domingo, 6 de dezembro de 2015

dançando sobre a mesa




O filme Filhos da Esperança (Children of Men, 2006) , de Alfonso Cuarón , passa-se em 2027 e é determinado por um acontecimento sem precedentes: há 18 anos , desde 2009, não nascia um único ser humano. Todas as mulheres do mundo, da África à Ásia, da Oceania à Europa, e de todas as Américas, tornaram-se inférteis. Por conta disso, não havia mais futuro: encurtando-se mais e mais, o horizonte enfim chegaria à praia, e nada para se ver ao longe haveria.
Enfim, a infertilidade generalizada das mulheres anunciava que a humanidade teria fim. Não havia mais crianças já de algum tempo. Em breve, não haveria mais adolescentes. Depois, inexistiria a juventude. Estranha ideia: geralmente associamos a noção de extinção a seres de um passado muito remoto. Porém, um dinossauro se tornava, no filme, a juventude ( e não haveria, no futuro, nem mesmo arqueólogos para descobrirem que um dia existira a juventude...). Na continuidade das extinções, seria a vez dos adultos desaparecerem, restando apenas os idosos :mais do que nunca, de novo crianças ( aliás , um dos personagens mais “jovens” do filme é, por sinal, o mais idoso, e é representado pelo ator Michael Caine ; a juventude de tal personagem se expressa sobretudo através da sua preferência musical pelo rock, sendo a música o último registro no qual a juventude, como “fóssil”, ainda sobrevive ) .
O filme mostra escolas vazias, museus às moscas, obras de arte que hoje valem milhões sendo encontradas jogadas na rua. Ainda existiam os livros, mas não existia mais a leitura. Ninguém mais escrevia, ninguém mais lia; não havia mais professor e aluno, expectativas e projetos. Restavam apenas seres humanos lutando para permanecerem humanos. Quando desaparecem o pintor, o professor, o aluno , o escritor, o educador, etc., corre perigo o próprio humano, que é decerto a base, mas que tão frágil se mostra diante do assalto do seu contrário, o inumano, a barbárie ,a violência. E é essa a atmosfera do filme: uma guerra constante de todos contra todos.
Não obstante o fato de quase todas as instituições terem desaparecido, permanecia , no entanto, uma. Somos levados a crer que a existência dessa instituição nada teria a ver com o futuro e com o humano. Essa instituição é o Estado. Embora não houvesse mais justiça, havia o Estado. Apesar de não existirem mais faculdades de Direito, existia o Estado. E o seu braço armado, a polícia, estava mais atarefado do que nunca. Como prender alguém visando a sua ressocialização se a própria sociedade já estava condenada à pena de morte? Não se prendia, matava-se. Assim, tornava-se uma assertiva incontestável, e não por questões metafísicas ou religiosas, mas políticas, a opinião de que a morte era a única certeza.
A abolição do futuro apagava, ao mesmo tempo, a lembrança do passado, e tornava o presente uma enlouquecida estrada cujo ponto de chegada e ponto de partida se encontrariam no meio dela, abolindo-a e a tudo que sobre ela caminhou e deixou rastro.
Outro fato chama a atenção no filme: havia aqueles que se contrapunham ao poder do Estado, e se valiam de armas para realizarem seus intentos. Eles se diziam “ a resistência”. Mas frágeis eram as idéias que justificavam o uso daquelas armas. Obscuros eram também seus propósitos.Examinando bem suas posições, parecia que era o uso das armas que justificava ter idéias, fossem estas quais fossem, o que acabava sendo o mesmo que atestar que as idéias já não mais existiam, tampouco a fronteira, que é já uma idéia, que separa , e distingue, a esquerda da direita, os progressistas dos conservadores, a revolução do terror.
Contudo, no meio do filme acontece algo de extraordinário e  imprevisto. Afinal, o extraordinário não seria extraordinário se não fosse imprevisto. Nada de mais ordinário que a previsibilidade ( o que nos permite concluir o quanto que a ciência, com o seu ideal de previsibilidade, nisto dando o braço ao cálculo financeiro, pactua com a ordinariedade). Uma refugiada extremamente jovem, negra, pobre, muito pobre, aparece grávida. O sagrado fizera novamente uma esquiva aos homens, e reaparecera não no ventre de uma mulher poderosa, tampouco no altar de um templo, mas no ventre de uma marginalizada. Eis o sentido do sagrado: ele é marginal, no sentido de estar à margem de tudo o que o homem põe no centro. E quase sempre o homem põe no centro o poder, e em torno deste passa a gravitar. Mas o sagrado também é poder, e revela que a margem está por toda parte.
Quando os homens que se consideram da resistência descobrem a grávida, resolvem se apropriar dela ,e passam a calcular a vantagem que poderiam tirar do fato.Ventila-se inclusive a idéia de matá-la, pois vislumbravam nisso uma vantagem política. Porém, um personagem um tanto cético e resignado até então, chamado Theo (representado pelo ator Clive Owen) , sente-se tomado por um impulso involuntário para proteger a menina grávida. Aos poucos, movido por essa exigência, sua índole vai mudando. Vê-se que ele passa a acreditar em algo. Esta crença muda seu rosto, seus gestos, suas percepções, sem que ele entenda exatamente por que. Não que ele se torne outro. Ao contrário, era como se ele, conforme dizia Espinosa, se tornasse ele mesmo. Desconfiando dos homens da resistência, Theo resolve fugir com a grávida, e passa a ser perseguido após descobrir que tanto ele quanto ela seriam mortos.
Uma das cenas mais fortes do filme , apresentada em um plano-sequência admirável, acontece quando os dois personagens tentam se esconder em um prédio em ruínas abarrotado de refugiados. Na verdade, eram três os personagens, uma vez que o bebê acabara de nascer momentos antes. Diante do prédio, um exército atirava sem parar contra os que estavam lá dentro escondidos, pois entre estes se encontravam também os líderes da resistência, que por sua vez tentavam capturar Theo e sua protegida. Até mesmo um tanque disparava contra a construção, fazendo voarem destroços por toda parte e deixando o ar saturado por uma poeira cinza. O barulho era ensurdecedor. De repente, como se fosse um indignado e são protesto contra toda aquela loucura, um chorinho de nada começa a ser ouvido. Era o chorinho do bebê enrolado nos trapos que a mãe improvisara como manta. Pouco a pouco, os refugiados, pondo a própria vida em risco, saem de seus esconderijos e esticam a cabeça para se certificarem de onde vinha aquele chorinho. Um soldado ouve o choro e cala a arma. Faz sinal para que um outro também escute e lhe imite. Resguardando-se como que para obedecerem a um imperativo mais forte do que a ordem de comando , cada soldado guardou a arma, até mesmo o tanque não mais atirava. Só se ouvia o chorinho como expressão do poder da vida, que ali fazia calar o poder da morte. Os três passam por entre os soldados. Alguns se ajoelham, outros choram, muitos sorriem...Passa diante deles não um rei ou um príncipe, mas uma simples criança humana , tão singular em sua natureza universal: une vie, uma simples vida, como dizia Deleuze.
Passava por eles a fonte sem a qual todo valor seca, aquilo sem o qual não há instituição que sobreviva, nem teoria que mereça sair da boca humana. Sem o devido cuidado e valorização dessa fonte, o quadro vira só tinta, a música se torna apenas som, o poema se converte tão somente em letra no papel e o tempo se torna apenas contagem que avança para o fim.
No mito grego, um segundo estômago fora colocado em Pandora, a primeira mulher, como algo destituído de utilidade: esse segundo estômago seria tão somente um buraco excedente, que obrigaria o homem a muito esforço para preenchê-lo, ao mesmo tempo que dotaria a mulher de uma insatisfação crônica. Contudo, nesse segundo estômago deu-se o milagre estético, vingou um poema:ele se tornou o útero.
Como diz Deleuze, todo órgão se explica por uma função que ele cumpre.O funcionalismo, como império das utilidades, preside não apenas o mundo orgânico, como também o mundo econômico, tecnológico , acadêmico e mesmo o mundo cultural.Segundo a visão funcionalista, utilitária, tudo existe para cumprir uma função: a função do cérebro, enquanto órgão, é fazer teorias ( teses, monografias, ciências...); a função dos olhos, enquanto órgão, é ver o "mundo objetivo"; a função de uma mesa é servir de apoio para o almoço ou a janta... Mas a criação, pela qual algo novo nasce, afirma Deleuze, nada tem a ver com o exercício da função de um órgão.A criação vem de um corpo ainda "sem órgaõs": ela vem de uma parte do corpo sem função utilitária ou pragmática. É como uma graça, uma espontaneidade que não se explica pelas programações e metas do mundo funcional, que é sempre "focado", ávido por resultados.
corpo sem órgãos não é outro corpo, mas nosso corpo mesmo quando o libertamos de existir à maneira de uma empresa ou fábrica, e o experimentamos-vivemos como um laboratório ou oficina: como "Uma Oficina de Transfazer Natureza", nas palavras de Manoel de Barros.O segundo estômago de Pandora se transfez: reinventou-se útero.
O futuro não é gerado por nenhum dos órgãos constituídos do presente, seja esse “órgão” a ciência, o capital ou o Estado. O que esses órgãos fazem é construir um arremedo de futuro em razão de seus interesses presentes. Mas a linguagem da graça não a pode entender todo aquele que apenas crê no resultado a serviço de um interesse.  Esses órgãos põem o futuro em risco, e nada põe tanto o futuro em risco do que um presente sem futuro. O futuro somente pode nascer onde existam as subversões a este mundo presidido pelos órgãos e suas funções, pelos órgãos e suas metas, pelos órgãos e seus “focos”.
Sem dúvida, sentar-se à mesa para almoçar ou jantar , ou nela realizar  “reunião de negócios”, dá uma razão de ser funcional, utilitária,à mesa. E a essa razão ninguém questiona...A não ser aqueles que sentem a necessidade de subir  sobre a mesa, subvertendo a lógica das utilidades, fazendo da mesa  um palco;  e, dançando, nela servem outros alimentos; dançando, justificam a sublevação pela instauração de outra realidade que, pelo afeto, falam por aqueles que os almoços&negócios excluem.






(da trilha sonora do filme)

 (da trilha sonora do filme)


(da trilha sonora do filme)

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