sábado, 16 de julho de 2016

os pescadores


Escrever é o modo de quem tem a palavra como isca:
a palavra pescando o que não é palavra.
Clarice Lispector

Admiro o pescador que busca seu peixe muitas vezes pondo-se em risco, lançando-se no oceano.O autêntico pescador sabe onde achar os peixes porque ele forma primeiro uma ideia do oceano onde os peixes habitam. Como tudo o que existe, os peixes não são indivíduos que existem em separado, eles existem fazendo parte do oceano, que é seu mundo.Somente compreendendo o mundo onde um ser vive é que podemos entender sua maneira de ser.
Admiro mais ainda o pescador que pesca com anzol do que com rede. Quem pesca com rede quer quantidades, números: pesca com conceitos meramente teóricos. Mas quem pesca com anzol deseja o peixe raro, único,singular, que é, por isso mesmo, o mais difícil de se deixar fisgar. Esse peixe raro exige paciência e perseverança. O anzol que atrai tal peixe tem a forma de um ponto de interrogação (que tem a aparência de estar de cabeça para baixo, porque na verdade está mergulhando...).




 Somente a interrogação afeta  o que é livre e não anda em cardumes. É a interrogação lançada no infinito oceano, somente ela, que pode atrair o peixe arisco, livre, indomável. A interrogação tem na ponta, como isca, uma ideia singular. Somente uma ideia singular  pode pescar o que é único.Toda ideia singular é uma interrogação acerca do que é ser único. E essa interrogação somente pode ser lançada ao mundo, ao oceano, ao infinito, à Vida.E a resposta sobre o que é ser único somente o que é único pode dar, com sua existência única.
O pescador busca a ideia viva, retirada lá mesmo da imanência onde a vida mora. O peixeiro vende apenas a ideia morta  transformada em palavra que , para atrair e convencer, precisa da retórica, da tecnologia, de apetrechos midiáticos e outros dispositivos que, não raro, são apenas artifícios para  maquiar o cadáver.  O filósofo-poeta-pescador quer a ideia viva. O peixeiro-comerciante-publicitário-de-si-mesmo vende apenas a ideia morta, teórica, acadêmica. Quando o peixeiro-teórico-acadêmico se aventura a ser pescador, ele o faz  indo buscar uma ideia genérica que existe apenas  em livros rasos. Para ser pescador-pensador  é preciso um instrumento intuitivo, ou seja, capacidade de ver o que se pensa sem necessitar da mediação de teorias. Já o peixeiro necessita de dotes apenas palavrescos. 
Porém, não existiriam peixeiros se não existissem pescadores, pois estes vivem primeiro , sem prévio modelo, o que aqueles reproduzirão depois. Não haveria filosofia e poesia se não houvesse poeta e filósofo , uma vez que estes vivem para elas, ao passo que o professor e o literato apenas vivem delas. 
O  educador-pescador pesca seus peixes em razão da fome dos homens, e com generosidade lhes oferta o alimento.O peixeiro-pragmático , sempre de olho no mercado, se vale  dos peixes como meio para obter dinheiro mesmo  (e suas variantes: fama, poder, currículo).

Foram desses pescadores que me alimentei dos peixes mais raros, encontráveis apenas por aqueles que sabem transformar um livro ou uma sala de aula em  oceano : Lucrécio, Plotino, Espinosa, Nietzsche, Deleuze, Herman Melville, Pessoa, Foucault, Manoel de Barros, Clarice e Cláudio Ulpiano.






( poema-concreto de Haroldo de Campos)



                                                         
                                                         ( Van Gogh , O semeador)

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