À memória de Cláudio Ulpiano
(trechos do livro)
DA RECUSA DAS CRIANÇAS EM PENTEAR
O CABELO
A
natureza da alma é semelhante ao vento.
Anaximandro
O pensamento é tal qual um vento que bate desfazendo o penteado de nossas
certezas prontas, desarrumando o arrumado de nossa aparência prevista.
Talvez por isso mais próximo do pensador está a criança que se rebela
contra o pente e contra a mão que com ele se arma, querendo moldar-lhe o fluxo
solto dos cabelos conforme uma intenção disciplinadora.
A criança que foge, com o cabelo
em desalinho, de sua mãe com o pente em punho, assemelha-se ao pensador que
escapa , com seu pensamento, da maneira de pensar e sentir dominantes e das
formas acadêmicas de se fixar e dogmatizar o pensamento.
Enquanto que o adulto tem no seu
penteado-opinião a fixidez arrumada à maneira de uma identidade que se quer
fazer conhecer ( para os outros e, sobretudo, para si mesmo), a criança, ao
contrário, faz do não-penteado a imagem
inocente do seu cabelo-devir.
Para a pequena Maria Vitória.
O
POETA E O ECONOMISTA*
Ao
amigo Carlos
Cinco doentes terminais se encontravam numa enfermaria. Cada um em sua
maca, todos gravemente doentes. Havia nessa mesma enfermaria uma pequena janela, única
comunicação com o mundo exterior .
Diante da janela cabia apenas uma maca. E nesta maca ficava um dos doentes , a
olhar o dia inteiro para fora. Ele passava todo o tempo descrevendo , aos
outros pacientes, o que ele via através da janela. “Daqui vejo um grande mar
azul e sereno, posso também sentir o aroma de sua brisa. Vocês também conseguem
sentir?”, perguntava ele aos outros doentes.
Apenas um dos pacientes dizia que não conseguia sentir, os restantes
diziam que sim, que sentiam a brisa.
Prosseguia o paciente da janela: “Daqui também posso ouvir crianças
brincando numa pracinha arborizada. Algumas brincam de bola, outras soltam
pipa. Vocês também conseguem ouvi-las?” .Novamente o mesmo paciente que não
sentira a brisa também não conseguia ouvir o riso das crianças brincando. Os outros
três pacientes ouviam, mesmo que com muita dificuldade. Alguns recordavam de seus netos, outros de seus filhos. E todos
lembravam de si mesmos quando crianças. Assim, algo dentro deles sorria,
brincava novamente.
“Daqui ouço também, no pequeno coreto de uma praça, uma bandinha tocando
canções de amor, enquanto casais dançam celebrando a vida. Vocês conseguem
ouvir a música?”. O único que não conseguia ouvi-la era o mesmo paciente que
não conseguira sentir o aroma do mar e nem o riso das crianças. Os três
restantes, ao contrário, não só a ouviam, como também se lembravam de bailes
por eles vividos, onde cada um encontrou o amor de sua vida. Amor esse que ,
naquele momento, esperava por eles em casa.
Enfim, o paciente-rapsodo passava
o dia nessa tarefa de narração dos
simples acontecimentos do mundo, trazendo à presença dos pacientes aspectos
belos do real de cada dia. Essas
descrições os animavam profundamente. Tais palavras não só os mantinham vivos,
como também despertavam neles o ânimo de voltarem para a vida. Assim, eles
suportavam melhor a doença que lhes sobreveio ─ arranjando forças para , quem
sabe, vencê-la. Muitos dias se passaram
assim. E a vida, filtrada através da
percepção do paciente da janela, resplandecia novamente na memória e imaginação
dos pacientes ouvintes.
No entanto, o paciente da janela era o mais doente de
todos, não obstante a sua dedicação diária na descrição da vida que ele
presenciava através da janela. Numa certa manhã, nenhuma palavra vinha de sua
maca. Nunca mais viria nenhuma palavra : ele havia morrido. A maca perto da janela ficou então
vazia. Por esse motivo, os quatro
pacientes restantes queriam ir para esse lugar aparentemente privilegiado, para
assim poderem contemplar aquele belo mundo que
o paciente ausente lhes descrevera. Mas havia lugar para um paciente apenas.
Após deliberarem entre si, os pacientes chegaram à
conclusão de que o paciente mais grave dentre eles deveria ser o merecedor da
janela. O escolhido foi exatamente aquele que não conseguira sentir o que o
paciente-narrador descrevera da
existência. Todavia, ele poderia agora,
ele mesmo, testemunhar toda aquela beleza, para assim reparti-la com os demais
.
Contudo, quando o paciente foi colocado na janela, nada disse. Ficou
mudo, fechou os olhos. Novamente os abriu. Porém, não conseguia falar. Os outros pacientes
estavam ansiosos para saber se havia alguma
novidade no mar, se novas crianças
apareceram...
Mas a única coisa que o paciente lhes disse foi: “Nada posso ver, sentir
ou escutar. Pois em frente à janela não há mar, paisagem ou praça. Há apenas um
muro cinza. Há apenas um muro cinza”,
repetiu.
No dia seguinte, um dos pacientes morreu. Dois dias depois , um outro. Ao
fim de uma semana, apenas o paciente da janela sobrevivia. Mas ele também não
durou por muito mais tempo.
O primeiro paciente a ocupar a
janela e descrever o mundo foi, em
vida, um poeta. A seu pedido, seu corpo
foi cremado , e suas cinzas lançadas no mar que banhava a sua cidade
natal. Ele, ao contrário do paciente que
o sucedeu na janela, parecia conseguir ver
através do muro cinza, que era real também para ele. Mas o velho poeta
pôde de algum modo transpor o
muro cinza com os olhos de sua imaginação e desejo, fazendo brotar esse
mesmo olhar naqueles que o ouviam: estes também conseguiam sentir e viver, de algum modo, o mundo que as
palavras criavam. E o mundo visto através desses olhos também era, para eles
que o sentiam, real . Apenas um dos
pacientes não conseguia sentir. E exatamente este viu a “verdade”, a
objetividade, os fatos, nada mais que os fatos... “Diante da janela há apenas
um muro cinza”.
O segundo paciente que ocupou a janela foi , em vida, um economista. Administrou uma grande empresa
de investimentos. Temia riscos, cortava custos, maximizava lucros. Foi um
defensor intransigente do pragmatismo e da ciência objetivista.
Esperava-o um mausoléu esculpido em mármore.
O muro cinza representa tudo aquilo que nos rouba a visão do horizonte,
apequenando a nossa percepção das coisas e de nós mesmos. Nesses tempos de
indigência, o muro cinza está por toda parte: na mídia, na escola, na política,
enfim, diante de nossas janelas espirituais e existenciais.
Resgatando o sentido original
da poesia, como “poiésis”, isto é: “produção” , acreditamos ser a poesia o
elemento ao mesmo tempo didático e político para a produção de uma visão
libertadora que possa, malgrado o muro, possibilitar-nos uma
visão do horizonte.
* Essa história me foi contada. Tomei a liberdade de
apresentar mais uma versão dela, alterando vários elementos.
O NASCIMENTO DE BUDA
O homem
virtuoso nunca fica sozinho:
perto dele sempre se instalam bons vizinhos.
Confúcio
Preocupado com o futuro de seu filho que estava
prestes a nascer, o poderoso rei foi consultar-se com o vidente de seu reino.
Deste último, o rei ouviu o seguinte: “Meu senhor, o seu filho tem pela frente
dois caminhos que ele poderá trilhar: o caminho da direita ou o caminho da
esquerda. Se ele seguir o caminho da direita, ele terá muito poder, subjugará a
muitos e será o dono do mundo; se ele seguir o caminho da esquerda, apenas de
si mesmo ele será o dono . É o senhor
que deverá, agora, escolher o caminho que seu filho seguirá...”. Sem pensar muito, o rei disse:
“quero que ele tenha muito poder e seja o dono do mundo”. “Então, disse-lhe o
vidente, cuide para que ele jamais queira conhecer a si mesmo.”
Quando o filho do rei nasceu, este último resolveu
construir para o futuro príncipe um
imenso castelo. Dentro do castelo ele mandou instalar circos e teatros; equipou-o também com uma quantidade fabulosa
de servos e escravos, que realizariam de
imediato todas as vontades e desejos do futuro príncipe, preparando-lhe
banquetes e festas sem fim . E para que não faltasse realmente nada ao futuro
príncipe, o rei cuidou para que cerca de
duas mil esposas lhe fizessem
companhia .
O objetivo do rei era zelar para que se cumprissem as
palavras do vidente: o futuro príncipe deveria viver uma vida voltada única e
exclusivamente para as coisas exteriores, entregue ao prazer imediato
proporcionado pela fruição sem limites das coisas. Nunca ele perderia, jamais
ele conheceria o insucesso; apenas elogios ele ouviria, nunca críticas. Todos
seriam seus bajuladores e imitadores; ninguém seria mais famoso do que ele, e
muito menos ainda alguém lhe superaria em inteligência e beleza ; às suas
palavras, todos estariam de acordo: seu gosto seria a regra. Em tudo ele seria
o maior campeão. E foi desse modo que, dentro do castelo , o futuro dono do
mundo cresceu e viveu.
Todavia,quando
os trinta anos estavam próximos, houve então um dia no qual o jovem príncipe resolveu dar um passeio.
Seria a primeira vez que ele sairia dos limites de seu castelo, para assim ver
o mundo.
Mal a carruagem se afastou um pouco do castelo, uma
cena chamou a atenção do jovem príncipe. Andando com muitas dificuldades, um
homem se aproximou da estrada e estendeu a mão para o príncipe enquanto a carruagem passava. O homem era
espantosamente magro e aparentava
resignada aflição. A mão estendida era uma espécie de súplica endereçada à
carruagem do príncipe. Junto ao homem estava
uma esquálida mulher, que trazia nos braços uma pequena criança
igualmente esquelética. Assustado e sem nada compreender, o príncipe perguntou
ao cocheiro o que se passava com aquela família. Sem parar a carruagem, o
cocheiro então lhe respondeu: “meu caro príncipe, fique tranqüilo. O horror que
está diante de suas vistas jamais vitimará ao senhor, que tem muito poder e riqueza. Saiba que isto que lhe choca as vistas é a pobreza.”
Era a primeira vez em sua vida que o jovem príncipe via a pobreza. Embora
assustado com a visão da pobreza, ecoavam em sua mente as palavras
tranqüilizadoras do cocheiro. “A pobreza
nunca me pegará, pois tenho poder e riqueza”, repetia o jovem príncipe para si
mesmo.
Algumas semanas depois, novamente o príncipe manifestou o desejo de
passear fora dos limites de sua propriedade. Nas cercanias do castelo, uma nova
visão o aterrorizou. Ele viu estendido à beira da estrada um homem de pouco
mais de trinta anos. O aspecto do homem era horrível. Muito magra e pálida, sua
face transparecia dor e sofrimento. Enquanto a carruagem passava, o homem olhou
fixamente nos olhos do príncipe, que desviou o olhar daqueles olhos quase já
sem vida. Com fingida calma na voz, o príncipe perguntou ao cocheiro se aquele
homem era mais uma vítima da pobreza. Contudo, mantendo o rumo dos cavalos, o cocheiro lhe disse: “ meu
senhor, do que acaba de ver, o senhor merece manter precaução. Embora seja
difícil acontecer com o senhor o mesmo
fato, dessa desgraça , no entanto, nem mesmo o senhor está a salvo. Pois o senhor acaba de ver a doença. Mas fique
tranqüilo, o senhor é jovem, poderoso e saudável”.
A visão da doença o aterrorizou muito mais do que a pobreza, embora ambas
fossem de uma fealdade monstruosa. Da
pobreza ele estava a salvo, mas não da doença. Pela primeira vez na vida, ele
viu o limite de seu poder, pois uma inimiga poderosa se deu a conhecer: a
doença.
Alguns dias depois, um novo passeio aconteceu. Não muito longe do castelo,
uma outra cena chamou a atenção do
príncipe. Movendo-se mais lentamente que uma tartaruga, e apoiando-se em um
trêmulo bastão, seguia junto à estrada um estranho homem . Caíram de sua cabeça
quase todos os cabelos, e os poucos que restavam pareciam estar cobertos de
neve, embora não nevasse ali; sua coluna estava arqueada como se um grande
peso o homem carregasse ,mas ele nada
carregava. Sua pele estava toda talhada, como se alguém o castigasse com
navalhadas,mas onde estava o seu impiedoso carrasco? Impressionado com tal cena
, o príncipe perguntou ao cocheiro se aquele homem era vítima da pobreza ou da
doença. Parando a carruagem, o cocheiro olhou para o príncipe e falou: “ meu
caro príncipe, o que o senhor vê é o último porto ao qual todos aportarão um
dia, inclusive o senhor. O que o senhor vê nesse homem é a velhice: os cabelos
dele estão brancos porque o inverno da existência chegou-lhe para nunca mais ir
embora; suas costas estão curvadas porque ele carrega o peso dos anos; e aquelas marcas que parecem navalhadas, na
verdade são as rugas feitas pelo carrasco-tempo”. “ E depois deste porto, o que
vem?” , perguntou-lhe o príncipe. “Depois deste porto, meu príncipe, vem a
morte. E antes que o senhor me pergunte o que é a morte, eu já lhe respondo: a
morte é o fim. E dela ninguém escapa.”
Ao retornar para o castelo, pela primeira vez em sua vida o príncipe
ficou sozinho em seu quarto. O castelo , de imenso e poderoso que era antes,
agora ele lhe parecia tão pequeno e sem
razão. Dir-se-ia que ele procurava algo dentro de si, embora nem ao menos ele
soubesse o que esse algo era e nem porque procurá-lo.
Alguns dias depois, o príncipe quis passear novamente. Ele pediu para que
o cocheiro tomasse uma pequena estrada
transversal à via principal. E foi nessa pequena estrada que ele se
deparou com a cena mais impressionante de todas. Ele viu um
homem que embora estivesse vestido de maneira simples e não carregasse pertences, tal homem não
aparentava ser vítima da pobreza; o
príncipe reparou também que não obstante a magreza aparente, aquele homem nada
tinha de doente; e o mais estranho:
embora aparentasse ter vivido muito, os anos não lhe pesavam nas costas e o
sofrimento e a solidão não lhe navalharam fundo as faces. “Estranho aquele
homem”, disse o príncipe ao cocheiro. “Quem ele é?”, perguntou em seguida.
“Aquele homem, meu príncipe, é um sábio”. Inquieto, o príncipe prosseguia: “E
como ele fez para vencer a pobreza, a doença e a velhice? Ele não teme a
morte?”. “Essas perguntas, meu príncipe, somente ele lhe poderá respondê-las”.
O príncipe desceu então da carruagem e foi atrás do sábio. Ao alcançá-lo, o jovem príncipe
interpelou o homem e, sem demora, manifestou-lhe seu medo da pobreza, da doença
, da velhice e , sobretudo, da morte. Mal escondendo seu desespero, o jovem
príncipe disse que o mundo era estúpido
e sem sentido ; por fim,
amaldiçoou o dia em que resolvera
sair, pela primeira vez, de seu castelo.
Sem perder a tranqüilidade, o sábio disse ao príncipe: “ meu jovem,
continuas ainda preso ao teu castelo, embora penses que conheceste o mundo .
Nesse castelo ao qual me refiro, és não o príncipe, mas o atormentado
prisioneiro. Pois o castelo que te aprisionas
é o teu próprio ego. Viveste até agora apenas nos limites desse castelo,
alienado em tuas fantasias de prazer e posse,
acorrentado a ti mesmo. Quando
olhas para o mundo a partir do teu
castelo , vês apenas insegurança, desordem e desimportância, pois assim te
parece tudo aquilo que foge ao teu poder, que tu já sabes pequeno. É dentro
deste castelo, e não fora, que se encontram a pobreza, a doença, a velhice e a
morte. Liberta-te desse castelo, liberta-te de ti mesmo, e aprenderás que a
única coisa que escraviza é o medo. Viveste até aqui não em função de ti mesmo,
como erradamente pensas, mas na
cegueira da ignorância do que tu realmente és . Vejas o mundo a partir do
próprio mundo, e não a partir do teu castelo, pois somente assim tu te
libertarás da cegueira que tu chamavas de visão. Se fizeres dos teus olhos os
olhos do mundo, verás o teu ego não mais como realeza, mas como prisão. ”
Nunca mais o príncipe retornou ao castelo que seu pai lhe dera. E pela
primeira vez ele saía do castelo do seu ego. Liberto daí, pela primeira vez ele
viu de fato o mundo. E estes olhos que viram o mundo nunca mais se fecharam,
mesmo depois de sua morte. Pois esses olhos
permanecem abertos em todos aqueles que buscam vencer as
paredes de seu próprio castelo.
O CACTO
A planta de maior raiz é o cacto. Geralmente, a extensão de sua raiz chega a nove ou dez vezes o
tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão. Quem se fia apenas no
cacto visível, e pensa que a parte que
vê é todo o ser do cacto, por certo este desconhece a outra parte, bem maior, que
cresce invisível sondando o subsolo da terra. O cacto assim se expande para a
profundidade porque ele busca aquilo do qual a superfície está carente.
O cacto tem raízes profundas
porque ele procura , no seio da terra, veios de água. Pois no deserto que
existe em torno do cacto a água é o bem mais raro.Desse modo, o cacto aprende a
procurar no fundo da terra o bem que o céu nega ao deserto. E ao sugar do
coração da terra o líquido precioso que outrora pertencera ao céu, forma o
cacto dentro de si um mundo que somente as nuvens e os pássaros que voam alto
podem conhecer e provar.
E devido ao esforço que lhe custa obter o bem valioso e raro, e visando
protegê-lo, o cacto adorna-se com uma
aparência áspera e rude ¾ em relação a qual os homens, por ignorarem o que o
cacto guarda, procuram manter distância.
Mas aqueles que não
temerem a casca que envolve
e guarda o precioso tesouro, que com tanto esforço o cacto conquistou
para si, estes poderão encontrar , dentro do cacto, o valioso bem que lhes
matará a sede. E dessa generosidade só é capaz
aquele que, com coragem e paciência para vencer o deserto, sonda o
ventre da terra para aí encontrar ,
oculto, o maior bem do céu.
DIFERENÇA E REPETIÇÃO
a Gilles Deleuze
Repetir repetir - até ficar
diferente.
Manoel de Barros
Repetir não é reproduzir ou imitar.
Repetir e imitar são atividades que
diferem em natureza. Na repetição, dois elementos encontram-se presentes: o
repetido e o meio onde a repetição é levada a efetuar-se, isto é, a diferença. Desse modo, toda repetição
tem como condição uma diferença, pois é nessa última que o repetido devém o motivo da repetição. Na imitação ou
reprodução, ao contrário, a diferença é anulada ou diminuída em sua
positividade, sendo então considerada menos eminente ( moral e ontologicamente)
que o imitado ou reproduzido . Este
último é elevado à condição de Modelo para as imitações que o tomam como referência ou Fundamento.
A condição para que isso funcione
desse modo repousa na idéia de que ele, o Modelo, não seja reprodução ou
imitação de nada que lhe seja preexistente. O Modelo existe em si, não tendo
sido criado ou inventado. Ele é o critério primeiro de toda aferição de verdade
e objetividade. E é a partir da
eminência do Modelo que se distribuem as hierarquias entre as imitações: a melhor
imitação , a mais elevada, é aquela que mais se aproxima do Modelo.
“Aproximar-se do Modelo” significa: “a ele assemelhar-se”. O Modelo torna-se então a Identidade
Referencial à qual toda imitação procura assemelhar-se. E as melhores imitações
ou reproduções, aquelas que se encontram no ápice da hierarquia, são exatamente
aquelas cuja diferença se encontra no
grau mais baixo de potência ou afirmação de sua respectivas singularidades ou
perspectivas. Todo Modelo só se propaga com a condição de reduzir as diferença
a zero.
Ocorre na repetição que a diferença torna-se o elemento genético e
positivo que confere à repetição um critério seletivo que não é por eminência
hierárquica, mas por potência inovadora. Repetir é inovar, isto é, estender
diferencialmente a potência daquilo mesmo que se repete. Pois, na repetição, o
próprio repetido é já repetição de um outro repetido que também é repetição,
isto é, diferença. Só a diferença tem a potência de se repetir em outras
diferenças . Só a diferença é o verdadeiro Modelo a servir de plano aos agenciamentos
afirmadores da multiplicidade.
Para a repetição, a regra é a diferença. A maçã de Cézanne , por exemplo, não imita ou reproduz a maçã
percebida, mas a repete a partir de uma diferença que se eterniza ao tornar-se visível por intermédio das tintas.
Estas últimas tornam-se maçã ao mesmo
tempo em que a maçã devém tinta, isto é, coincide com a própria perspectiva que
lhe acrescenta , por sensação, uma diferença. Sendo que a maçã pintada não
existe fora da perspectiva que a produziu ( e expressa, diferencialmente, a
maçã efetiva que nela se repete).
Toda repetição é um devir do repetido. E o próprio repetido é já um
devir. Toda repetição é um devir do
repetido, no qual se acrescenta ( ao
repetido) uma diferença que o faz ser sua própria perspectiva.
A SEMENTE
Sonhei
que eu estava sendo operado do coração. O médico que me operava
tinha a cara do Fernando Pessoa. Tudo me levava a crer que era realmente ele. O
mesmo chapéu , o mesmo bigode , os mesmos olhos múltiplos atrás da vidraça dos
óculos.
Após abrir
meu peito e retirar o coração, o poeta-médico me disse que aquela parte de mim
estava consideravelmente pesada, e que era preciso extrair do meu coração o
excesso de peso. Assenti com o poeta, demonstrando minha concordância e confiança no poder da
poesia em intervir num coração adoecido.
Então, o poeta-médico foi extraindo do coração coisas que pareciam ser não sangue ou
músculo, mas sim algumas palavras que ouvi e que entraram em mim como balas de
revólver; retirou também o rosto
de pessoas que eu precisava esquecer, principalmente daquelas
que eu já pensava ter esquecido, mas que ainda permaneciam em mim, sem que eu
soubesse ; tirou situações vividas no
limite da honra; tirou também planos desfeitos de um futuro em comum ; jogou
fora decepções, ingratidões... e o que
mais o adoecia: saudade.
Depois de extrair tudo isso
que me pesava o coração, o poeta se preparava então para recolocá-lo novamente
no meu peito. Quando olhei para o meu coração na mão do poeta, fiquei surpreso.
Pois o coração estava tão pequeno que eu
pensava que , daquele tamanho, ele não seria forte suficiente para me fazer de novo vivo.
Porém, recolocando o coração no
vazio do peito, o poeta por fim me disse: “ele está assim pequeno porque do seu
velho coração retirei o inessencial e
deixei apenas a semente: dela
brotará um coração novo, pois a envolvi com o adubo-tempo”.
HORÓSCOPO
Diante de minha janela existe uma pracinha. Nela, mães
passeiam com seus bebês em carrinhos. Reparei que quase todos os carrinhos
possuem um tipo de cobertura removível, que permite ao bebê uma visão completa
do céu. Fiquei pensando no impacto da
primeira imagem do céu sobre o
espírito da criança ao contemplá-la. Como um espelho que produz aquele mesmo
que nele se vê, imaginei as criancinhas recebendo aquele infinito dentro de si
mesmas, de tal maneira que em suas pequenas almas algo do céu se depositasse, e
aí ficasse como caráter a crescer.
O CÉU DE SÊNECA.Os nascidos em abril e maio vêem um
céu de um azul calmo e transparente, em cuja profundidade um sol em pontilhado
derrama seu amarelo sem crispar ou se intumescer. Um céu como véu transparente,
que esconde-mostra o mistério de viver. Sendo assim, a imagem de tal céu
imprime um caráter contemplativo e sereno àqueles que nascem sob seu cobertor
sem margens.
O CÉU DE SHOPENHAUER.Os nascidos em junho ou julho
vêem um céu espesso, cinza compacto,um céu de inverno, que empurra o espírito
para dentro de si mesmo e de sua caverna. Instalados dentro de si mesmos, os
nascidos sob tal céu tendem à introspecção e ao exame pessimista dos fatos ¾ incluindo aí os fatos da
política e os do amor.
O CÉU DE EPICURO.Os nascidos em setembro vêem um céu
onde tudo se prepara para nascer: céu de primavera. Um otimismo inconsciente,
tal como aquele que impele o embrião a crescer,
impregna-lhes as retinas. E o mundo , envolto em um mistério por descobrir, abre, àqueles que o souberem ler,
o seu livro-natureza ¾ cujo papel, letras e sentido narram histórias de amizade e amor.
O CÉU DE NIETZSCHE. Os nascidos em novembro e dezembro
vêem um céu em chamas, de um sol imperador. São almas em busca de seus extremos
e ultrapassamentos, a brincar de equilibrar-se sobre a linha de seus próprios
limites. São almas sempre preparadas
para saltar por sobre a linha, atraídas pelo abismo, pelo excesso e pelo seu
mais adorado Deus: o risco.
MEDICINA DA ALMA
Sêneca, o mestre estóico, recebeu a visita de seu
jovem discípulo. Este vinha decidido a comunicar ao mestre a sua despedida da
vida filosófica. O discípulo considerava
que a filosofia não servia para ele. Para justificar sua decisão, ele confessou
ao mestre que a filosofia estava conduzindo-o a enganar a si mesmo: “quando
vejo alguém se banqueteando em uma mesa farta”, explicava o discípulo, “sinto vergonha do almoço que tive, tão
simples e insignificante ele era, em comparação com tal banquete. Isso me faz
sentir inveja daquele que se farta no banquete, pois na verdade eu também
queria poder ter a mesma coisa. Depois , quando vejo alguém com belas roupas e
carruagens majestosas, finjo que não desejo essas coisas. Contudo, corrói-me
por dentro a inveja, acabo por ficar infeliz. Pois queria andar também assim.
Quando vejo o poder e a fama de um
senador, cuja mão todos querem beijar
na esperança de obter favores, sinto
inveja desse prestígio . No entanto, a filosofia me diz para não fazer dessas
coisas a finalidade de minha vida. Por isso, coloquei num prato a filosofia e, no outro, aquilo que
a maioria deseja ( fama, poder ,
riqueza), e a balança de minha alma
pendeu para este último lado. Venho então lhe dizer que não quero mais saber da
filosofia.”
“Meu caro jovem...”, disse Sêneca, “seu maior erro é
pensar que eu sou diferente de você. Por vezes, quando o inimigo me encurrala,
quase cedo também à idéia de que é mais útil estar de acordo com a opinião da
maioria do que com a de um só, mesmo que esse ‘um só’ seja eu mesmo. Contudo,
saiba que a filosofia não é feito uma vacina que se toma uma única vez e
fica-se por toda a vida livre da doença ( e
essa doença, o inimigo que mencionei, tem vários nomes: ignorância,
inveja, intolerância, mesquinhez , superficialidade, espírito de rebanho... ).
Ao contrário, a filosofia é como
uma pílula que deve ser tomada todos os dias”.
CUBRA O PONTILHADO E VEJA A FIGURA QUE SE FORMA
As palavras divinas estão escritas em uma língua que ninguém jamais
conseguirá decifrar ─ sobretudo os lógicos, sobretudo os teólogos, sobretudo os
alfabetizados na língua do poder.
Aos tolos, as palavras divinas parecem profecias; e os mais tolos ainda
as tomam como Leis.Para as crianças, as únicas que as entendem, as palavras
divinas são traços em pontilhado dos quais se aprende o sentido quando,
inocentes de toda culpa e ressentimento,
os cobrimos com o lápis do amor
na mão. Finda a brincadeira de cobrir os dizeres divinos,o que se vê não
são textos, frases ou cânones.Vêem-se apenas infantis desenhos da imaginação de
um Deus também criança: um barco no mar voltando carregado de peixes;uma pipa
colorida que um menino empina; um casal de idosos passeando de mãos dadas; um céu cheio de estrelas emoldurando uma
praça cheia de gente; e, pairando acima de tudo, o caos e o cosmos
reconciliados, abraçando-se numa dança.
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