Na ponta do meu lápis só tem nascimento.
Manoel de Barros
A alma humana possui
atividades que lhe são imanentes.Estas atividades receberam o nome de “faculdades”.
Há dois sentidos para a palavra faculdade. O primeiro deles é o mais conhecido:
imaginação,razão,vontade,memória, sensibilidade, etc., são as principais faculdades
nesse primeiro sentido mais comum e variado. Existe ainda um segundo sentido,no
qual a palavra faculdade designa atividades mais específicas. Nesse segundo sentido
da palavra faculdade temos o Conhecer, o Agir, o Sentir e o Fazer.Este segundo
sentido da palavra faculdade determinará a relação das faculdades no primeiro
sentido. Por exemplo, quando se trata do conhecer é a razão, ou a inteligência,
a faculdade que terá a preponderância sobre as outras, pois o conhecer nasce
quando a razão comanda ou subordina as outras faculdades. No agir,por sua vez,
é a vontade a faculdade que comandará as outras.No sentir e no fazer a
faculdade principal é a sensibilidade, que é a faculdade mais complexa e rica
de todas,uma vez que ela está ligada intimamente à vida do corpo.
Algumas disciplinas nascerão
dessa “especialização” do termo faculdade no segundo sentido. Do conhecer
nascerá a epistemologia ou teoria do conhecimento.O agir ensejará duas
disciplinas: a ética e a moral. Já o sentir dará nascimento a duas disciplinas: a estética
e a poética. A estética estuda sobretudo como a obra de arte nos afeta ( a
questão do “gosto”nasce daí),ao passo que a poética estuda como a obra de arte
é feita. A estética fala da arte a partir sobretudo do espectador,já a poética
pensa a arte sob a perspectiva do criador. Uma coisa é a estética do
teatro,outra coisa diferente é a sua poética. Muito se fala da estética da
pintura, de tal maneira que todos querem ter uma opinião, um gosto,sobre o que
um determinado pintor quis dizer,mas pouco se pensa sobre o "como”, isto é, acerca da maneira como a obra foi
feita, e sua feitura nada tem a ver com as opiniões do artista, tampouco este produziu sua obra para contentar o gosto da época. Ao contrário,muitas
vezes uma obra sobrevive à opinião demeritosa que recebera do gosto estético que vigorava em determinada época : a mesma obra que hoje leva multidões ao museu
ou à galeria, em sua época a opinião ou o gosto estabelecido a condenava à
morte ou à solidão...Vermeer,por exemplo,foi condenado pelo gosto artístico
da época, que era aficionado pelas marinas e desprezava as cenas íntimas que
Vermeer pintava.Para a alegria da arte, a obra sobrevive , embora muitas vezes não sobreviva às dificuldades aquele que produziu a obra.
Como diz Espinosa, somente podemos compreender
verdadeiramente uma coisa, não importa qual,
se compreendermos como essa coisa foi produzida,e não apenas entrando em
contato com ela já feita .
Quando se trata do
conhecer é a razão que comanda. No agir, é a vontade. E quando se trata do sentir? O sentir é tão rico e vivo que, nele,
não há exatamente comando de uma faculdade sobre as outras.O que há é uma
relação heterogênea na qual cada faculdade no primeiro sentido,mesmo a razão,
se descobre como criadora. Então, no sentir não é exatamente a imaginação que
comanda,embora ela possa ter, e tem, um papel
decisivo.
Mas faltou falar de outra
atividade da alma não mencionada: o pensar. O pensar não é a mesma coisa que o
conhecer. Um traço expressivo caracteriza o pensar: este é sempre um questionar.
Quando questionamos o que conhecemos ( ou o que nos dizem que é importante
conhecer), e não apenas o aceitamos passivamente, dessa maneira pensamos.Quando
questionamos como as pessoas agem , também estamos pensando.E quando
questionamos o que sentimos e fazemos, também é pensando que o fazemos. Enfim, o pensar é uma
atividade que se diz e se faz em apenas um sentido. E este sentido é inesgotável, como o é a própria vida.O
conhecer depende da razão,o agir depende da vontade,mas o pensar não depende de
nenhuma faculdade específica: ele não se insere exclusivamente
nesta ou naquela faculdade, uma vez que o pensar se insere diretamente na
vida,em um modo de vida.O pensar é expressão de um todo, e nunca de apenas uma parte tomada isoladamente. É por isso que ele não é atividade que possa ser
comandada por apenas uma faculdade.
Por vezes, o conhecer
pode perder o seu caráter de processo e se congelar em metodologias, o mesmo
pode ocorrer com o agir, quando ele fica enrijecido pelos comandos morais ou
jurídicos. E mesmo o sentir pode se tornar algo parecido a um clichê
que se propaga de forma padronizada.Todavia,o pensar é sempre um processo, um
devir,uma potência.Segundo dizia Nietzsche,o pensar é como o vento do degelo que faz derreter as
geleiras mais enrijecidas: ele as torna novamente fluxo,rio, tempo, devir.
O pintor pensa por e com as imagens,o músico pensa por e com os sons;ele
pensa com o corpo, enfim. Manoel de Barros dizia que ele escreve com o corpo. Poesia é
para ser incorporada, e não apenas “mentada”,dizia ele. Os grandes cientistas
também foram, antes de tudo,pensadores, e assim inovaram a física, a
matemática, a biologia, etc. Eles não apenas conheceram: eles questionaram o que
era aceito como sendo já conhecido. Eles introjectaram vida no conhecer, assim
como Glauber introjectou vida na imagem, e Clarice introjectou vida na palavra,
e Rodin introjectou vida na pedra, e Tunga introjectou vida no aço com suas
instalações. Nada é refratário à vida quando se pensa.
A poética trata do fazer,ao
passo que a ética diz respeito ao agir,ao agir humano. A poética pensa as
obras, o “como” das obras; a ética
pensa sobretudo a liberdade:como agir sem ser de forma submissa?O extraordinário acontece quando o
agir e o fazer se agenciam,quando a ética e a poética contraem núpcias.Desse
agenciamento pode nascer a seguinte questão: e quando a obra a ser criada é a nossa
própria vida? Como devemos agir para produzirmos?Quando isso acontece,nasce o
desejo de que nossa vida seja , antes de tudo, uma invenção,uma criação,e não
apenas uma imitação ou clichê. Será que uma vida vale a pena ser vivida se
não for como uma obra de arte que se inventa e produz?
Foucault chamava de “estética
da existência” essa necessidade de fazermos de nossa vida uma obra de arte. Espinosa
nos fala de uma “poética da existência”. E dessa mesma poética nos falam Epicuro,Nietzsche,
Deleuze...E não são poucos os que não apenas falaram dessa poética da
existência,como também a fizeram e a fazem.
Vermeer,Alegoria da Pintura (1666 – 1667)
óleo sobre tela /120 × 100 cm
Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria
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