Viver é transformar-se dentro da
incompletude.
Paul Valéry.
Naquele fim de tarde resolvi ir à cinemateca do MAM ( o Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro).O filme que vi na ocasião ainda está muito vivo em
minha memória, embora já se tenha passado muitos anos.
O filme começa de imediato, mal as luzes da sala se apagam, sem créditos ou música. Surge a primeira cena
do filme: tendo como moldura um dia ensolarado, dois adolescentes estão sentados
em um banco de praça. Era um rapaz e uma
moça. Os dois permaneciam mudos. Ouvimos o vento, escutamos aqui e acolá
passarinhos cantando.E mais nada.O tempo passava , nada se alterava: mudos.Houve
uma inquietação na sala do cinema, muitos já estavam incomodados com aquele silêncio.
Porém, detive minha percepção no rosto dos personagens, e vi que os rostos
deles não estavam mudos: eles falavam.O rosto do menino expressava uma decisão
que ele queria tomar, mas hesitava, ao passo que o rosto da menina indicava uma
espera.Ele queria agir, ela esperava.O tempo também pode se expressar no corpo,E
era isso o que acontecia.Pelas suas expressões, percebia-se que o rapaz nutria
pela menina um sentimento especial, que a muito custo ele ocultava dentro de
si. De repente, ele toma coragem , e a coragem se mostrou como expressão em seu
rosto.Algo se acendeu em seu rosto, ficou mais vivo....Mas quando ele abriu a
boca para falar, aquela luz retraiu, a vida se escondeu: ao invés de ele falar
o que sentia, ele usou a palavra apenas para se esconder. Ele disse à menina
algo acerca do tempo, que estava muito bonito. No rosto da menina via-se decepção,
mas ela também cedeu ao teatro,dissimulou, e também se escondeu.Eles passaram a conversar sobre coisas banais. Contudo,a verdadeira
“conversa” se passava ao nível dos gestos incontrolados, nervosos,
desconectados e involuntários . Percebe-se que o garoto estava apaixonado pela
menina.
O garoto não se revela para a
menina ao seu lado . Logo depois a família do menino muda-se para longe.Eles se
separam ,cada um vai viver sua vida , nunca mais se vêem. O tempo passa, ela se
casa, tem filhos e netos. É amada e também ama. Sua vida parece ter sido vivida
da única maneira possível, como se tudo o que lhe ocorrera já estivesse desde
sempre escrito. E, assim, ela se acreditava feliz.
O garoto torna-se homem, também se casa com uma mulher que muito o amou.
Na verdade, parece que assistimos a dois filmes em um só, pois cada um dos
personagens leva sua vida sem nunca mais
ver ou ter notícia do outro. Aparentemente são felizes e fizeram o que parecia
ser o mais natural. Viviam uma vida
normal, comum.
No entanto, ele se torna viúvo. Para minorar um pouco a dor dessa perda,
ele resolve fazer uma viagem a Veneza. Sem que ele soubesse, para aí também
fora o seu antigo amor ,em viagem de férias.
Então, o inevitável acontece: eles se reencontram , ao acaso, nas proximidades do canal. Ambos se
reconhecem. Logo começam a conversar, e parecia que aquela conversa não havia
começado ali, naquele presente. Eles bebem vinho, o tempo parece revir, e não mais passar. De repente, percebe-se
que sob a barba branca e dos cabelos grisalhos aquele garoto indeciso estava
ainda vivo no homem velho. Após algum tempo de conversa, ele resolve confessar a ela que
durante todos aqueles anos sua mente não
passara um dia sequer sem pensar nela. E
ele faz essa confissão usando como escudo um sorriso , atrás do qual ele
tentava esconder aquele garoto triste
que ele jamais deixou de ser. Após ouvi-lo,
a mulher estremece, algo de intenso lhe ocorre, como se ela tivesse
dentro de si uma represa que subitamente rachasse pela pressão da água querendo
fugir. Para a imensa surpresa dele, ela
também lhe confessa que sempre o amara
durante todo aquele tempo e que sempre pensara nele. O filme então acaba...
Pensa-se: “que filme idiota e banal!”. Porém, quando todos os créditos passam pela tela e nós já
nos preparávamos para sair, o filme novamente retorna à primeira cena, como se o
fim reencontrasse o começo, como se o passado fosse o futuro que de novo retornasse. Ouve-se a voz do
narrador em off, enquanto a cena se
desenrola em câmera lenta[1]. Diz o
narrador: “— eu que sempre fui considerado corajoso e firme, e muitas medalhas
ganhei por enfrentar, sem medo, os tanques alemães durante a guerra, no entanto
não fui capaz de fazer esse pequeno gesto ( aparece então ele abraçando a
menina, que lhe retribui com um sorriso)
, se eu tivesse realizado esse gesto tão
simples, não só esse filme não teria existido, como minha vida , que aparentemente
foi como deveria ter sido, teria sido, no entanto, completamente diferente...”.
A vida é composta desses pequenos momentos que são, na verdade, não
pontos indivisos que se sucedem em linha
reta rumo a um fim (que acabamos por aceitar que era o fim ao qual desejamos),
mas bifurcações nas quais cada instante se abre a duas ou mais direções
divergentes . E cada uma dessas direções se abre a futuros completamente
diferentes, mas que ainda não são reais: são esboços de nossa vida futura, que
apenas vislumbramos obscuramente com a lente do nosso desejo.
Do nosso futuro depende a nossa
ação no presente , pois é a partir do presente que afirmamos o futuro que ainda
não somos, mas para o qual nos impele o
nosso desejo de ultrapassar o que acreditamos ser. Descobrimos que aquilo que
ainda não somos não espera por se revelar no fim, mas que o criamos a partir do
processo, do percurso.
Os gregos diziam existir quatro dimensões do tempo, e não três. Além do
presente, do passado e do futuro, eles diziam existir também o kairós. Este termo significa: “momento
oportuno”. Qual é o momento oportuno? Não há livro que o ensine, tampouco
teoria. E quem passivamente o espera chegar só verá as costas dele, quando ele já estiver
indo.O momento oportuno não é um momento
privilegiado, pomposo, em destaque. O momento oportuno só existe se for criado.
Quando ele nasce, morre o passado, renasce o futuro.O momento oportuno pode ser
qualquer momento no qual conseguimos criar uma direção nova
para uma estrada que imaginávamos ir
apenas em uma direção: aquela que um roteiro pré-determinava.
O kairós é cada momento singular do tempo onde duas ou
mais direções se bifurcam .E cada
direção não nos leva a um ponto que preexista ao movimento de percorrê-la. Pois
não é uma direção no espaço (tal como uma estrada), mas no tempo: cada
direção nos leva a um lugar que embora
ainda não exista, cabe a nós agirmos para assim fazê-lo chegar ao presente ,
para ser esse mesmo lugar onde estamos, mas diferente, novo, transformado pelo
nosso desejo.
(trecho do livro)
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