sábado, 9 de agosto de 2014

kairós



Viver é transformar-se dentro da   incompletude.

                      Paul Valéry.


Naquele fim de tarde resolvi ir à cinemateca do MAM ( o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro).O filme que vi na ocasião ainda está muito vivo em minha memória, embora já se tenha passado muitos anos.
O filme começa de imediato, mal as luzes da sala se apagam,  sem créditos ou música. Surge a primeira cena do filme: tendo como moldura um dia ensolarado, dois adolescentes estão sentados em um  banco de praça. Era um rapaz e uma moça. Os dois permaneciam mudos. Ouvimos o vento, escutamos aqui e acolá passarinhos cantando.E mais nada.O tempo passava , nada se alterava: mudos.Houve uma inquietação na sala do cinema, muitos já estavam incomodados com aquele silêncio. Porém, detive minha percepção no rosto dos personagens, e vi que os rostos deles não estavam mudos: eles falavam.O rosto do menino expressava uma decisão que ele queria tomar, mas hesitava, ao passo que o rosto da menina indicava uma espera.Ele queria agir, ela esperava.O tempo também pode se expressar no corpo,E era isso o que acontecia.Pelas suas expressões, percebia-se que o rapaz nutria pela menina um sentimento especial, que a muito custo ele ocultava dentro de si. De repente, ele toma coragem , e a coragem se mostrou como expressão em seu rosto.Algo se acendeu em seu rosto, ficou mais vivo....Mas quando ele abriu a boca para falar, aquela luz retraiu, a vida se escondeu: ao invés de ele falar o que sentia, ele usou a palavra apenas para se esconder. Ele disse à menina algo acerca do tempo, que estava muito bonito. No rosto da menina via-se decepção, mas ela também cedeu ao teatro,dissimulou, e também se escondeu.Eles  passaram a conversar  sobre coisas banais. Contudo,a verdadeira “conversa” se passava ao nível dos gestos incontrolados, nervosos, desconectados e involuntários . Percebe-se que o garoto estava apaixonado pela menina.
 O garoto não se revela para a menina ao seu lado . Logo depois a família do menino muda-se para longe.Eles se separam ,cada um vai viver sua vida , nunca mais se vêem. O tempo passa, ela se casa, tem filhos e netos. É amada e também ama. Sua vida parece ter sido vivida da única maneira possível, como se tudo o que lhe ocorrera já estivesse desde sempre escrito. E, assim, ela se acreditava feliz.
O garoto torna-se homem, também se casa com uma mulher que muito o amou. Na verdade, parece que assistimos a dois filmes em um só, pois cada um dos personagens leva sua vida  sem nunca mais ver ou ter notícia do outro. Aparentemente são felizes e fizeram o que parecia ser  o mais natural. Viviam uma vida normal, comum.
No entanto, ele se torna viúvo. Para minorar um pouco a dor dessa perda, ele resolve fazer uma viagem a Veneza. Sem que ele soubesse, para aí também fora o seu antigo amor ,em viagem de férias.
Então, o inevitável acontece: eles se reencontram , ao acaso,  nas proximidades do canal. Ambos se reconhecem. Logo começam a conversar, e parecia que aquela conversa não havia começado ali, naquele presente. Eles bebem vinho, o tempo parece  revir, e não mais passar. De repente, percebe-se que sob a barba branca e dos cabelos grisalhos aquele garoto indeciso estava ainda vivo no homem velho. Após algum tempo de conversa, ele resolve confessar a ela que durante todos aqueles anos sua mente  não passara um dia sequer sem pensar nela.  E ele faz essa confissão usando como escudo um sorriso , atrás do qual ele tentava esconder  aquele garoto triste que ele jamais deixou de ser. Após ouvi-lo,  a mulher estremece, algo de intenso lhe ocorre, como se ela tivesse dentro de si uma represa que subitamente rachasse pela pressão da água querendo fugir. Para  a imensa surpresa dele, ela também lhe confessa que  sempre o amara durante todo aquele tempo e que sempre pensara nele. O filme então acaba...
Pensa-se: “que filme idiota e banal!”. Porém, quando  todos os créditos passam pela tela e nós já nos preparávamos para sair, o filme novamente retorna à primeira cena, como se o fim reencontrasse o começo, como se o passado fosse  o futuro que de novo retornasse.  Ouve-se a voz do narrador em off, enquanto  a cena se desenrola em câmera lenta[1]. Diz o narrador: “— eu que sempre fui considerado corajoso e firme, e muitas medalhas ganhei por enfrentar, sem medo, os tanques alemães durante a guerra, no entanto não fui capaz de fazer esse pequeno gesto ( aparece então ele abraçando a menina, que lhe retribui com um  sorriso) , se eu tivesse  realizado esse gesto tão simples, não só esse filme não teria existido, como minha vida , que aparentemente foi como deveria ter sido, teria sido, no entanto,  completamente diferente...”.
A vida é composta desses pequenos momentos que são, na verdade, não pontos indivisos  que se sucedem em linha reta rumo a um fim (que acabamos por aceitar que era o fim ao qual desejamos), mas bifurcações nas quais cada instante se abre a duas ou mais direções divergentes . E cada uma dessas direções se abre a futuros completamente diferentes, mas que ainda não são reais: são esboços de nossa vida futura, que apenas vislumbramos obscuramente com a lente do nosso desejo.
 Do nosso futuro depende a nossa ação no presente , pois é a partir do presente que afirmamos o futuro que ainda não somos, mas  para o qual nos impele o nosso desejo de ultrapassar o que acreditamos ser. Descobrimos que aquilo que ainda não somos não espera por se revelar no fim, mas que o criamos a partir do processo, do percurso.
Os gregos diziam existir quatro dimensões do tempo, e não três. Além do presente, do passado e do futuro, eles diziam existir também o kairós. Este termo significa: “momento oportuno”. Qual é o momento oportuno? Não há livro que o ensine, tampouco teoria. E quem passivamente o espera chegar só verá as costas dele, quando ele já estiver indo.O momento oportuno não é um  momento privilegiado, pomposo, em destaque. O momento oportuno só existe se for criado. Quando ele nasce, morre o passado, renasce o futuro.O momento oportuno pode ser  qualquer momento  no qual conseguimos criar uma direção nova para uma estrada que imaginávamos  ir apenas em uma direção: aquela que um roteiro pré-determinava.
O kairós  é cada momento singular do tempo onde duas ou mais direções se bifurcam .E cada direção não nos leva a um ponto que preexista ao movimento de percorrê-la. Pois não é uma direção no espaço (tal como uma estrada), mas no tempo: cada direção  nos leva a um lugar que embora ainda não exista, cabe a nós agirmos para assim fazê-lo chegar ao presente , para ser esse mesmo lugar onde estamos, mas diferente, novo, transformado pelo nosso desejo.

(trecho do livro)




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