quarta-feira, 26 de março de 2014

poética da existência


Na ponta do meu lápis só tem nascimento.
Manoel de Barros

A alma humana possui atividades que lhe são imanentes.Estas atividades receberam o nome de “faculdades”. Há dois sentidos para a palavra faculdade. O primeiro deles é o mais conhecido: imaginação,razão,vontade,memória, sensibilidade, etc., são as principais faculdades nesse primeiro sentido mais comum e variado. Existe ainda um segundo sentido,no qual a palavra faculdade designa atividades mais específicas. Nesse segundo sentido da palavra faculdade temos o Conhecer, o Agir, o Sentir e o Fazer.Este segundo sentido da palavra faculdade determinará a relação das faculdades no primeiro sentido. Por exemplo, quando se trata do conhecer é a razão, ou a inteligência, a faculdade que terá a preponderância sobre as outras, pois o conhecer nasce quando a razão comanda ou subordina as outras faculdades. No agir,por sua vez, é a vontade a faculdade que comandará as outras.No sentir e no fazer a faculdade principal é a sensibilidade, que é a faculdade mais complexa e rica de todas,uma vez que ela está ligada intimamente à vida do corpo.
Algumas disciplinas nascerão dessa “especialização” do termo faculdade no segundo sentido. Do conhecer nascerá a epistemologia ou teoria do conhecimento.O agir ensejará duas disciplinas: a ética e a moral. Já o sentir  dará nascimento a duas disciplinas: a estética e a poética. A estética estuda sobretudo como a obra de arte nos afeta ( a questão do “gosto”nasce daí),ao passo que a poética estuda como a obra de arte é feita. A estética fala da arte a partir sobretudo do espectador,já a poética pensa a arte sob a perspectiva do criador. Uma coisa é a estética do teatro,outra coisa diferente é a sua poética. Muito se fala da estética da pintura, de tal maneira que todos querem ter uma opinião, um gosto,sobre o que um determinado pintor quis dizer,mas pouco se pensa sobre o "como”, isto é, acerca da maneira como  a obra foi feita, e sua feitura nada tem a ver com as opiniões do artista, tampouco este produziu sua obra para contentar o gosto da época. Ao contrário,muitas vezes uma obra sobrevive  à opinião demeritosa que recebera do gosto  estético que vigorava em determinada época :  a mesma obra que hoje leva multidões ao museu ou à galeria, em sua época a opinião ou o gosto estabelecido a condenava à morte ou à solidão...Vermeer,por exemplo,foi condenado pelo gosto artístico da época, que era aficionado pelas marinas e desprezava as cenas íntimas que Vermeer pintava.Para a alegria da arte, a obra sobrevive , embora muitas vezes não sobreviva às dificuldades aquele que produziu a obra.
 Como diz Espinosa, somente podemos compreender verdadeiramente uma coisa, não importa qual,  se compreendermos como essa coisa foi produzida,e não apenas entrando em contato com ela já feita .
Quando se trata do conhecer é a razão que comanda. No agir, é a vontade. E quando se trata do   sentir? O sentir é tão rico e vivo que, nele, não há exatamente comando de uma faculdade sobre as outras.O que há é uma relação heterogênea na qual cada faculdade no primeiro sentido,mesmo a razão, se descobre como criadora. Então, no sentir não é exatamente a imaginação que comanda,embora ela possa ter, e tem, um papel  decisivo.
Mas faltou falar de outra atividade da alma não mencionada: o pensar. O pensar não é a mesma coisa que o conhecer. Um traço expressivo caracteriza o pensar: este é sempre um questionar. Quando questionamos o que conhecemos ( ou o que nos dizem que é importante conhecer), e não apenas o aceitamos passivamente, dessa maneira pensamos.Quando questionamos como as pessoas agem , também estamos pensando.E quando questionamos o que sentimos e fazemos, também é  pensando que o fazemos. Enfim, o pensar é uma atividade que se diz e se faz em apenas um sentido. E este sentido é inesgotável, como o é a própria vida.O conhecer depende da razão,o agir depende da vontade,mas o pensar não depende de nenhuma faculdade específica: ele não se insere exclusivamente nesta ou naquela faculdade, uma vez que o pensar se insere diretamente na vida,em um modo de vida.O pensar é expressão de um todo, e nunca de apenas uma parte tomada isoladamente. É por isso que ele não é atividade que possa ser comandada por apenas uma faculdade.
Por vezes, o conhecer pode perder o seu caráter de processo e se congelar em metodologias, o mesmo pode ocorrer com o agir, quando ele fica enrijecido pelos comandos morais ou jurídicos. E mesmo o sentir pode se tornar algo parecido a   um clichê que se propaga de forma padronizada.Todavia,o pensar é sempre um processo, um devir,uma potência.Segundo dizia Nietzsche,o pensar é   como o vento do degelo que faz derreter as geleiras mais enrijecidas: ele as torna  novamente fluxo,rio, tempo, devir.
 O pintor pensa por e com as  imagens,o músico pensa por e com os sons;ele pensa com o corpo, enfim. Manoel de Barros dizia que ele escreve com o corpo. Poesia é para ser incorporada, e não apenas “mentada”,dizia ele. Os grandes cientistas também foram, antes de tudo,pensadores, e assim inovaram a física, a matemática, a biologia, etc. Eles não apenas conheceram: eles questionaram o que era aceito como sendo já conhecido. Eles introjectaram vida no conhecer, assim como Glauber introjectou vida na imagem, e Clarice introjectou vida na palavra, e Rodin introjectou vida na pedra, e Tunga introjectou vida no aço com suas instalações. Nada é refratário à vida quando se pensa.
A poética trata do fazer,ao passo que a ética diz respeito ao agir,ao agir humano. A poética pensa as obras, o “como” das obras; a ética  pensa sobretudo a liberdade:como agir sem ser de forma  submissa?O extraordinário acontece quando o agir e o fazer se agenciam,quando a ética e a poética contraem núpcias.Desse agenciamento pode  nascer a seguinte questão: e quando a obra a ser criada é a nossa própria vida? Como devemos agir para produzirmos?Quando isso acontece,nasce o desejo de que nossa vida seja , antes de tudo, uma invenção,uma criação,e não apenas uma imitação ou clichê.  Será que uma vida vale a pena ser vivida se não for como uma obra de arte que se inventa e produz?

Foucault chamava de “estética da existência” essa necessidade de fazermos de nossa vida uma obra de arte. Espinosa nos fala de uma “poética da existência”. E dessa mesma poética nos falam Epicuro,Nietzsche, Deleuze...E não são poucos os que não apenas falaram dessa poética da existência,como  também a fizeram e a fazem.



Vermeer,Alegoria da Pintura (1666 – 1667)
 óleo sobre tela /120 × 100 cm
Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria

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