou impotente. Ser impotente significa: ser menos do que se pode ser.
 Segundo Espinosa, o homem deseja mais mandar do que obedecer. Por exemplo, a criança cresce querendo mandar, e somente o aprendizado, e não o mero castigo,  a ensina a obedecer. Mas ela não é má por querer mandar , tampouco há mais virtude em obedecer do que em mandar. O viciado obedece ao vício, preterindo o mandar em si.O falastrão obedece sua língua, mas quem sabe  guardar silêncio manda em sua boca. O homem livre não é aquele que manda nos outros, o homem livre é , antes, aquele que manda em si mesmo, que comanda a si mesmo, que tem plena posse de si. Mandar é exercer, agir; obedecer é ser passivo. Todos os homens aspiram a tal poder de comandar, embora confundam como conquistá-lo e exercê-lo, pois imaginam que o poder sobre si virá mediante o poder sobre os outros.
O que vale para um homem vale igualmente para um partido: um partido que não comanda a si mesmo quererá poder para mandar nos outros, subjugando-os. E estes outros partidos também acharão que ter poder é mandar nos outros através do Estado conquistado. Em Espinosa, a lei é um comando, nunca um comandado. Ela é um comando porque expressa um poder originário que a instituiu para ser expressão dele. Se a lei  for apenas comando de alguns, destes ela será uma comandada: ela perderá sua atividade e será, ela própria, um padecer de um poder que se colocará acima dela. Além disso, ela será vista apenas como ordem por aqueles que não a comandam. Contudo, se tal acontece, o problema não está na lei em si, mas naqueles que aceitam , sem resistência, serem comandados, submetidos àquilo que os enfraquece.
Espinosa acredita que o poder social nasceu para que os homens mandem em si mesmos sem que esse mando seja opressão ou repressão de uns poucos sobre muitos ou de muitos sobre poucos. Assim, o único poder que possibilita aos homens mandarem em si mesmos, sem que apenas alguns mandem e outros obedeçam, esse único poder é o da lei, da lex. Somente através da lei os homens mandam em si mesmos e , mandando, são livres, de tal maneira que desobedecer a lei é desobedecer a si mesmo através de uma burla feita a todos. Mas a lei, em Espinosa, não é todo o direito, ela é apenas instrumento do Direito, pois o único direito é o natural.
 A vida social nasce quando delegamos ao Estado o poder de agir por nós. Mas apenas certas coisas podem ser delegadas,  outras são indelegáveis. Nós delegamos ao Estado o poder de agir acerca de tudo aquilo que envolve a sobrevivência do corpo. Todavia, é indelegável o que concerne à existência do espírito, embora as duas existências, a do corpo e a do espírito, estejam interligadas. Delegar não é renunciar.  
As pessoas que recebem nosso poder de agir têm, por isso mesmo, o poder social. Contudo, elas também existem e , por existirem, não renunciam ao direito natural, à potência. Mas quando tais pessoas se valem do poder que receberam e, burlando as regras, tiram o máximo proveito para si mesmas, tais pessoas se colocam em uma obscura região que já não é mais a do direito natural, mas que ainda não é o social.  Essa região obscura, nem jus e nem lex, é o estado de natureza: este não é natural (potência) ou social ( potesta), ele é pré-social. Nele imperam as paixões tristes.Ele é um querer mandar na própria lei, ou um querer dobrá-la usando a força, seja a força física ou a força da moeda corrompedora.
Por natureza, a criança quer mandar, e nisto não há mal, pois não há mal na natureza. Educada, ela aprende a obedecer a lei , compreendendo esta última como comando dela mesma, de sua natureza. Mas o que caracteriza o estado de natureza é que, nele, um indivíduo sozinho , ou um grupo de indivíduos, imagina que pode  desfazer o poder da lei sem evocar a potência da ética. Somente o povo pode,   afirmando a si mesmo,  desfazer o comando da lei, quando esta já não é mais o seu próprio comado democrático, plural. Quando um ou alguns querem fugir da lei, tal ação configura crime. Mas quando o povo desfaz a lex em nome do seu direito, tal ato é uma afirmação da liberdade. Por esse motivo, a causa da corrupção e outras mazelas não é a natureza, tampouco a sociedade . A causa dessas tristezas e ódios é o furtar-se à natureza , bem como o querer comandar sem ser por intermédio das regras .  O direito natural é o campo da potência, a esfera social é o lugar das regras, já o pré-social é a obscura zona da qual alguns se servem para negar ética e regras, jus e lex.Mas quanto mais alguém deseja esconder-se nessa zona, mas este “esconder-se” aparece.
Assim como o direito natural é insuprimível,  a não ser destruindo a vida de alguém ou cometendo o genocídio de um povo,  também não se pode instituir  um campo social imune à possibilidade de alguns viverem no estado de natureza. E é para isso que existe a lex: para a defesa da pluralidade democrática. Ditaduras e fascismos criam apenas indivíduos dóceis ou dissimulados, pois toda ditadura e fascismo crê que o homem é um ser cuja natureza é má. Caberia a um Estado forte corrigir a natureza torta do homem, e extirpar os “incorrigíveis”.
Para Espinosa, a natureza humana não é torta ou reta: ela é. Além disso, a questão fundamental não é defender os contratos, mas sim garantir que eles possam ser suspensos, caso o direito natural de todos corra risco. O direito natural corre risco quando um grupo pretende destruir o instituído pondo-se no lugar da pluralidade instituinte.Apenas um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, não têm poder para suspender o instituído pela multiplicidade instituinte. Somente  a potência instituinte tem esse poder. Por outro lado, não é por um contrato que a sociedade nasce, ela nasce por uma delegação de um comando, e não pela obrigação de obedecer a contratos.
Os contratos jurídicos são precedidos por um contrato social, assim professam os filósofos políticos clássicos. Ora, todo contrato envolve, no mínimo, duas partes, separando-as. Espinosa recusa esse modelo contratualista como fundador do liame social. Pois se a sociedade nascesse de um contrato,  de um lado se encontraria  o povo enquanto multiplicidade heterogênea, e do outro estaria o Estado (o "Um"). Mas como poderia haver contrato entre o povo e aquilo que nasce por delegação dele? Não pode o mais potente se submeter ao menos potente. Mais potente, em Espinosa, é quem é mais direito. 
Um partido, um juiz, um presidente, um deputado, etc.  recebem um poder que somente pode existir em razão da potência ou direito natural do povo ( embora a palavra "povo" não traduza muito bem a multiplicidade instituinte que constitui a multitudo). Quando  o direito instituído perde sua relação com o direito natural ( que é, inclusive, o único direito de fato ), Espinosa afirma que é preciso, nesse caso, fazer retornar  o poder àqueles que , ontologicamente, o possuem : o povo. O povo não é uma classe, o povo é uma multiplicidade heterogênea. Aqueles que mais ambicionam existir como um todo à parte, seja sob a capa de um partido ou de uma instituição do Estado, estes sempre temem a multiplicidade, e contra ela sempre acham justificativas para evitar que o poder volte à potência que o gerou.
Em certas situações onde dois ou mais grupos querem existir à parte, pondo em risco o existir plural de todos, nessas situações, preconiza Espinosa, é preciso desfazer a potesta instituída. Porém não a serviço de um grupo ou outro, mas a serviço do povo, para que novamente se ordene, planeje, proponha-se, através de ideias , e não da força, outras maneiras de instituir nova potesta por intermédio de meios legais, incluindo eleições gerais. Pois o poder nunca é posse ou um fim em si, ele é produção de meios que favoreçam a existência. Não há direito natural que possa existir sem uma sociedade, embora toda sociedade exista em razão de um direito natural que não deixa com que ela se feche ou se autodestrua em virtude de bandidos e corruptos.
Quando uma sociedade perde o vínculo com a ética, isto é, com o direito natural enquanto afirmação da heterogeneidade, quando isso acontece grupos em confronto arvorarão para si uma razão exclusiva, em guerra civil com a razão do outro grupo .Mas a razão nunca briga consigo mesma, apenas paixões brigam entre si, sobretudo as paixões tristes do ódio e da vingança  E mais violento será o confronto quanto mais todas as cores possíveis forem reduzidas ao preto e branco, ao sim e não, ao pró ou contra.

Para Espinosa, existe uma alegria passional que tem por contrário um ódio igualmente passional. Contudo, existe ainda uma alegria ativa que não tem contrário, pois é afirmação da própria vida múltipla. Do mesmo modo, existe uma democracia representativa que tem por contrário tiranias e fascismos de toda ordem. Mas existe ainda uma democracia originária, voz e expressão da multiplicidade ontologicamente existente. Essa democracia originária não é representativa: ela não pode separar-se de si mesma para, em outro plano distante de si, colocar-se como representante de si mesma. Essa democracia originária não é representativa, ela é produtiva: ela produz , sobretudo, os meios que impedem que ela seja negada, dividida em duas partes ou enfraquecida. A democracia originária produz tão somente uma coisa: democracia, pois a democracia é, ao mesmo tempo,  produtora e  produto dela mesma.