sábado, 29 de novembro de 2014

o que pode a arte

Isso ninguém me contou. Eu estava lá e vi.Aconteceu no hall do 9ª andar da Uerj, onde eu estudava, há uns 25 anos.O hall da Uerj era  um espaço amplo, de tal modo que pôde ocorrer ali uma encenação do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal.O lugar estava cheio, todo mundo sentado no chão. Havia ali estudantes de psicologia, de história, de ciências sociais, de comunicação, de filosofia...
O Teatro do Oprimido abolia palco e roteiros.Ele acontecia o mais próximo possível da realidade concreta, e tentava romper o fosso  entre o lugar da arte e aquilo que supomos ser a realidade objetiva, “normal”. Sentados no chão, os estudantes formavam uma grande roda, e foi no centro dessa roda que o próprio Augusto Boal entrou e fez uma breve apresentação do que iria acontecer. O tema da peça era uma dona de casa classe média cujo filho usava drogas. Ela, porém, desconhecia essa conduta do filho. Então, o Boal nos explica que a cena que vai abrir a peça será o filho entrando sorrateiramente no quarto da mãe para surrupiar um relógio caro para ir trocá-lo por drogas. Depois ele nos diz que esse fato gerará uma situação onde haverá um opressor e um oprimido, cujo desenlace a gente acompanharia. O Boal se retira , a peça começa.
Vemos o filho furtando o relógio. Na cena seguinte, a dona de casa entra no quarto e se dá conta do furto.De imediato, ela chama pela empregada .No Teatro do Oprimido o importante não era exatamente a caracterização do personagem ou a fidelidade realística do cenário. O importante era a ideia, a questão a ser mostrada.Talvez por isso, suponho, a atriz que fazia a empregada também poderia, pelo seu tipo físico, fazer também a dona de casa. Mas havia algo que marcava de forma clara a sua condição: ela portava uma vassoura. Os objetos também portam valores, ideologias, divisões sociais. Os objetos também são protagonistas. Um relógio de ouro, uma vassoura...Quantas coisas eles falam para quem souber ouvir, um ouvir que também é um ver.
Mal a empregada chega diante da patroa, esta toma por verdade uma mera suposição, e começa a agredi-la verbalmente, após indagar acerca do relógio e obter como resposta da empregada de que não o vira. Porém, a patroa não aceita a resposta, não acredita nela e passa da suspeição à acusação explícita. Percebia-se que a patroa era alguém que tinha formação universitária. Ela apresentava  um repertório verbal acima da média, e não se equivocava nas regras da gramática. Essa destreza com as palavras  tornava a opressora mais cruel no emprego delas  como arma.
No auge da violência verbal ( que encobria outras violências), entra o Boal e diz: “parem a cena!”. Ele se dirige então à plateia e pergunta aos estudantes se alguém gostaria de tomar o lugar do oprimido para dessa forma tentar vencer o opressor. Logo apareceu uma prestativa candidata. Por coincidência, eu a conhecia: era uma estudante de psicologia. Pelo seu ar confiante, parecia que ela saberia rapidamente como dar o “xeque-mate” na patroa cruel e desumana. O Boal a trouxe para a cena, perguntou-lhe o nome e o que ela estudava. Após isso, ele pegou a vassoura que estava na mão da atriz que fazia a empregada e passou à mão da estudante. Era apenas esse elemento material que indicava a condição da personagem. Não havia avental, maquiagem ou outro elemento identificador. A cena prosseguiria exatamente do ponto onde parou, nem antes e nem depois. Como não havia roteiro, a estudante poderia interromper o fluxo verbal da opressora quando quisesse. Pois bem, ela tentou fazer isso...De acordo com sua formação, deu para ouvir que a estudante de psicologia estava se apoiando na psicologia para se defender e , quem sabe depois, atacar.Porém não deu tempo nem para a defesa, pois a atriz-patroa, extremamente hábil e arrogante, pôs abaixo, com extrema facilidade, as referências psicanalíticas  atrás das quais a aluna se escudava.Sentindo-se  derrotada, a própria aluna pediu para parar, ela queria sair.
Boal entrou em cena novamente ,pegou a vassoura da aluna-psicóloga e perguntou se mais algum aluno queria lutar contra a opressora .Uma observação sobre a opressora:ela não se apresentava como um monstro ou como alguém que de imediato percebemos ser uma má pessoa. Ela tinha um tipo comum. Parecia uma pessoa “normal”, que até mesmo tem amigas e que dá conselhos aos filhos  e coisas semelhantes. Havia na personagem uma tensão entre uma máscara e as sombras dessa máscara, atrás da qual estava o preconceito e, também, o fascismo.Ela não era uma simples louca, parecia mais a representação de uma ideologia que na última eleição também deu suas caras.
Dessa vez, Boal teve que insistir um pouco mais no convite  à participação.Um estudante, enfim, estendeu a mão e  levantou-se. Percebi que ele estava com o Código Civil na mão. Tudo levava a crer que ele estudava Direito. No palco ele confirmou essa minha impressão.Boal passou-lhe a vassoura, ele se ajeitou .Boal deu a ordem para o recomeço.O garoto falava bem, tinha mais habilidades argumentativas e retóricas do que a aluna anterior. Além disso, ele também falava alto e com aparente segurança.Por um momento, parecia que ele estava vencendo.  Foi uma ilusão...No plano das ideias, ele ia bem. Percebendo talvez isso, a atriz-patroa começou a fazer o que em retórica se chama recurso “ad homini”, “contra o homem”. Quando um mau argumentador percebe que no plano das ideias ou dos argumentos se sairá derrotado, ele passa então a atacar a pessoa do seu  oponente. Procura por pontos fracos e  os explora, tal como a hiena que espreita o leão para ver se ele está com alguma ferida. E o garoto tinha uma ferida: a pouca experiência em viver uma situação na qual ele era um pobre . Ele era da mesma classe da opressora, isto se via.Ele se comportava mais como um advogado, não como alguém que compreendia existencialmente o que é ser oprimido.Ele ficou bastante tempo no papel, todavia também desistiu.Ele deu a vassoura ao Boal e saiu vermelho e suando mais do que o normal.
O diretor indagou se mais alguém queria lutar contra a opressão. Não a opressão macro-política, aquela que identificamos às forças policiais do Estado, e sim a opressão cotidiana, “invisível” à grande mídia, e que só conhece quem a sofre. Houve um silêncio na plateia, ninguém se habilitava. Alguns conhecidos ao meu lado olharam ironicamente para mim ( e havia um ar de desafio no olhar deles).
Mas antes que eu pudesse reagir, virei-me para trás e vi a seguinte cena que quase ninguém percebia que estava acontecendo paralelamente à cena do teatro: na porta do banheiro feminino, espreitando tudo de forma discreta (  pois ela parecia não queria chamar a atenção para si mesma, poderiam despedi-la  por não  estar limpando o banheiro e  sim vendo uma peça de teatro), na porta do banheiro estava uma das faxineiras da Uerj. Era uma senhora negra, simples, já passando dos sessenta anos. Ela estava prestando atenção em tudo, embora ninguém estivesse prestando atenção nela. Ela estava de certa forma invisível àquele mundo de estudantes e teorias teatrais, porém algo nela transparecia querer  sair daquele lugar passivo .
Então, a vi tomar coragem, embora estivesse muito nervosa. Assim que o Boal indagou mais uma vez se alguém queria lutar contra a opressão, ouviu-se uma voz vindo de trás de todo mundo. Não era uma voz jovem , não era uma voz de estudante. Havia naquela voz uma tensão, um drama, uma decisão. Todos se voltaram e a viram. Ela vestia um uniforme azul e portava sua vassoura. Ela foi atravessando por entre os alunos sentados. Houve um buchicho, comentários em surdina. O Boal estampava  um sorriso, ele sabia que muitas vezes se vive e trabalha anos para um momento como aquele. Ela se acercou do diretor, estava nervosa. Com muito custo se voltou para a plateia e disse seu nome: “Maria...Maria da Anunciação”. Após isso, o Boal deu a Maria a vassoura da personagem, e a Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a da arte e a da vida, eram exatamente iguais. Ali entendi porque o teatro grego nasceu da vida : antes de passar ao palco, já na Grécia Clássica, a arte era  vivida como indistinta da própria vida.E isto era, ao mesmo tempo, artístico, poético, político, vital, divino.
Boal pôs a Maria da Anunciação no papel de representar a ela própria. Mas como representar a si própria a não ser sendo si mesma? E ser não é representar, ser é agir, sentir, pensar, expressar, existir. Ali já não havia representação, embora houvesse linguagem, sentido, arte.Quando foi dada a ordem para o reinício, a patroa retomou seus vitupérios. Contudo Maria não se curvou, tampouco entrou em disputas dialéticas. Ela segurou firme a vassoura, e  de “ganha pão” ela se tornou uma arma:  Maria saiu a desferir golpes de vassoura na opressora desumana. Ela batia de verdade! Foi necessária toda a equipe para segurá-la,  Maria era forte. Explicaram para ela que era tudo mentira...Mas seria mentira para Maria, a Maria-povo, a experiência da opressão? Aos poucos ela foi se acalmando, já sorria.Todo mundo sorria.E de vassoura na mão voltou Maria da Anunciação para seu trabalho. Ela passava sorrindo olhando para a gente. Ela nos perdoava.









sexta-feira, 28 de novembro de 2014

a ideia transparente

De tudo o que ouço e vejo
guardo menos de um terço:
o que é belo eu lembro,
o que é vil eu esqueço.

Faço isso para manter limpa
a luz da minha mente:
e que seja meu espírito o ninho
de uma  ideia transparente.



terça-feira, 25 de novembro de 2014

o coração, o desejo e a razão


Aquiles vai à frente
e puxa os demais.
Heitor também está à frente,
 para proteger quem está atrás.

Um é amigo da guerra,
o outro o é da paz.
E tudo no mundo pára,
para ver  quem   pode mais:
eles lutam não apenas no campo de batalha,
eles se enfrentam também no dos ideais.

Aquiles salta,
Heitor tem os pés no chão.
Aquiles ama a morte,
Heitor ama o irmão.
Se em Aquiles a poesia aos Deuses exalta,
em Heitor ela é obra da humana condição.

Morre Aquiles para viver na glória.
Morto foi Heitor em defesa de sua memória.
Quis Aquiles o extremo sem comparação.
Quis Heitor apenas a medida do coração.

Entre ambos havia uma muralha:
para o primeiro, um obstáculo;
para o segundo, uma proteção.
De longe os espreitava Ulisses,
 o homem da ardilosa razão.

Ulisses não tinha a coragem de Aquiles,
tampouco de Heitor a gratidão.
Sua arma era o cálculo,
a frieza da abstração.

E lá onde os corações ardendo se batem,
Ulisses dissimula sua fria ambição:
enquanto morrem os autênticos em combate,
esquivo  foge Ulisses com o ouro na mão.





****   ****

WITTGENSTEIN

Queria lhe mostrar a paisagem,
a única paisagem que há.
Embora única, ninguém a pode medir ou contar.

Ela está à frente,
atrás,
dentro e fora.

Ninguém a cerca,
ninguém é seu dono;
e para percorrê-la só a amando,
somente desejando livre  passear.

É ela que nos circunda quando a noite  ameaça,
é dela o ar que enviva o que se move e o que voa.
E quando tudo ao redor se afasta,
ela é a única que fica  e   perdoa.

Na doença, ela te cura;
na tristeza, ela te alegra;
na fome, ela te alimenta;
 na morte, ela te faz renascer.

Não importa se é dia ou noite:
ela se estende igual.
Não importa se chove ou faz sol:
nada a nega, nada a pode desfazer.

Queria lhe mostrar essa paisagem.
Queria lhe fazê-la viver.
Mas não se pode descrevê-la,
não se pode representá-la,
só a poesia a faz aparecer.

Ela é evidência e obscuridade,
clarão e recolhimento,
palavra e silêncio,
tempo e eternidade.

E ainda mais:
ela não coincide com esses extremos,
pois ela vive no meio.
E a partir daí se amplia,
idêntica à novidade.

A criança a faz brincando.
O pássaro a ensina voando.
A rosa a mostra exalando.
O sábio a diz se calando.
.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

a fonte do poeta

Ele era um homem comum: nem melhor , nem pior do que os outros.Perto de sua casa passava um rio.Ele via o rio todos os dias. Ora nele se banhava, ora pescava, ora se divertia.Do rio ele extraía o útil e o lúdico. Ele pensava que conhecia bem o rio, o rio que por sua casa passava.
Mas houve um dia que lhe nasceu uma questão: onde nasce esse rio? Onde fica sua fonte, sua nascente? Ele desejou então buscar a nascente, subindo pela margem, próximo à corrente.
Não demorou muito para ele ver que o rio conhecia paisagens diferentes daquelas que cercavam sua conhecida casa. O homem atravessou lugares que nunca antes viu. Faltava-lhe agora mapa, bula, opinião. Doravante,apenas o rio era  o fio ao qual ele se agarrava, para assim vencer labirintos. Ele pensou em desistir , pensou voltar. Teve medo, teve horror, teve desesperança. Podia ele confiar  naquele rio?
Contra si mesmo, ele continuou. As águas foram ficando cada vez mais translúcidas, e melodias inauditas ele ouvia vir da multicolorida mata.As borboletas perderam medo dele:elas pousavam em seus ombros. Em tudo havia música. Já não havia dúvidas: a fonte  não estava mais longe.Ele veria onde o fluxo nasce.
De repente, ele viu.Ele viu o que nunca antes nenhum homem pôde olhar.Ele viu a banhar-se na fonte a deusa Atena, a deusa da Sabedoria.E a Sabedoria estava nua.A Sabedoria não vestia nenhuma teoria, nenhuma fórmula, nenhum número, nenhuma verdade, nenhum dogma. Ela estava completamente nua, inocente.E o homem então viu que quando a sabedoria se despe das vestes acadêmicas, é como poesia que ela se mostra.
Atena virou-se para ele e viu amor nos olhos daquele homem.E quem vê nascer em si  um amor assim nunca mais será o mesmo.Quem vê a sabedoria nua vê tudo o que se pode saber. Nada mais precisa ver.É nas fontes que a sabedoria está. Quem a vê nunca mais a esquece, nunca mais a deixa de ver.
E foi assim que esse homem se tornou um sábio, através dessa metamorfose nascida de uma visão poética, onde tudo o que se precisava  saber ele viu, para nunca mais esquecer.
No mito grego esse homem se chamava Tirésias.Para protegê-lo da cegueira dos homens, a deusa o cegou para aquilo que os homens chamam de realidade. Mas os olhos do seu espírito estariam sempre a vê-la, e Tirésias compreendeu que nada mais ele precisaria ver, a não ser ela, a Sabedoria.E que não se pode olhar para a Sabedoria sem  os olhos do amor.

Mas esse homem também poderia se chamar Manoel: o sábio-poeta que descobriu que dele brota uma “visão Fontana”.


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

os frutos (eternos) do querido manoel






Se a gente não der o amor ele  apodrece em nós.

Manoel de Barros


O que diz Manoel também já o disseram sábios, santos, simples.Já o disseram fazendo.Quando a gente dá o amor, aquele que o recebe e o que dá passam a existir mais. O poeta dá o amor à palavra: ao receber o amor que o poeta lhe dá, a palavra também recebe o poeta e deixa que ele viva nela. E assim o poeta já não vive apenas dentro dele, mas vive fora, nas coisas, no mundo. Van Gogh deu amor às tintas, e estas o receberam amando-o. E Van Gogh se metamorfoseou em girassol que nunca apodrece, mesmo que apodreçam as tintas com as quais o girassol pintado é feito.
Ódio, inveja, rancor, cobiça, vaidade...são frutos apodrecidos.Ódio, inveja...são amor apodrecido, e isto se vê facilmente no rosto , nas palavras e nas ações de quem os sente. As paixões tristes, como ensina Espinosa, são frutos apodrecidos . O ódio , o rancor, a cobiça, a vaidade...não são o fruto original,pois estes frutos não nascem da árvore da vida, da árvore da Natureza. Se tais paixões tristes existem e governam os homens, é na alma destes que tais frutos têm raízes. Não raro, estes frutos apodrecidos são a moeda pela qual se compram ou obtêm fama, poder, posses, títulos.
Somente o amor é, da árvore da vida, o fruto. Fruto que não se vende ou troca, mas que se dá, que se oferta. O poeta dá o amor sem esperar amor em troca. Ele dá o que já está nele, e não o que lhe falta. Generosidade da invenção, da alegria.
 Mas antes do fruto estar maduro, ele cresce em nós ainda verde. Ele amadurece em nós de acordo como amamos a nós mesmos, de acordo como o cultivamos cultivando-nos.E isto se faz discretamente, sem alarde, sem esperar reconhecimentos, a não ser da própria árvore que gerou o fruto. E esta nos recompensa fazendo nascer mais frutos em nós: ela nos faz nascer mais ideias, mais poemas, mais arte, mais alegria,mais afeto, mais afirmação, mais generosidade ,mais ousadia , mais  firmeza, enfim, ela faz nascer mais do mais: ela nos faz nascer nascimentos ( "na ponta do meu lápis só tem nascimento", sorri para nós o poeta).
Árvore rizomática de múltiplas raízes .Árvore sem centro, que cresce horizontalmente e nos horizonta.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

salut


Cantei.
E a nuvem que me cegava,
passou.

Cantei.
E o raio que vinha,
voltou.

Cantei.
E o nó que me apertava,
folgou.

Cantei.
E o ontem que continuava,
findou.

Cantei.
E o sentido de que me perdi,
me achou.

Cantei.
E a alegria de mim surda,
me escutou.










quarta-feira, 5 de novembro de 2014

manoel de barros: as fontes do saber

Certa vez, quando perguntado sobre sua poética, Manoel de Barros respondeu:

Penso que nasci com o olho divinatório, que é o que chamam de dom. É assim que Sófocles, no Édipo Rei, chamou. Ele disse que o artista nasce com esse olho divinatório. E que esse olho deve ser completado com outro olho, que é o olho do conhecimento. E completou que a arte é feita da reunião desses dois olhos. Isto seja: que a arte é o terceiro olho. Eu andei lendo os poetas, os filósofos, ouvindo os músicos, vendo os Picassos para ganhar o olho do conhecimento. Acho que a construção de minha poesia, que é uma construção meio caipira e meio erudita é fruto desse terceiro olho e mais de uma disfunção lírica. Essa disfunção vem do grande fastio que tenho pela palavra acostumada.    
                                       
 “Olho divinatório”: olho de transver as coisas, desformar a natureza. Assim, a poética de Manoel de Barros é inseparável de uma percepção. Esta não é um “fazimento cerebral”, mas um instrumento de incorporação. Incorporar as coisas é sê-las, é mimetizá-las como um camaleão. 
O olho de transver é uma “visão fontana”  na qual o mundo, renovado em seu inacabamento , renasce e jorra em sua eterna  novidade:  

Tudo que os livros me ensinassem
os  espinheiros já me ensinaram.
Tudo que nos livros eu aprendesse nas fontes eu aprendera.
O saber não vem das fontes?


(trecho do livro)




sábado, 1 de novembro de 2014

o acontecimento

Foi no meio da rua,
no seio de tudo.
Ele ia anônimo,
como todo mundo.
E foi assim, sem roteiro,
sem bula,
sem previsto,
sem conceito;
foi assim que ele viu o acontecimento.
O acontecimento sem nome,
sem hora,
sem padrão.
O acontecimento apenas acontecimento.
E isto era tudo,
bastava,
transbordava,
vivia:
era simples,
era eterno,
mas ainda estava a nascer.
O homem então buscou papel,
caneta...
ele queria escrever.
Mas somente encontrou o coração.
Dentro deste ele guardou o que viu.
Para que pela sua boca,
pelos seus gestos,
a todos ele pudesse dizer.