sábado, 16 de agosto de 2014

o menino e o tesouro

Nenhuma potestade, nem ninguém mais, a não ser um invejoso,
pode comprazer-se com minha impotência e minha desgraça 
ou atribuir à virtude nossas lágrimas, nossos soluços, nosso medo,
e coisas do gênero, que são sinais de um ânimo impotente.
Pelo contrário, quanto maior é a alegria de que somos afetados,
tanto maior é a perfeição a que passamos, isto é,tanto mais participamos 
da natureza divina. 
Espinosa, Ética, Quarta Parte, escólio 2 da proposição 45.

A virtude com a qual o homem livre evita os perigos
revela-se tão grande quanto a virtude com a qual ele os enfrenta.
Espinosa, Ética, Quarta Parte, prop. 69.


Era a primeira vez que o menino iria até minha casa.O encontro, o simples encontro, era o esboço de uma aproximação que ele , nos seus 8 anos de idade ainda, mal entendia o significado. Ele seria, não por escolha sua, meu enteado.Seu pai era completamente diferente de mim: era um homem de negócios, dos altos negócios da selva do capitalismo.Ele morava em um apartamento imenso, tão imenso que dava trabalho, e custava muito, enchê-lo com coisas.Havia muitas coisas lá, todas as novidades do mundo, mas não havia muitos livros, havia apenas os livros que  falam das novidades, novidades estas que amanhã já “serão sucata”, como diria Manoel de Barros.
Do ponto de vista daquilo que o dinheiro pode comprar, não faltava nada a esse garoto. “Ele tinha tudo”, conforme se diz. Mas ele era triste.Contudo,a tristeza e a infância são termos que não combinam.Segundo Espinosa, a pior fase da vida é a infância. Não exatamente por algum problema que lhe seja intrínseco.Na verdade, a infância é a pior fase da vida porque é nela que mais dependemos da qualidade dos adultos que nos cercam. Havia sobre esse menino algumas “verdades”. Diziam que ele não gostava de gente, que era extremamente a-social e que não gostava de ler.Curiosamente, alguns desses aspectos também podiam ser encontrados em alguns dos adultos que lhe eram próximos.
Então, esse menino , não por vontade própria, foi levado até minha casa para me conhecer no cotidiano.Era um encontro apenas entre nós dois.Ressabiado, dando a entender que não queria estar ali, ele entrou pela porta. De imediato, perguntei-lhe se ele queria conhecer o lugar onde eu guardava o meu tesouro.Ele olhou espantado para mim, e sua expressão incrédula , ainda que muda, dizia para mim: “ Como !? Você tem um tesouro?!Você é professor, e meu pai me ensinou que professor é pobre....”.Mas a palavra “tesouro” despertou sua curiosidade, e com o olhar indo em várias direções ele tentava ver onde estava o tal tesouro.
Levei-o até um quarto que eu usava como escritório. Era lá que eu guardava  os livros.Quando ele entrou, disse-lhe: “Aqui está meu tesouro”. Ele olhou em todas as direções e lados, acima e abaixo, deu de ombros e disse: “Cadê!?”. Ele não via os livros. Ou melhor, ele os via, mas estes não existiam para ele como tesouro. E nem podiam, ele era uma criança que ainda estava descobrindo as coisas, e certamente ele ainda não havia feito várias descobertas, inclusive a descoberta dos livros.
Apontei para os livros e disse: “Aqui está meu tesouro...”. Ele olhou incrédulo para os livros. Depois olhou para mim de alto a baixo, e fixou especial atenção na sandália de couro que eu usava, sandália esta que sua avó vivia dizendo, ironicamente, que somente franciscanos sem ambição usam, e certamente tal ironia  deve ter chegado, direta ou indiretamente, ao inocente ouvido dele (porém, mal sabia aquela senhora que tais sandálias de couro também as apreciava os cangaceiros...). Em seus olhos havia a seguinte interrogação: “O que minha mãe viu nesse cara !?”.
Então, sorri-lhe confidencialmente e lhe perguntei baixinho se ele era capaz de guardar um segredo.Já olhando para a porta de saída do escritório, ele disse que sim ,aparentemente apenas para sair logo dali. Contei para o menino que atrás daquelas paredes havia uma caverna secreta.Ao ouvir isso, ele tirou os olhos da porta e olhou para mim. Completei:
-Mas para abrir a passagem que dá para a tal caverna secreta é preciso puxar o livro certo que está na prateleira.
              Ele olhou para mim e, pela primeira vez, vi em seu rosto o esboço de um sorriso, sorriso de criança. “Qual é o livro?”, ele me perguntou. “Descubra!”, fiz o desafio.
                 Ele foi logo num dos livros mais grossos e pesados que viu, que  mal conseguiu tirar do lugar. Que decepção!Nada da passagem ao tesouro se abrir... Ele puxou a  Crítica da Razão Pura, de Kant. Decididamente, esse livro não é porta que leva à imaginação...Depois ele puxou um outro: Discurso do Método, do racionalista  Descartes...e nada de a porta se abrir.Ele puxava os livros e olhava para mim, e ria. Ele sabia que era um jogo, uma brincadeira. Em latim, a palavra que corresponde a “brincadeira”, “jogo” e “sonho” é “ludos”, e é daí que vem “lúdico”. Ele fez uma bagunça, e ficava surpreso por eu não lhe ralhar pela produção daquele caos.Ele ria, gargalhava até.
 De repente, a mãe dele chegou à porta. Ela ficou surpresa com a cena, e parecia não reconhecer o filho, que lhe disse:
 -Mãe, estou procurando uma caverna secreta!...
        Ela olhou para mim e falou:
- Você está zombando do meu filho?
- Não , não estou.Quem deseja educar alguém nunca deve zombar dele, embora possa brincar com ele, mas sempre no paciente esforço para ensinar alguma coisa, e também aprender.
Disse ao menino:
- A caverna secreta existe sim, eu e você sabemos disso; sua mãe também sabe, mas às vezes ela esquece que foi lá que ela me conheceu.O mundo dos adultos às vezes é chato e triste, e eles querem que você fique triste também. E é por isso que eles dizem que a caverna não existe.Nem todos os livros levam à caverna secreta.Mas esse aqui leva...
Puxei então da prateleira uma edição para jovens de um livro que poucos sabem ou imaginam o mundo que está nele, mundo por descobrir. Trata-se do livro Moby-Dick...
Ele pegou o livro com cuidado. Assim que abriu viu os desenhos, as ilustrações coloridas.
- Uma baleia!...
-Sim, essa é Moby-Dick...Tem um homem que vai tentar aprisioná-la, e para esse homem parece que ela é má. Mas ela não é má, ela apenas não quer se deixar domar, ela é livre.E quem não quiser domá-la, quem aceita sua liberdade e vence o medo , ela deixa que suba no dorso dela, e assim fazem viagens extraordinárias...Você vai ver....
Segundo me disse depois a mãe do menino, ele dormiu naquela noite com o livro lhe fazendo companhia.E no dia seguinte  o levou para escola,sob o braço, sem colocá-lo na pasta.
O menino estava protegido, embora a  vida ainda lhe reservará perigos. Mas naquele dia ele se tornou mais um que Moby-Dick deixou subir em seu dorso invencível.


Quem quer vingar as ofensas por um ódio recíproco vive, na verdade,infeliz.
Quem, contrariamente,procura vencer o ódio pelo amor, combate, certamente, 
com alegria e segurança; defende-se facilmente tanto de um quanto de muitos homens; e não precisa , de modo algum, ser socorrido pela sorte.
Por sua vez, aqueles a quem vence , rendem-se felizes, 
não, certamente, por carência, mas por acúmulo de forças.
Espinosa, Ética, Quarta Parte,escólio da proposição 46.


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