Quem o mais profundo pensa,
ama o mais vivo.
Hörderlin
(trechos do livro sobre Manoel)
Em um período não muito distante daquele em que Platão
escreveu, evocava-se Dioniso como o deus cuja natureza melhor expressaria a
essência da arte.Esse fato está inscrito no
nome do deus*: Di-oniso, aquele que nasceu duas vezes. Isto porque este
deus foi gerado a partir da união de Zeus com uma simples mortal. Reside em
Dioniso, então, a convivência de dois mundos, o humano e o divino, que não se misturam, mas que nele fazem um.
Ainda criança, Dioniso fora vítima de seus irmãos da parte divina, que em fúria
o despedaçaram. Ao ver tal cena, Zeus se perguntou em qual daquelas partes o pequeno Dioniso estava
inteiro, pois esta parte seria ,
sem dúvida, divina. Zeus descobriu então
que era no coração que Dioniso se encontrava. Foi então do coração, a parte que
contém o todo, que Zeus fez nascer novamente o deus. Mas esse nascimento
através do coração foi, em verdade, um renascimento. O coração expressa o
afeto, a sensibilidade ― que é, como diz
o poeta, o “entendimento do corpo”.
A relação de Dioniso com o teatro e a arte em geral se deve
ao fato de que, tal como o Deus, a arte também faz a realidade nascer
novamente. Através da arte, a realidade renasce. A arte faz a realidade
renascer, imitando-a. Contudo, ao imitá-la, a arte reinventa a própria realidade
que imita: a retira do tempo e do espaço, e desse modo a eterniza. Enquanto a
reprodução da boa cópia anula a diferença em nome da semelhança, na arte a
semelhança é produzida a partir de uma diferença primeira.*** ***
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o
desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. Este nasce pela
impossibilidade que a razão encontra de pôr o desejo na direção dos valores
morais que ela visa atingir. A disciplina moral é a rédea da razão, às vezes
também seu chicote, mas o desejo não se dobra, resiste, e segue
atraído pelas aparências do mundo sensível .
Seguir o desejo é perder-se,
desorientar-se, maldizia Platão. Mas a alma
não pode prescindir desse rebelde cavalo preto, uma vez que é dele que
provém a maior parte da energia que a
faz mover-se.
Curiosamente, uma outra imagem da carruagem inspirou
Nietzsche. Trata-se da Carruagem de Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito
que cerca este Deus, Dioniso se locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o
cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram
temíveis feras transportando o deus e
mostrando o grande poder de Dioniso para guiar a natureza. A arte não nega ou
reprime a natureza ( como o faz o
cocheiro de Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é
estrangeira à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e
jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se
conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa
ir.
(O triunfo de Dioniso - o triunfo sobre as feras como expressão de uma vitória sobre si mesmo)
Dioniso transforma a
agressividade destrutiva e mortífera das pulsões-panteras em potência criativa
afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou guia, cocheiro,
domador: somente se pode segui-lo com a condição de metamorfosear-se, conjugando
disciplina e inventividade na condução da carruagem . Esta segue para onde não
se sabe, pois seu destino é o próprio percurso enquanto este se faz.
_____
* Na verdade, Dioniso seria um semideus: na mitologia, um semideus expressa as núpcias do divino com o humano.
Para saber mais:
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