sábado, 8 de março de 2014

ensaios de pop'filosofia 2




           


À memória de Cláudio Ulpiano

(trechos do livro)



                DA RECUSA DAS CRIANÇAS EM PENTEAR O CABELO


     A natureza da alma é semelhante ao vento.

                                       Anaximandro


O pensamento é tal qual um vento que bate desfazendo o penteado de nossas certezas prontas, desarrumando o arrumado de nossa aparência prevista.
Talvez por isso mais próximo do pensador está a criança que se rebela contra o pente e contra a mão que com ele se arma, querendo moldar-lhe o fluxo solto dos cabelos conforme uma intenção disciplinadora.
A criança  que foge, com o cabelo em desalinho, de sua mãe com o pente em punho, assemelha-se ao pensador que escapa , com seu pensamento, da maneira de pensar e sentir dominantes e das formas acadêmicas de se fixar e dogmatizar o pensamento. 
Enquanto que o adulto  tem no seu penteado-opinião a fixidez arrumada à maneira de uma identidade que se quer fazer conhecer ( para os outros e, sobretudo, para si mesmo), a criança, ao contrário, faz do não-penteado a imagem  inocente do seu cabelo-devir.

                                                                    Para a pequena Maria Vitória.




                                    O POETA E O ECONOMISTA*
                                                            Ao amigo Carlos

Cinco doentes terminais se encontravam numa enfermaria. Cada um em sua maca, todos gravemente doentes. Havia nessa mesma  enfermaria uma pequena janela, única comunicação com o mundo  exterior . Diante da janela cabia apenas uma maca. E nesta maca ficava um dos doentes , a olhar o dia inteiro para fora. Ele passava todo o tempo descrevendo , aos outros pacientes, o que ele via através da janela. “Daqui vejo um grande mar azul e sereno, posso também sentir o aroma de sua brisa. Vocês também conseguem sentir?”, perguntava ele aos outros doentes.  Apenas um dos pacientes dizia que não conseguia sentir, os restantes diziam que sim, que sentiam a brisa.
Prosseguia o paciente da janela: “Daqui também posso ouvir crianças brincando numa pracinha arborizada. Algumas brincam de bola, outras soltam pipa. Vocês também conseguem ouvi-las?” .Novamente o mesmo paciente que não sentira a brisa também não conseguia ouvir o riso das crianças brincando. Os outros três pacientes ouviam, mesmo que com muita dificuldade. Alguns recordavam  de seus netos, outros de seus filhos. E todos lembravam de si mesmos quando crianças. Assim, algo dentro deles sorria, brincava novamente.
“Daqui ouço também, no pequeno coreto de uma praça, uma bandinha tocando canções de amor, enquanto casais dançam celebrando a vida. Vocês conseguem ouvir a música?”. O único que não conseguia ouvi-la era o mesmo paciente que não conseguira sentir o aroma do mar e nem o riso das crianças. Os três restantes, ao contrário, não só a ouviam, como também se lembravam de bailes por eles vividos, onde cada um encontrou o amor de sua vida. Amor esse que , naquele momento, esperava por eles em casa.
Enfim, o paciente-rapsodo  passava o dia nessa tarefa de narração  dos simples acontecimentos do mundo, trazendo à presença dos pacientes aspectos belos do real de cada dia.  Essas descrições os animavam profundamente. Tais palavras não só os mantinham vivos, como também despertavam neles o ânimo de voltarem para a vida. Assim, eles suportavam melhor a doença que lhes sobreveio ─ arranjando forças para , quem sabe,  vencê-la. Muitos dias se passaram assim. E a vida, filtrada  através da percepção do paciente da janela, resplandecia novamente na memória e imaginação dos pacientes ouvintes.
No entanto, o paciente da janela era o mais doente de todos, não obstante a sua dedicação diária na descrição da vida que ele presenciava através da janela. Numa certa manhã, nenhuma palavra vinha de sua maca. Nunca mais viria nenhuma palavra : ele havia  morrido. A maca perto da janela ficou então vazia. Por esse motivo,  os quatro pacientes restantes queriam ir para esse lugar aparentemente privilegiado, para assim poderem contemplar aquele belo mundo que  o paciente ausente lhes descrevera. Mas havia  lugar para um paciente apenas.
Após deliberarem entre si, os pacientes chegaram à conclusão de que o paciente mais grave dentre eles deveria ser o merecedor da janela. O escolhido foi exatamente aquele que não conseguira sentir o que o paciente-narrador descrevera  da existência. Todavia,  ele poderia agora, ele mesmo, testemunhar toda aquela beleza, para assim reparti-la com os demais .
Contudo, quando o paciente foi colocado na janela, nada disse. Ficou mudo, fechou os olhos. Novamente os abriu. Porém,  não conseguia falar. Os outros pacientes estavam ansiosos para saber se havia alguma  novidade no mar, se novas crianças  apareceram...
Mas a única coisa que o paciente lhes disse foi: “Nada posso ver, sentir ou escutar. Pois em frente à janela não há mar, paisagem ou praça. Há apenas um muro cinza. Há apenas um  muro cinza”, repetiu.
No dia seguinte, um dos pacientes morreu. Dois dias depois , um outro. Ao fim de uma semana, apenas o paciente da janela sobrevivia. Mas ele também não durou  por muito mais  tempo.
O  primeiro paciente a ocupar a janela e descrever o mundo  foi, em vida,  um poeta. A seu pedido, seu corpo foi cremado , e  suas cinzas  lançadas no mar que banhava a sua cidade natal.  Ele, ao contrário do paciente que o sucedeu na janela, parecia conseguir ver  através do muro cinza, que era real também para ele. Mas o velho poeta pôde  de algum modo  transpor o  muro cinza com os olhos de sua imaginação e desejo, fazendo brotar esse mesmo olhar naqueles que o ouviam: estes também conseguiam sentir  e viver, de algum modo, o mundo que as palavras criavam. E o mundo visto através desses olhos também era, para eles que o  sentiam, real . Apenas um dos pacientes não conseguia sentir. E exatamente este viu a “verdade”, a objetividade, os fatos, nada mais que os fatos... “Diante da janela há apenas um muro cinza”.
O segundo paciente que ocupou a janela foi , em vida,  um economista. Administrou uma grande empresa de investimentos. Temia riscos, cortava custos, maximizava lucros.  Foi um  defensor intransigente do pragmatismo e da ciência objetivista. Esperava-o um mausoléu esculpido em mármore.
O muro cinza representa tudo aquilo que nos rouba a visão do horizonte, apequenando a nossa percepção das coisas e de nós mesmos. Nesses tempos de indigência, o muro cinza está por toda parte: na mídia, na escola, na política, enfim, diante de nossas janelas espirituais e existenciais.
Resgatando o sentido original da poesia, como “poiésis”, isto é: “produção” , acreditamos ser a poesia o elemento ao mesmo tempo didático e político para a produção de uma visão libertadora que possa, malgrado o muro, possibilitar-nos  uma  visão do horizonte.






* Essa história me foi contada. Tomei a liberdade de apresentar mais uma versão dela, alterando vários elementos.





                                               O NASCIMENTO DE BUDA


  

                                       O homem virtuoso nunca fica sozinho:
                                                    perto dele sempre se instalam bons vizinhos.

                                                                                       Confúcio



Preocupado com o futuro de seu filho que estava prestes a nascer, o poderoso rei foi consultar-se com o vidente de seu reino. Deste último, o rei ouviu o seguinte: “Meu senhor, o seu filho tem pela frente dois caminhos que ele poderá trilhar: o caminho da direita ou o caminho da esquerda. Se ele seguir o caminho da direita, ele terá muito poder, subjugará a muitos e será o dono do mundo; se ele seguir o caminho da esquerda, apenas de si mesmo ele será o dono  . É o senhor que deverá, agora, escolher o caminho que seu filho   seguirá...”. Sem pensar muito, o rei disse: “quero que ele tenha muito poder e seja o dono do mundo”. “Então, disse-lhe o vidente, cuide para que ele jamais queira conhecer a si mesmo.”
Quando o filho do rei nasceu, este último resolveu construir para o futuro príncipe  um imenso castelo. Dentro do castelo ele mandou instalar circos e teatros;  equipou-o também com uma quantidade fabulosa de servos e escravos, que  realizariam de imediato todas as vontades e desejos do futuro príncipe, preparando-lhe banquetes e festas sem fim . E para que não faltasse realmente nada ao futuro príncipe, o rei cuidou para que cerca de  duas mil esposas  lhe fizessem companhia  .
O objetivo do rei era zelar para que se cumprissem as palavras do vidente: o futuro príncipe deveria viver uma vida voltada única e exclusivamente para as coisas exteriores, entregue ao prazer imediato proporcionado pela fruição sem limites das coisas. Nunca ele perderia, jamais ele conheceria o insucesso; apenas elogios ele ouviria, nunca críticas. Todos seriam seus bajuladores e imitadores; ninguém seria mais famoso do que ele, e muito menos ainda alguém lhe superaria em inteligência e beleza ; às suas palavras, todos estariam de acordo: seu gosto seria a regra. Em tudo ele seria o maior campeão. E foi desse modo que, dentro do castelo , o futuro dono do mundo  cresceu e viveu.
 Todavia,quando os trinta anos estavam próximos, houve então um dia no qual  o jovem príncipe resolveu dar um passeio. Seria a primeira vez que ele sairia dos limites de seu castelo, para assim ver o mundo.
Mal a carruagem se afastou um pouco do castelo, uma cena chamou a atenção do jovem príncipe. Andando com muitas dificuldades, um homem se aproximou da estrada e estendeu a mão para o príncipe  enquanto a carruagem passava. O homem era espantosamente  magro e aparentava resignada aflição. A mão estendida era uma espécie de súplica endereçada à carruagem do príncipe. Junto ao homem estava  uma esquálida mulher, que trazia nos braços uma pequena criança igualmente esquelética. Assustado e sem nada compreender, o príncipe perguntou ao cocheiro o que se passava com aquela família. Sem parar a carruagem, o cocheiro então lhe respondeu: “meu caro príncipe, fique tranqüilo. O horror que está diante de suas vistas jamais vitimará ao senhor, que  tem muito poder e riqueza.  Saiba que isto que lhe choca as vistas  é a pobreza.”
Era a primeira vez em sua vida que o jovem príncipe via a pobreza. Embora assustado com a visão da pobreza, ecoavam em sua mente as palavras tranqüilizadoras do cocheiro.  “A pobreza nunca me pegará, pois tenho poder e riqueza”, repetia o jovem príncipe para si mesmo. 
Algumas semanas depois, novamente o príncipe manifestou o desejo de passear fora dos limites de sua propriedade. Nas cercanias do castelo, uma nova visão o aterrorizou. Ele viu estendido à beira da estrada um homem de pouco mais de trinta anos. O aspecto do homem era horrível. Muito magra e pálida, sua face transparecia dor e sofrimento. Enquanto a carruagem passava, o homem olhou fixamente nos olhos do príncipe, que desviou o olhar daqueles olhos quase já sem vida. Com fingida calma na voz, o príncipe perguntou ao cocheiro se aquele homem era mais uma vítima da pobreza. Contudo, mantendo o  rumo dos cavalos, o cocheiro lhe disse: “ meu senhor, do que acaba de ver, o senhor merece manter precaução. Embora seja difícil  acontecer com o senhor o mesmo fato, dessa desgraça , no entanto, nem mesmo o senhor está a salvo. Pois  o senhor acaba de ver a doença. Mas fique tranqüilo, o senhor é jovem, poderoso e saudável”.
A visão da doença o aterrorizou muito mais do que a pobreza, embora ambas fossem de uma fealdade monstruosa.  Da pobreza ele estava a salvo, mas não da doença. Pela primeira vez na vida, ele viu o limite de seu poder, pois uma inimiga poderosa se deu a conhecer: a doença.
Alguns dias depois, um novo passeio aconteceu. Não muito longe do castelo, uma outra cena  chamou a atenção do príncipe. Movendo-se mais lentamente que uma tartaruga, e apoiando-se em um trêmulo bastão, seguia junto à estrada um estranho homem . Caíram de sua cabeça quase todos os cabelos, e os poucos que restavam pareciam estar cobertos de neve, embora não nevasse ali; sua coluna estava arqueada como se um grande peso  o homem carregasse ,mas ele nada carregava. Sua pele estava toda talhada, como se alguém o castigasse com navalhadas,mas onde estava o seu impiedoso carrasco? Impressionado com tal cena , o príncipe perguntou ao cocheiro se aquele homem era vítima da pobreza ou da doença. Parando a carruagem, o cocheiro olhou para o príncipe e falou: “ meu caro príncipe, o que o senhor   vê é  o último porto ao qual todos aportarão um dia, inclusive o senhor. O que o senhor vê nesse homem é a velhice: os cabelos dele estão brancos porque o inverno da existência chegou-lhe para nunca mais ir embora; suas costas estão curvadas porque ele carrega o peso dos anos;  e aquelas marcas que parecem navalhadas, na verdade são as rugas feitas pelo carrasco-tempo”. “ E depois deste porto, o que vem?” , perguntou-lhe o príncipe. “Depois deste porto, meu príncipe, vem a morte. E antes que o senhor me pergunte o que é a morte, eu já lhe respondo: a morte é o fim. E dela ninguém escapa.”
Ao retornar para o castelo, pela primeira vez em sua vida o príncipe ficou sozinho em seu quarto. O castelo , de imenso e poderoso que era antes, agora ele lhe   parecia tão pequeno e sem razão. Dir-se-ia que ele procurava algo dentro de si, embora nem ao menos ele soubesse o que esse algo era e nem porque procurá-lo.
Alguns dias depois, o príncipe quis passear novamente. Ele pediu para que o cocheiro tomasse uma pequena estrada  transversal à via principal. E foi nessa pequena estrada que ele se deparou com  a cena  mais impressionante de todas. Ele viu um homem que embora estivesse vestido de maneira simples  e não carregasse pertences, tal homem não aparentava ser vítima da pobreza;  o príncipe reparou também que não obstante a magreza aparente, aquele homem nada tinha de doente;   e o mais estranho: embora aparentasse ter vivido muito, os anos não lhe pesavam nas costas e o sofrimento e a solidão não lhe navalharam fundo as faces. “Estranho aquele homem”, disse o príncipe ao cocheiro. “Quem ele é?”, perguntou em seguida. “Aquele homem, meu príncipe, é um sábio”. Inquieto, o príncipe prosseguia: “E como ele fez para vencer a pobreza, a doença e a velhice? Ele não teme a morte?”. “Essas perguntas, meu príncipe, somente ele lhe poderá respondê-las”.
O príncipe desceu então da carruagem e foi atrás  do sábio. Ao alcançá-lo, o jovem príncipe interpelou o homem e, sem demora, manifestou-lhe seu medo da pobreza, da doença , da velhice e , sobretudo, da morte. Mal escondendo seu desespero, o jovem príncipe disse que o mundo era estúpido  e sem sentido ; por fim,  amaldiçoou  o dia em que resolvera sair, pela primeira vez,  de seu castelo.
Sem perder a tranqüilidade, o sábio disse ao príncipe: “ meu jovem, continuas ainda preso ao teu castelo, embora penses que conheceste o mundo . Nesse castelo ao qual me refiro, és não o príncipe, mas o atormentado prisioneiro. Pois o castelo que te aprisionas  é o teu próprio ego. Viveste até agora apenas nos limites desse castelo, alienado em tuas fantasias de prazer e posse,  acorrentado a  ti mesmo. Quando olhas para o mundo  a partir do teu castelo , vês apenas insegurança, desordem e desimportância, pois assim te parece tudo aquilo que foge ao teu poder, que tu já sabes pequeno. É dentro deste castelo, e não fora, que se encontram a pobreza, a doença, a velhice e a morte. Liberta-te desse castelo, liberta-te de ti mesmo, e aprenderás que a única coisa que escraviza é o medo. Viveste até aqui não em função de ti mesmo, como erradamente pensas,  mas na cegueira  da ignorância do que tu  realmente és . Vejas o mundo a partir do próprio mundo, e não a partir do teu castelo, pois somente assim tu te libertarás da cegueira que tu chamavas de visão. Se fizeres dos teus olhos os olhos do mundo, verás o teu ego não mais como realeza, mas como prisão. ”
Nunca mais o príncipe retornou ao castelo que seu pai lhe dera. E pela primeira vez ele saía do castelo do seu ego. Liberto daí, pela primeira vez ele viu de fato o mundo. E estes olhos que viram o mundo nunca mais se fecharam, mesmo depois de sua morte. Pois esses olhos  permanecem abertos em todos aqueles que buscam  vencer as   paredes de seu próprio castelo.



                                                  O CACTO


A planta de maior raiz é o cacto. Geralmente, a extensão  de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão. Quem se fia apenas no cacto visível, e pensa que a parte  que vê é todo o ser do cacto, por certo este desconhece a outra parte, bem maior, que cresce invisível sondando o subsolo da terra. O cacto assim se expande para a profundidade porque ele busca aquilo do qual a superfície está carente.
O cacto tem raízes  profundas porque ele procura , no seio da terra, veios de água. Pois no deserto que existe em torno do cacto a água é o bem mais raro.Desse modo, o cacto aprende a procurar no fundo da terra o bem que o céu nega ao deserto. E ao sugar do coração da terra o líquido precioso que outrora pertencera ao céu, forma o cacto dentro de si  um mundo que  somente as nuvens e os pássaros que voam alto podem conhecer e provar.
E devido ao esforço que lhe custa obter o bem valioso e raro, e visando protegê-lo, o cacto adorna-se com uma  aparência áspera e rude ¾ em relação a qual os homens, por ignorarem o que o cacto guarda, procuram manter distância. 
Mas aqueles que não temerem  a casca  que envolve  e guarda o precioso tesouro, que com tanto esforço o cacto conquistou para si, estes poderão encontrar , dentro do cacto, o valioso bem que lhes matará a sede. E dessa generosidade só é capaz   aquele que, com coragem e paciência para vencer o deserto, sonda o ventre  da terra para aí encontrar , oculto,   o maior bem do céu.




                                       DIFERENÇA E REPETIÇÃO
                                                       a Gilles Deleuze
                                                          
                                                            Repetir repetir - até ficar diferente.
                                                                    Manoel de Barros
         
Repetir não é reproduzir ou imitar. Repetir e  imitar são atividades que diferem em natureza. Na repetição, dois elementos encontram-se presentes: o repetido e o meio onde a repetição é levada a efetuar-se, isto é, a diferença. Desse modo, toda repetição tem como condição uma diferença, pois é nessa última que o repetido  devém o motivo da repetição. Na imitação ou reprodução, ao contrário, a diferença é anulada ou diminuída em sua positividade, sendo então considerada menos eminente ( moral e ontologicamente) que o  imitado ou reproduzido . Este último é elevado à condição de Modelo para as imitações  que o tomam como referência ou Fundamento.
  A condição para que isso funcione desse modo repousa na idéia de que ele, o Modelo, não seja reprodução ou imitação de nada que lhe seja preexistente. O Modelo existe em si, não tendo sido criado ou inventado. Ele é o critério primeiro de toda aferição de verdade e objetividade.  E é a partir da eminência do Modelo que se distribuem as hierarquias entre as imitações: a melhor imitação , a mais elevada, é aquela que mais se aproxima do Modelo. “Aproximar-se do Modelo” significa: “a ele assemelhar-se”.   O Modelo torna-se então a Identidade Referencial à qual toda imitação procura assemelhar-se. E as melhores imitações ou reproduções, aquelas que se encontram no ápice da hierarquia, são exatamente aquelas  cuja diferença se encontra no grau mais baixo de potência ou afirmação de sua respectivas singularidades ou perspectivas. Todo Modelo só se propaga com a condição de reduzir as diferença a zero.
Ocorre na repetição que a diferença torna-se o elemento genético e positivo que confere à repetição um critério seletivo que não é por eminência hierárquica, mas por potência inovadora. Repetir é inovar, isto é, estender diferencialmente a potência daquilo mesmo que se repete. Pois, na repetição, o próprio repetido é já repetição de um outro repetido que também é repetição, isto é, diferença. Só a diferença tem a potência de se repetir em outras diferenças . Só a diferença é o verdadeiro Modelo a servir de plano aos agenciamentos afirmadores da multiplicidade.
Para a repetição, a regra é a diferença. A maçã de Cézanne , por exemplo, não imita ou reproduz a maçã percebida, mas a repete a partir de uma diferença que se eterniza ao  tornar-se visível por intermédio das tintas. Estas últimas tornam-se maçã  ao mesmo tempo em que a maçã devém tinta, isto é, coincide com a própria perspectiva que lhe acrescenta , por sensação, uma diferença. Sendo que a maçã pintada não existe fora da perspectiva que a produziu ( e expressa, diferencialmente, a maçã efetiva que nela se repete).
Toda repetição é um devir do repetido. E o próprio repetido é já um devir. Toda repetição é um  devir do repetido, no qual se acrescenta  ( ao repetido) uma diferença que o faz ser sua própria perspectiva.



                                                               A SEMENTE



Sonhei que   eu estava sendo  operado do coração. O médico que me operava tinha a cara do Fernando Pessoa. Tudo me levava a crer que era realmente ele. O mesmo chapéu , o mesmo bigode , os mesmos olhos múltiplos atrás da vidraça dos óculos.
Após abrir meu peito e retirar o coração, o poeta-médico me disse que aquela parte de mim estava consideravelmente pesada, e que era preciso extrair do meu coração o excesso de peso. Assenti com o poeta, demonstrando  minha concordância e confiança no poder da poesia em intervir num coração adoecido.
Então,  o poeta-médico  foi extraindo do coração  coisas que pareciam ser não sangue ou músculo, mas sim algumas palavras que ouvi e que entraram em mim como balas de revólver; retirou também   o rosto de  pessoas que eu  precisava esquecer, principalmente daquelas que eu já pensava ter esquecido, mas que ainda permaneciam em mim, sem que eu soubesse ; tirou  situações vividas no limite da honra;  tirou também  planos desfeitos de um futuro em comum ; jogou fora decepções, ingratidões... e o  que mais o adoecia: saudade.
Depois de extrair tudo isso que me pesava o coração, o poeta se preparava então para recolocá-lo novamente no meu peito. Quando olhei para o meu coração na mão do poeta, fiquei surpreso. Pois o coração estava  tão pequeno que eu pensava que , daquele tamanho, ele não seria forte suficiente  para me fazer de novo  vivo.
Porém, recolocando o coração  no vazio do peito, o poeta por fim me disse: “ele está assim pequeno porque do seu velho coração retirei o inessencial e  deixei apenas a semente:  dela brotará um coração novo, pois a envolvi com o adubo-tempo”.



                                                   HORÓSCOPO


Diante de minha janela existe uma pracinha. Nela, mães passeiam com seus bebês em carrinhos. Reparei que quase todos os carrinhos possuem um tipo de cobertura removível, que permite ao bebê uma visão completa do céu. Fiquei pensando no impacto da  primeira imagem do céu sobre  o espírito da criança ao contemplá-la. Como um espelho que produz aquele mesmo que nele se vê, imaginei as criancinhas recebendo aquele infinito dentro de si mesmas, de tal maneira que em suas pequenas almas algo do céu se depositasse, e aí ficasse como caráter a crescer.
O CÉU DE SÊNECA.Os nascidos em abril e maio vêem um céu de um azul calmo e transparente, em cuja profundidade um sol em pontilhado derrama seu amarelo sem crispar ou se intumescer. Um céu como véu transparente, que esconde-mostra o mistério de viver. Sendo assim, a imagem de tal céu imprime um caráter contemplativo e sereno àqueles que nascem sob seu cobertor sem margens.
O CÉU DE SHOPENHAUER.Os nascidos em junho ou julho vêem um céu espesso, cinza compacto,um céu de inverno, que empurra o espírito para dentro de si mesmo e de sua caverna. Instalados dentro de si mesmos, os nascidos sob tal céu tendem à introspecção e ao exame pessimista dos fatos ¾ incluindo aí os fatos da política e os do amor.
O CÉU DE EPICURO.Os nascidos em setembro vêem um céu onde tudo se prepara para nascer: céu de primavera. Um otimismo inconsciente, tal como aquele que impele o embrião a crescer,  impregna-lhes as retinas. E o mundo , envolto em um mistério por  descobrir, abre, àqueles que o souberem ler, o seu livro-natureza ¾  cujo papel, letras e sentido  narram histórias de amizade e amor.
O CÉU DE NIETZSCHE. Os nascidos em novembro e dezembro vêem um céu em chamas, de um sol imperador. São almas em busca de seus extremos e ultrapassamentos, a brincar de equilibrar-se sobre a linha de seus próprios limites. São  almas sempre preparadas para saltar por sobre a linha, atraídas pelo abismo, pelo excesso e pelo seu mais adorado Deus: o risco.


                                             MEDICINA DA ALMA

Sêneca, o mestre estóico, recebeu a visita de seu jovem discípulo. Este vinha decidido a comunicar ao mestre a sua despedida da vida filosófica.  O discípulo considerava que a filosofia não servia para ele. Para justificar sua decisão, ele confessou ao mestre que a filosofia estava conduzindo-o a enganar a si mesmo: “quando vejo alguém se banqueteando em uma mesa farta”, explicava o discípulo,  “sinto vergonha do almoço que tive, tão simples e insignificante ele era, em comparação com tal banquete. Isso me faz sentir inveja daquele que se farta no banquete, pois na verdade eu também queria poder ter a mesma coisa. Depois , quando vejo alguém com belas roupas e carruagens majestosas, finjo que não desejo essas coisas. Contudo, corrói-me por dentro a inveja, acabo por ficar infeliz. Pois queria andar também assim. Quando vejo o poder e a fama  de um senador,   cuja mão todos querem beijar na esperança de obter favores,  sinto inveja desse prestígio . No entanto, a filosofia me diz para não fazer dessas coisas a finalidade de minha vida. Por isso, coloquei  num prato a filosofia e, no outro, aquilo que a maioria  deseja ( fama, poder , riqueza), e a balança  de minha alma pendeu para este último lado. Venho então lhe dizer que não quero mais saber da filosofia.”
“Meu caro jovem...”, disse Sêneca, “seu maior erro é pensar que eu sou diferente de você. Por vezes, quando o inimigo me encurrala, quase cedo também à idéia de que é mais útil estar de acordo com a opinião da maioria do que com a de um só, mesmo que esse ‘um só’ seja eu mesmo. Contudo, saiba que a filosofia não é feito uma vacina que se toma uma única vez e fica-se por toda a vida livre da doença ( e  essa doença, o inimigo que mencionei, tem vários nomes: ignorância, inveja, intolerância, mesquinhez , superficialidade, espírito de rebanho... ). Ao contrário,  a filosofia  é como  uma pílula que deve ser tomada todos os dias”.


CUBRA O PONTILHADO E VEJA A FIGURA QUE SE FORMA

As palavras divinas estão escritas em uma língua que ninguém jamais conseguirá decifrar ─ sobretudo os lógicos, sobretudo os teólogos, sobretudo os alfabetizados na língua do poder.
Aos tolos, as palavras divinas parecem profecias; e os mais tolos ainda as tomam como Leis.Para as crianças, as únicas que as entendem, as palavras divinas são traços em pontilhado dos quais se aprende o sentido quando, inocentes de toda culpa e ressentimento,  os cobrimos com o lápis do amor  na mão. Finda a brincadeira de cobrir os dizeres divinos,o que se vê não são textos, frases ou cânones.Vêem-se apenas infantis desenhos da imaginação de um Deus também criança: um barco no mar voltando carregado de peixes;uma pipa colorida que um menino empina; um casal de idosos passeando de mãos dadas;  um céu cheio de estrelas emoldurando uma praça cheia de gente; e, pairando acima de tudo, o caos e o cosmos reconciliados, abraçando-se numa dança.


                                              








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