(trechos do livro)
SOBRE A HERMENÊUTICA
Cuidai do sentido, e as
palavras
irão por si mesmas ao lugar certo.
Lewis Carroll
A palavra “hermenêutica” tem como raiz o nome de um deus grego:
Hermes. Na mitologia, Hermes faz par com
a deusa Héstia. Esta última era a
deusa que se manifestava junto à lareira. No recinto da casa do cidadão, como
centro da vida privada, a lareira
representava um papel análogo ao da ágora para a vida pública. De
fato, a ágora era o centro da vida pública ou política, pois ela era a praça na
qual, usando a palavra, os cidadãos procuravam governar a cidade.
No espaço privado de suas casas, o cidadão deixava de
ser homem público, tornando-se chefe de família: diante da lareira, ele
conversava com seus familiares e os ouvia, sempre tendo como testemunha a
lareira. Em grego, a palavra que corresponde a “lareira” é “omphalus”, que significa também “umbigo”, pois os gregos achavam que a lareira era o umbigo
que ligava a família ao passado imemorial, a casa eterna onde agora viviam
todos os seus ancestrais.
Hermes, por sua vez, tinha por espaço de manifestação exatamente a porta.
Pois a porta é o lugar de fronteira entre a casa e a rua, entre o espaço
privado e o espaço público, entre a família e a sociedade, entre o sangue e a
política, enfim, entre o dentro e o fora.
Hermes, portanto, é o mais fugidio dos deuses, posto que seu território
não possui espessura. Não obstante, não se vai de um território a outro, não se
comunicam as positividades, sem que o território de Hermes seja percorrido.
Território feito de limiares, cravado entre os espaços do mundo.
A vinculação desse deus com a prática da hermenêutica fica clara se
atentarmos para o fato de que a hermenêutica é uma forma de interpretação.
E interpretar algo é, de certo modo, colocar-se na “porta” entre o nosso
mundo subjetivo e a realidade objetiva (seja esta a realidade de um fato, de
uma teoria, de uma lei ou de um comportamento).
Eis então a suprema lição que nos deixam os gregos: não interpretamos
apenas a partir de nós mesmos (pois, nesse caso, forneceríamos apenas
opiniões), tampouco podemos interpretar algo de forma neutra, apagando o
nosso mundo interno.
Interpretar, portanto, é colocar-se na fronteira que separa/une a nossa
subjetividade da objetividade da coisa a ser interpretada. Nesse sentido,
interpretar é uma arte.
THEORIA
a Michel Serres e Marcel Proust
Boa parte dos sofrimentos humanos advém do fato de o
homem não poder ver a tudo que gostaria de ver. Temos apenas dois olhos, é
sabido ─ e estes abarcam uma porção
limitadíssima do espaço visível. Ver é, de certa forma, não ver um campo
infinito de perspectivas que não são as nossas. Como a lanterna que ilumina um
cômodo escuro, o facho de luz do nosso olhar luta para vencer a escuridão que
se esquiva.
Mas os primeiros a sofrerem com essa limitação do ver não foram os humanos, e sim os deuses gregos.
Por exemplo, Hera, esposa de Zeus,
sofria de tal forma com esse fato que
não lhe sobrava sossego para mais nada. E a causa de seus sofrimentos
era exatamente seu marido, Zeus. Ela sofria quando Zeus não estava sob seus
olhos, e isso acontecia freqüentemente. A ausência de Zeus inquietava Hera,
mergulhando-a numa ignorância que ela não conseguia vencer. Seu ciúme pedia um instrumento, ele queria criar
olhos ─ e assim ver, saber, tomar ciência. Hera precisava vencer a ignorância: ela
desejava encontrar um meio de ver Zeus
todo o tempo, sem que ela fosse, no entanto, vista. Um ver que lhe deixasse
neutra, mas sempre presente, vendo.
Entra em cena então um deus que irá auxiliá-la nessa tarefa: Panoptes.
Este deus tinha por peculiaridade poder transformar-se em qualquer coisa,
possuía ele o dom da metamorfose. Para cumprir
a tarefa que Hera lhe solicitava, e para ser os olhos da deusa vigiando
Zeus onipresentemente , ele se
transformou então num animal: o pavão. Quando este abria a cauda, mil olhos se
mostravam, a olharem em todas as direções
─ vigiando, sem trégua, Zeus.
A esse olhar que vê sem deixar escapar nenhuma brecha por onde o olhado
poderia velar-se , a esse olhar que desvela todo ocultamento, a esse
olhar os gregos deram um nome: Theoria.
Não é um olhar que revê ou antevê, num
passado longínquo ou num futuro distante, o que o tempo já apagou ou ainda não
criou. Rever ou antever são práticas dos profetas ou adivinhos. O
olhar da theoria , ao contrário, é um puro ver instantâneo, sem tempo, sem
fantasia; que vê, num instante, todos os “agoras” simultâneos.
Como fruto do ciúme, a theoria é o desejo de abolição do mistério:
paixão pela verdade, antítese do amor.
DAS FORMAS DE SE PESCAR
A ciência, que opera com
conceitos, assemelha-se à pesca com rede: ao ser lançada, a largura da malha já
pré-determina que peixes a rede pode apanhar. A ciência é uma rede com malhas
largas: o peixe sutil escapa-lhe sempre. A rede da ciência não foi feita para
pegar um peixe que seja singular, pois lhe interessa apenas os cardumes: a rede
da ciência fora feita para apanhar quantidades e grandes números; por esse
motivo, escapa-lhe sempre o peixe único. A rede da ciência é o conceito
universal, a categoria geral.
Já a filosofia se assemelha à pesca com anzol:
interessa-lhe o peixe único, singular. Para atrai-lo é preciso toda uma arte de
confeccionar iscas. E também paciência, que é a arte de criar orelhas para ouvir
atentamente o que tem a dizer o tempo, que é o rio onde o anzol é lançado. O
peixe morde a isca quando ele quer, e não quando nós queremos.
Não por acaso, o anzol tem o formato de um ponto de
interrogação. O peixe que a filosofia quer fisgar é o sentido. E na
ponta do anzol-interrogação a filosofia põe a sua isca: a idéia.
O ANTROPÓLOGO, O ÍNDIO, DUCHAMP E
A CONTRACULTURA
Uma obra
de arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos.
Paul Valéry.
Certa vez, na década de 50, um antropólogo inglês realizava
uma pesquisa de campo numa tribo africana. Ao entrar na oca de um índio,
o antropólogo se deparou com um acontecimento inesperado e desconcertante:
pendurada na parede da habitação indígena estava uma máquina de escrever. E
naquela época, a máquina de escrever representava mais ou menos o que hoje
representa um computador, ou seja, o símbolo técnico do desenvolvimento intelectual da cultura branca
letrada.
Entre nós, “civilizados”, sabemos
qual o significado de uma máquina de escrever, pois seu sentido é construído
tendo com referência a sua utilidade. De fato, o senso comum costuma pensar que o sentido de
toda e qualquer coisa se explica pelo seu uso objetivo, aceito por todos como “normal”. No entanto,
na parede da oca a máquina era tão somente um objeto decorativo sem nenhuma
função ou significado aparente, e ali
permanecia como presa estranha da kunstwollen[i] do
primitivo.
Talvez fosse até mesmo impróprio chamá-la pelo nome que nós a designamos,
pois ela já não era mais uma “máquina de escrever”: despida da designação
costumeira mediante a qual a reconhecemos como algo que nos é familiar e
conhecido , a máquina agora se tornara
algo que nenhuma de nossas palavras conhecidas poderia representar. E
ali estava ela, como um artefato que já não servia mais para alguém
datilografar pensamentos, mas que no
entanto agora estava servindo para
inquietar o antropólogo , e assim forçá-lo a pensar.
Apesar de ter seu espírito carregado de dúvidas, o antropólogo nada
perguntou ao indígena a respeito do objeto que estava em sua parede. De volta a
Londres, o pesquisador se pôs pensativo sentado à sua escrivaninha de trabalho
e diante da sua máquina de escrever. Subitamente, ele olhou para a parede de
sua sala e viu repetido nela o acontecimento que o surpreendera na habitação
indígena: pois pendurados diante de seus olhos estavam um arco e flecha...
Então, o antropólogo pôde compreender, através da atitude que ele mesmo tomara
em relação aos objetos técnicos da cultura indígena, o gesto do indígena em
relação à máquina de escrever.
Fora da cultura ou do território simbólico de
referência, qualquer objeto pode entrar em um devir eminentemente estético, que
traduz o seu caráter “inútil”, desterritorializado— isto é, não pertencente a
um território que nos seja habitual. E é essa “inutilidade”, passível de
sobrevir a toda e qualquer coisa, que nos permite aprender algo de importante
sobre nós mesmos e sobre a nossa própria sociedade , para a qual o valor
supremo é exatamente o da utilidade.
Paradoxalmente, para compreender
melhor o valor mais propalado de
nossa civilização, foi preciso que o antropólogo se achasse numa outra sociedade, em tudo diferente da
nossa, e descobrisse aí que a compreensão verdadeira de alguma coisa exige que tomemos distância
não apenas da própria coisa, já que
precisamos também nos afastar sobretudo de nós mesmos , do nosso irrefreável impulso , como dizia
Nietzsche, de nos esquecermos de que somente
reencontramos nas coisas aquilo que nós mesmos nelas colocamos.
O ato de reencontrar é próprio
à (cons)ciência, mas o ato de colocar somente se explica se
entendermos que o fundamento de tudo é a criação, a arte.
Por esse motivo, a atitude do
índio para com a máquina de escrever talvez também nos possa ensinar algo a
respeito dos problemas colocados pela
arte contemporânea. Pois, de maneira geral,
a visão que o artista tem do mundo
efetiva-se ao elevar à condição de artifício
(isto é, de objeto criado ou inventado) todo e qualquer objeto que o senso comum toma como dado ou natural.
Para o artista nada é óbvio . Nesse sentido,
o artista se parece um pouco com uma criança. E dentre todas as pessoas
de nossa sociedade, as crianças são aquelas que, por sua inocência, mais se
assemelham aos índios. O artista sabe
que tudo aquilo que tem um sentido padrão e inquestionável hoje, um dia foi
inventado por alguém .Tudo é produção,
arte : eis o que o artista descobre ao exercer em si mesmo o tornar-se
estrangeiro em sua própria civilização e pátria, tornando-se um índio no seio
de sua própria cultura “civilizada”, pois é com um olhar semelhante ao do índio
sobre a nossa cultura que o artista, dentro de nossa própria sociedade
“civilizada”, olha para as coisas que
para o senso comum parecem óbvias e com um sentido acabado. É curioso notar que “estranho” e
“estrangeiro” têm uma mesma raiz semântica, e significam originalmente “aquilo que foge ao padrão e ao comum” .E
dentre os artistas contemporâneos, ninguém mais do que Duchamp nos mostrou, com
seus ready-made,
o caráter problematizador e
inventivo da arte. Ninguém mais do que Duchamp fez brotar ,no seio da
cultura, as forças da contracultura: as forças criativas
e inovadoras da arte. Diante das obras de Duchamp, nos sentimos um pouco como
aquele antropólogo que descobriu, em meio ao habitual e ao comum, o inesperado
e o novo.
Por isso , se quisermos sair da posição de passividade que nos leva a
reconhecer nas coisas significados prontos e inquestionáveis , devemos olhar para as coisas tidas por “úteis” e “objetivas” com um certo olhar de
estranhamento e de questionamento, como se em nós morasse, livre e insubmisso,
um eterno índio ou um eterno artista — cuja principal obra a criar fosse não exatamente um quadro ou uma
escultura, mas a sua própria vida : para
assim produzir, como queria Foucault,
uma existência bela.
[1] Kusntwollen : termo técnico alemão
originado dos estudos artísticos, e que significa “vontade artística que conduz
o artista, ou alguém, a criar uma obra de arte”. Kunst = arte + wollen=
vontade.
PEQUENA
CARTOGRAFIA DE UMA SUBJETIVIDADE LARVAR
O
menino experimental, declarando superado o manual de
1962, corrige o professor de fenomenologia.
O menino experimental decreta
a alienação de Aristóteles.
Expulsa-o da sua zona, com a roupa do corpo e amordaçado.
O menino experimental confessa-se ateu e à toa.
Murilo Mendes, O Menino
Experimental
Os eus são sujeitos larvares.
Gilles Deleuze, Diferença e Repetição
A criança gira, gira, gira...De repente, ela pára o
movimento rotativo e tenta fixar o olhar nas coisas à sua volta. Mas o mundo
continua a girar, inadvertidamente. Então, na impossibilidade de fixar o olhar,
a criança ri, depois se espanta, olha assustada, tapa os olhos como que
querendo fazer cessar o jogo que ela mesma iniciara. No entanto, esse jogo,
depois de iniciado, posto em movimento, reduz aquele que brinca à posição de
espectador passivo, que deve aguardar que o mundo pare de girar por si mesmo,
tal como a água de um copo que o movimento rotativo de uma colher fez
transformar em rodamoinho. Mais do que nunca , o mundo então se expressa como
um acontecimento cuja essência é o tempo. Nessa brincadeira, a criança brinca
não com um objeto ou brinquedo específicos. Pois ela faz do mundo inteiro um
brinquedo. O mundo gira feito um pião. O chão, o céu, as cabeças, as idéias, o
infinito: tudo rodopia ao redor do eixo minúsculo, centro singular do
turbilhão.
O que tal brincadeira despretensiosamente
nos ensina? Decerto que não é o mundo físico que gira. O que rodopia e
deixa a criança tonta é o mundo tal como aparece para ela. É uma representação que gira,
fazendo também girar o mundo que a criança acredita existir fora dela
própria— como se este fosse uma máscara
que, quando puxada, levasse consigo o rosto que ocultava, e que no entanto lhe
moldava uma feição familiar. Embora ela saiba que o “mundo verdadeiro” não está
girando de fato, a sensibilidade só
lhe mostra isto: que o mundo está a girar, de
direito.
O girar desse mundo que se apresenta no jogo não é uma ilusão ,alucinação
ou devaneio. O mundo não gira “dentro”
da subjetividade da criança: ele gira fora, mas sem estar objetivamente
girando....Sua subjetividade se vê comprometida com a imanência de um fora que se lhe torna mais íntimo que
toda interioridade psicológica . Pois fora
da criança está aquilo que se encontra a girar — sem que ninguém, exceto ela
mesma, possa perceber tal fato.
Nós que estamos nesse mundo,
involuntariamente fazemos parte do jogo que a criança voluntariamente iniciou.
Mas não depende mais de sua vontade fazer cessar o jogo que seu desejo começou.
Ela deve contemplar o mundo oferecido sob a forma de brinquedo infinito e
sublime, cujo cardo coincide com uma kunstwollen pré-egóica, que maquina o mundo como objeto de uma produção. O mundo continua sendo o mundo: há os
prédios, os automóveis, as guerras, os papéis de bala que o vento carrega, as
nuvens que nos espiam. Aliás, o mundo está até mesmo a girar sobre seu próprio
eixo sem designo. Mas a criança lhe acrescenta um outro movimento, de cuja
força não participa alavanca ou músculo, mas apenas o desejo do lúdico e da
transformação. Terra em transe.
O sentido supremo desse jogo é fazer descolar-se da superfície do mundo
visto, o seu simulacro sem peso , volume ou espessura. O mundo como um puro sentido com o qual se pode brincar. Acontecimento ideal
acrescido ao estado de coisas. Menos
do que uma coisa e mais do que uma mera imagem , o mundo tremula sobre o limiar que separa o dentro e
o fora, o psíquico e o físico. Ele se torna um mundo puramente ótico sobre o
qual não se pode agir, mas sobre o qual as coisas vivas e não-vivas
indistintamente deambulam.
Desse modo, embora a árvore que
vemos seja , para nós que não giramos, um dado fixo, para o menino que olha
para a mesma árvore esta lhe aparece como uma imagem em movimento. O garoto
brinca com a objetividade, e há qualquer coisa de inocente nessa brincadeira. Filosofando
com seu próprio corpo e espírito, diante
de seus olhos desfila uma concreta metafísica.
Ele se metamorfoseia ,assim, em um menino experimental: o Hume que todos nós fomos quando tínhamos 7 ou 8 anos— o qual desaprendemos , pouco a pouco,
de ser .E se a árvore que
vemos lança suas raízes ao subsolo da terra, para aí se prender, a mesma árvore pelo menino vista , árvore virtual
panpsíquica, prende suas incorporais raízes no espírito que a contempla, para
aí se mover.
O DESCOBRIMENTO DO BRASIL
No filme “O Descobrimento do Brasil”,
de Humberto Mauro, podemos encontrar uma tese original, que só o cinema poderia
construir. Uma tese não-acadêmica, em tudo indefensável, posto que não é teoremática, mas problemática. Escrita não com palavras, e sim com imagens. Mais do
que uma tese para ser ouvida, o filme é uma tese para ser vista .Uma tese sobre
o nascimento do Brasil.
O filme em questão é um misto de ficção e documentário, e fora feito na
década de trinta. O filme revela um embate, uma contenda, entre aquilo que o
texto pode representar (enquanto documento histórico) e aquilo que lhe
permanece fora, como dado a-histórico,
e que a imagem se incumbiria de expressar. Se o texto pontua o consenso
historiográfico mais ou menos aceite, a imagem é a acentuação de uma
perspectiva, é o “dar a ver” de um problema que não está no passado, mas no
presente ( e que , por isso mesmo, se endereça a nós, brasileiros do início do
século XXI).
O primeiro fato a impressionar no filme é a direção dos figurantes, já
que estes últimos eram descendentes dos primeiros índios que aqui estavam
quando da chegada dos portugueses. O filme se passa em Porto Seguro, e começa com os primeiros contatos entre índios
e portugueses. Dizem os documentos escritos que esses primeiros encontros foram
amistosos, e o diretor procura pontuar isso com closes dos rostos indígenas. Desse modo, o filme tem boa parte de
sua construção apoiada numa apresentação afetiva
, cujo pólo é o rosto.
Como se sabe, a Europa vivia, no século XVI, confrontos de ordem
religiosa. E como pátria cristã que era, Portugal se via na missão de batizar o
território pagão recém descoberto. Deveria então ser providenciado o símbolo
cristão por excelência: a cruz. Tarefa essa por demais fácil de ser realizada,
já que bastava entrar na floresta e escolher as melhores árvores apropriadas
para tal fim. E foi o que os portugueses de pronto fizeram, com machados em
punho. E os índios, na deles, desconheciam os propósitos portugueses, e
tampouco sabiam para que servia um machado.
Na seqüência, o filme mostra então os portugueses entrando na floresta ,
com os índios a seguir-lhes, calmamente. Porém, em pouco tempo algo de estranho
começa a se passar, os rostos mostram-se cada vez mais tensos. À medida que os
portugueses avançam rumo ao seio de floresta, os rostos dos índios contorcem-se
de temor e preocupação. Ao chegarem à
parte mais cerrada da floresta, os portugueses examinam e apalpam as
árvores, entrevendo aquelas que melhor serviriam ao ânimo religioso que lhes
movia. Entre os índios, o paroxismo
aumenta : tudo leva a crer que seus rostos gritam em desaprovação àquela investida portuguesa. Alheios aos protestos que não entendiam, os portugueses
prosseguiram em seu intento, rapidamente as árvores foram escolhidas. E quando
a primeira machadada foi desferida contra o tronco da árvore mais bela que ali
havia, os índios fugiram em disparada, como se algo dentro deles tivesse também
sido atingido. Os índios desaparecem.
Levados para a praia, os troncos de duas
árvores se viram transformados então em cruz . Em meio à missa, os
índios reaparecem .Como que hipnotizados pela cruz, aos poucos eles se vão
aproximando dela, como que a querer tocá-la, mas para isso lhes faltando
coragem. Em seus rostos , uma expressão inquieta, misto de reverência aturdida
e temor resignado. Foi aí então que o capelão desferiu mais ou menos as
seguintes palavras: “Vejam a maravilha da
qual somos testemunhas. Nesse canto
escondido da Criação, até mesmo essas bestas nuas reconhecem, e se submetem,
ao poder superior de Nosso Salvador!”.
Contudo, não era exatamente isso o que se passava. Pois o que os índios
realmente viam ali não era a cruz enquanto símbolo de uma Transcendência que
lhes pedia a obediência. O que eles viam realmente ali eram dois
Ancestrais capturados, retirados do
território sagrado que desde sempre lhes pertencera: a floresta . Já que, entre
eles, as árvores de determinado território da floresta funcionavam como um
campo religioso imanente, onde os
Heróis e Ancestrais encontravam guarida
eterna, entre as pedras, os ramos e os ninhos das aves.
Era, portanto, um mesmo corpo material ( o tronco das árvores) com dois
sentidos completamente distintos : símbolo daquele que morreu na cruz para nos
libertar , Ancestrais roubados da eternidade e feitos prisioneiros por um povo
estranho. E um desses sentidos deveria morrer ( ou ser morto) para que o outro
pudesse assegurar seu poder não apenas
sobre aquela pequena parte material da floresta que lhe servia de significante,
mas também sobre a natureza inteira. Sobre até mesmo as almas e os corpos dos
índios.
O filme de Humberto Mauro nos mostra um etnocídio .O etnocídio é um conceito recente da Antropologia
Política. Ele difere do genocídio,
que é seu parente próximo. No genocídio ocorre o extermínio do corpo e da alma
de um povo; já no etnocídio mantém-se o corpo vivo, mas captura-se a alma.
Mantém-se o corpo vivo para fins de trabalho, escravizando-o, marcando-o com os
sinais e signos do poder que sobre ele se exerce; captura-se a alma a partir de
construções simbólicas que apresentam do
mundo uma imagem que interessa àqueles que a capturam, tentando assim
inocular-lhe uma crença cuja função será agrilhoar-lhe , além do corpo, o
próprio espírito.
O etnocídio produz a subjetividade que
interessa ao poder. E esse poder operará de duas formas: desterritorializando
a subjetividade indígena de seu antigo território; e reterritorializando
essa mesma subjetividade em um sistema de referência simbólico do qual os índios
não são os criadores.O etnocídio assassina uma visão do mundo singular e
submete a alma que lhe era imanente à
hegemonia de uma visão de mundo que se quer representante da Transcendência que criou o mundo do qual
se tem a visão. O etnocídio necessita assim de uma transcendência metafísica,
que lhe confere o poder de destituir de sentido as visões de mundo que não são
a sua própria.
Todavia
é preciso ressaltar que o território, tal como aqui é trabalhado, não é apenas físico, mas também psíquico e semiótico, pressupondo, ao
mesmo tempo, representações mentais, ritmos e imagens corporais e um sistema de signos como universo
incorporal que dá consistência a um território existencial, dentro do qual
a subjetividade constrói um sentido para si mesma, para o socius e para
o próprio cosmos. O etnocídio mata a alma em seu território existencial
singular e próprio e a escraviza em um território simbólico tributário de uma
transcendência que tem na igreja e no
Estado os seus representantes.
O que o etnocídio faz é retirar a singularidade
do território existencial, esvaziando este de sentido e fazendo-o depender
de um território artificial cujo sentido
provém dos códigos : seja o código moral, o código jurídico , o código do
significante bíblico ou o código do capital.
A FILOSOFIA DE ESPINOSA
O paradoxo de Espinosa é o de ser o mais filósofo dos
filósofos, o mais puro num certo sentido, mas ao mesmo tempo aquele que mais se
dirige aos não-filósofos e que mais solicita uma compreensão não filosófica. É
por essa razão que rigorosamente todo mundo é capaz de ler Espinosa, e de
extrair dele grandes emoções, ou de renovar completamente sua percepção , mesmo
não entendendo com profundidade os conceitos espinosistas.
Gilles Deleuze, Conversações.
Espinosa. Eis o gênio, o verdadeiro gênio, que teve o que faltou a
Descartes, o arrojo e a falta de respeito pelo que está estabelecido. Honra ao
mestre do pensamento, que perseguido, odiado, excomungado, defendeu a verdade,
viveu para a verdade, sofreu pela verdade!
Fernando
Pessoa, Textos Filosóficos.
Espinosa ocupa um lugar extremamente original na história da filosofia.
Tão original que é difícil classificá-lo dentro de uma determinada fase ou
corrente filosófica. Embora ele tenha vivido no século XVII, século que se
tornou conhecido por ter sido o século de Descartes( o século do Racionalismo),
Espinosa no entanto traz algo que ainda nos parece novo, e que ainda está
por ser descoberto. Isso explica, em
parte, o grande interesse que sua obra está despertando hoje .De
fato, Espinosa nasceu no século XVII. Mas suas idéias parecem tão avançadas
para a época, que só agora começamos a compreendê-las. Aplica-se perfeitamente
a Espinosa uma frase famosa criada por um
outro filósofo igualmente original e que
viveu no século passado. O filósofo em questão é Nietzsche, que disse: “Todo grande espírito já nasce póstumo. Por
isso, suas palavras às vezes são
endereçadas a ouvidos que ainda não existem”. Isto é, todo aquele cujo
pensamento possui uma grande força inventiva e inovadora, às vezes sofre com a
incompreensão de seus contemporâneos, nada lhe restando então do que esperar
que o futuro lhe faça justiça, e reconheça o valor e grandeza de seu
pensamento. Descartes, por exemplo, foi um fruto genuíno do século XVII. Tanto
isso é verdade que é difícil separá-lo daquela época e conceber sua filosofia nos dias atuais. Com
Espinosa se passa algo totalmente diferente, conforme tentaremos mostrar.
Baruch de Espinosa nasceu a 24 de novembro de 1632, em Amsterdam, de uma
família de judeus portugueses refugiados na Holanda. Na escola judia realizou
estudos teológicos e comerciais . Desde os treze anos trabalhou na casa
comercial de seus pais, prosseguindo igualmente os seus estudos (depois da
morte de seu pai, em 1654, irá dirigir a casa comercial juntamente com o seu
cunhado, até 1656). Devido ao seu espírito não-dogmático e questionador ( o que
o levou a estudar , além de teologia, filosofia , direito e ciências em geral,
freqüentando igualmente círculos de livre-pensadores
mal vistos pela ortodoxia judia), Espinosa foi excomungado aos 25 anos. A vida
então se torna difícil para ele em Amsterdam. Após um fanático tentar assassiná-lo, resolve
mudar-se para Rijnsburg a fim de prosseguir os seus estudos de filosofia.
Conta-se que Espinosa conservava o casaco rasgado pelo golpe da faca assassina,
para melhor se recordar que o pensamento
nem sempre era amado pelos homens.
Poucos filósofos foram tão perseguidos e injuriados quanto Espinosa. “Aqui jaz Espinosa; cuspi sobre o seu túmulo!”. Eram estas as primeiras
palavras de um epitáfio versificado por um letrado holandês, ministro da Igreja
protestante, cerca de cinqüenta anos após a morte do filósofo. Um outro exemplo do quanto Espinosa foi
perseguido: após sua excomunhão, era
terminantemente proibido a qualquer judeu ( até mesmo os parentes de
Espinosa) permanecer sob o mesmo teto onde estivesse o filósofo. E durante
muito tempo o termo Espinosismo foi
usado como sinônimo de subversão, ateísmo , em suma, “ algo perigoso” .
Para compreender um pouco a fúria que ele despertava em seus
contemporâneos, começaremos por citar
aquela que é a principal afirmação de sua obra: “Deus não criou a
natureza. Ele é a natureza: todas as criaturas são modificações de uma única
realidade”. Em latim, conforme o texto original, lê-se Deus
sive natura ( ou, em português, Deus
é a natureza). Na época em que Espinosa viveu, o século XVII, tal
pensamento era visto ainda como escandaloso, demasiadamente “ateu” e pagão. No
entanto, paradoxalmente, a principal preocupação de Espinosa é tentar mostrar
exatamente o que é Deus.
E a idéia de Deus em Espinosa
serve de pano de fundo a um problema mais decisivo, e que toca de perto
as questões concretas da vida. Resumidamente, pode-se dizer que a filosofia de
Espinosa gira em torno de três
questões fundamentais:
1-o que é a natureza?
2 -o que é ser escravo?
3-como devemos agir e pensar para nos tornarmos livres?
A primeira questão nos remete à compreensão de Deus. A segunda , por sua
vez, põe-nos frente a frente com um dos
temas centrais da obra de Espinosa: as
paixões. O que é uma paixão ? Existem paixões positivas? Estas e outras são
algumas das perguntas que ele procura responder. Enfim, a terceira questão nos
coloca diante da necessidade de pensarmos uma Ética. Aliás, o principal livro
de Espinosa chama-se exatamente Ética , e
tem por objetivo responder às questões que formulamos acima.
Deus, as paixões e a liberdade — eis os três grandes temas da
filosofia Espinosista. Se a primeira questão pode parecer, em princípio, um
pouco abstrata, as duas últimas , no entanto, mergulham no cerne de cada uma de nossas vidas. Pois
nos parece que os problemas colocados pelo filósofo atravessaram os séculos e
nos diz respeito diretamente hoje, tocando em questões não apenas filosóficas,
como também do direito, da psicologia, da sociologia, da política, enfim, da vida. Sendo assim, comentaremos,
a seguir, cada um dos temas citados no começo desse parágrafo.
I- DEUS OU A NATUREZA
É perfeitamente possível tentarmos compreender um determinado período
histórico a partir das idéias que impregnam , em cada época, as mentes dos
homens. Notamos, então, que há certas idéias que predominam e que passam a ser
o fundamento para a vida de todos. Pois é através dessas idéias que os homens
compreendem, valoram e percebem o mundo que os cerca. Foi assim na Grécia, foi assim na Idade Média, é assim
hoje. Cada época molda o mundo conforme as crenças e valores que os homens
acreditam ser verdadeiros e inquestionáveis.
E no século em que viveu Espinosa, o século XVII, Deus era a idéia
principal com a qual se ocupavam os homens.
Não era proibido a um físico estudar as leis da física, ou a um estudioso
do Direito teorizar sobre a melhor organização da sociedade. No entanto, tais
estudos e teorias tinham que estar
perfiladas com as verdades reveladas pela Bíblia. Caso contrário... Mesmo
Descartes, o grande racionalista desse período, quando elaborava uma explicação científica sobre determinado
fenômeno físico ,ele procurava adequar tal explicação com aquilo que estava
dito no texto da Santa Escritura ( embora não se saiba ao certo se ele assim
procedia por realmente acreditar no Deus da igreja ou por puro medo da fogueira
da Inquisição). Sem dúvida, Deus também fora a principal idéia que interessou os homens
durante a Idade Média. No entanto, o homem do século XVII entende por Deus algo
totalmente distinto das crenças do homem medieval. Pois, no século XVII, os
filósofos defendiam a tese de que Deus nos podia ser acessível por intermédio da razão , sem
precisar ter por “intermediário” a igreja .Ou seja, acreditava-se que Deus era
um ser racional; e que nos fez à sua
semelhança, ou seja, seres racionais.
O século XVII conheceu três concepções distintas de Deus, e cada uma
delas é representada por um filósofo
diferente. As duas primeiras concepções as encontramos em Descartes e Leibniz (
filósofo alemão ). Estes filósofos , para nos mostrarem o que é Deus, se valem
de uma analogia. Isto é, comparam
Deus a alguma prática humana que lhe traduza a essência. Assim , para Descartes
Deus é como um tirano . Ora, o tirano é aquele que age de maneira arbitrária, pois
ninguém pode limitar ou prever suas ações. Em uma sociedade governada por um tirano apenas ele
é livre. Segundo Descartes, Deus criou o mundo do nada. E todas as verdades que
vigoram em nosso mundo ( tanto as leis físicas como as verdades matemáticas) dependem de Deus. As verdades nas quais o
homem acredita nada seriam se Deus não existisse. Assim, para Descartes Deus poderia ter criado um mundo
completamente diferente desse no qual vivemos, pois nada limita sua Vontade
Soberana. Diante desse Deus Tirano, somos todos seus servos.
Leibniz, por sua vez, concebe Deus como se este fosse um legislador. Tal como Descartes, Leibniz também acredita que Deus criou o mundo do nada. Mas,
para Leibniz, a criação do nosso mundo foi , na verdade, uma escolha. Deus escolheu o nosso mundo. Resumidamente, isto significa o seguinte: Deus, segundo a
tradição cristã que Leibniz representa, possui um intelecto e uma vontade. No
intelecto de Deus estaria tudo aquilo que pode vir a ser real. Antes de Deus
criar nosso mundo, este último estava no intelecto de Deus, misturado a uma
infinidade de outros mundos possíveis. Deus, no entanto, escolheu o nosso mundo
e , mediante a sua vontade, o fez tornar-se real. Mas por que Deus escolheu o
nosso mundo e não outro? Segundo Leibniz, Deus assim o fez porque o nosso mundo
era, dentre os mundos possíveis, o melhor. Apesar de todo sofrimento e miséria
que existe em nosso mundo, apesar do mal que nele vemos, apesar disso tudo, diz
Leibniz, o nosso mundo ainda é o melhor dos mundos possíveis... Voltaire, filósofo e escritor Iluminista do século
XVIII, escreveu uma peça inspirada em Leibniz, peça esta que se tornou famosa e
foi recentemente encenada no Rio . A peça se intitula “Cândido, o otimista”. Pois se depreende de
Leibniz um otimismo exacerbado acerca deste mundo que Deus escolheu ¾ o que aliás justificava e encorajava, em termos filosóficos, o capitalismo comercial que
então nascia. Segundo Leibniz ,Deus, ao escolher o nosso mundo, o fez tal como
um juiz que profere, dentre mil sentenças possíveis, aquela que ele julga ser a
melhor, a mais justa. Diante desse Deus-Legislador de Leibniz, o homem está
como um réu diante de um juiz. Claro está que
um réu é diferente de um servo. Pois enquanto este último não possui
nenhuma liberdade, o réu, ao contrário, é aquele que fez mal uso desta e, por
esse motivo, traz em si , no mais íntimo do seu ser, uma culpa inextirpável nessa vida. Pois essa culpa se deve a um ato cometido
não por cada homem em particular , mas pelo primeiro dos homens: Adão. Perante
as leis humanas, podemos ou não nos tornar culpados, tudo depende de agirmos ou
não conforme o que as leis prescrevem. Perante a Lei Divina, contudo, somos
todos culpados. Como dizia Kafka (escritor tcheco do século XIX), pesa sobre nossos ombros um crime que não
cometemos, mas do qual somos julgados, do primeiro ao último instante de nossas
vidas. A existência como um infindável processo criminal.
Completamente distinta é a imagem de Deus construída por Espinosa. Deus,
segundo ele, não se assemelha a um
tirano ou um juiz, mas sim a um artista. E o que é um artista? O artista é
aquele que produz, que cria : ao produzir e criar, ele se expressa. Deus não criou a natureza do
nada. Pois, segundo Espinosa, Deus é a própria natureza. Não há separação
entre Deus e aquilo que ele cria. Ou melhor: Deus não criou a natureza, ele é a
natureza. Pode-se perceber a imensa distância que separa Espinosa de Descartes, pois para este último Deus
poderia ter criado um mundo completamente diferente deste no qual estamos. Para
Espinosa, ao contrário, sendo a natureza e Deus a mesma coisa, um não pode
existir sem o outro.
Para Espinosa, um ser livre é aquele que não é constrangido ou limitado
por nenhum outro. Assim , liberdade é a mesma coisa que ausência de constrangimento.
Logo, Deus é completamente livre, pois nada o constrange. Nada o constrange
porque ele é único, singular. Segundo Espinosa, e isso que ele nos diz é
extremamente belo, todo ser livre é, ao mesmo tempo, um ser alegre. Liberdade
rima com alegria. E o que é a alegria? Uma ausência de constrangimento. Todo
ser alegre e livre é um ser expansivo. Deus, portanto, é uma pura expansão sem
nada que o constranja ou limite. Talvez possamos compreender melhor a idéia de
expansão, tal como a empregamos aqui, se
nos mirarmos em uma criança. Uma criança é um ser expansivo, já que ela
ainda não está pronta. Não apenas o corpo da criança está em expansão, mas também seu espírito ou mente ( do latim mens).
Deus ou a natureza é como uma eterna criança que jamais envelhece, e que a cada
dia se expande mais , criando o novo . O sinal que indica que um ser começa a
morrer é quando ele pára de se expandir.
Diz Espinosa que devemos entender a expansão em dois sentidos:
expansão do corpo e expansão do espírito. A expansão do corpo está limitada
pelas leis da física. Pois as leis que
governam a matéria tornarão
um dia impossível que um determinado corpo se expanda após atingir a
maturidade. Porém, a expansão do espírito não é limitada pelas leis da matéria,
pois o espírito não é material. Assim, enquanto um homem viver, seu espírito
pode expandir-se, não obstante a
decrepitude que pode atingir os órgãos
de seu corpo. A expansão de um corpo se expressa pela capacidade de agir. A
expansão do espírito se expressa pela capacidade de compreender. A capacidade
de agir de um homem pode diminuir com o tempo, mas a capacidade de compreender(
isto é, de pensar) pode aumentar indefinidamente. Se um corpo ainda pode agir e
não o faz, então algo o está constrangendo e limitando. Por exemplo, o corpo de
um prisioneiro está limitado em seu
poder de agir. Por outro lado, se um
espírito tem o poder de se expandir mas não o faz, isso se deve ao fato de que
algo o está limitando e constrangendo,
diminuindo a sua capacidade de compreender e pensar. De certa forma, este
espírito ou mente também está prisioneiro de alguma coisa. No caso do corpo do prisioneiro, o que o limita em seu poder de agir é a presença
física das paredes de sua cela. No caso de um espírito ( ou mente) o que o
limita é algo que não existe fora dele, mas dentro. Pois a “cela” que mantém um espírito recluso na
incompreensão são determinadas idéias e sentimentos confusos , tais como o
preconceito, o medo, a ignorância, a superstição, etc. Nesse caso, o
espírito é, ao mesmo tempo, o prisioneiro e seu próprio carcereiro. Pois a pior
prisão que pode atingir o homem é exatamente a incompreensão, pois a
incompreensão leva o espírito a pensar erradamente e , como conseqüência,
conduz o corpo a agir equivocadamente. Embora a incompreensão seja algo que
nasce dentro da mente do homem, sua produção no entanto remete às instâncias de
poder que vigoram em uma determinada sociedade
na qual o homem vive. Ao poder político e ao poder da igreja interessa
produzir uma mente pouca expansiva e um
corpo que não sabe agir. E da junção dessa mente pouco expansiva e desse corpo
inapto surge um homem passivo que delega exatamente ao poder político e à
igreja o direito de agir e pensar por ele. Mas sobre isso falaremos mais à
frente.
Deus , segundo Espinosa, é uma pura expansão sem nada que o limite ou
constranja. E ao se expandir, Deus se modifica, produzindo coisas. Essas coisas
que Deus produz são modificações Dele. A palavra modificação deriva do termo
latino modus , de onde vem modo. Sendo assim, tudo o que existe é
um modo ou modificação de Deus, isto é, os seres que existem são modos
diferentes de uma única realidade: a natureza ou Deus. Cada modo é uma
expressão de Deus. Tudo o que Deus cria é , assim como ele, singular. Não existem
dois modos iguais . A essência de cada modo é a sua singularidade ou diferença.
Mas ocorre algo com os modos que é impossível ocorrer com Deus. Como dissemos ,
Deus ou a natureza não é constrangido ou limitado por nada. Os modos, ao
contrário, estão sempre se encontrando uns com os outros. O que define um
modo é o fato de ele estar sempre se encontrando com um outro modo. É
preciso entender as palavras modo e encontro de uma maneira bem concreta. Se assim o fizermos,
não teremos muitas dificuldades para compreendermos o que Espinosa está dizendo. Simplificando
bastante, podemos dizer que não só as
pessoas são modos, mas também as coisas. Assim , quando estamos na sala de
aula, fazemos encontros com os outros alunos ou com o professor. Em casa , encontramos
nossos parentes. Quando estamos no bar, fazemos um encontro com a bebida. Na
festa, fazemos um encontro com a música.Numa manhã chuvosa, fazemos um encontro
com a chuva... Logo, não é difícil entender o que é viver: viver é literalmente
fazer encontros, com pessoas ,com coisas e mesmo com idéias ... Ora, o que
ocorre ou pode ocorrer quando nos encontramos com algo? O que ocorre é simples:
ou aquilo com o qual nos encontramos se
compõe com a nossa maneira de ser;
ou , ao contrário, aquilo com o qual nos encontramos nos descompõe, isto é, não
se compõe com a nossa maneira de ser. Assim , todo modo ( eu, você , a bebida,
a música, etc.) tem uma maneira de
ser— que é nada mais nada menos do
que a essência singular de cada
modo. Quando a maneira de ser ( ou essência) de um modo se combina com a
minha, Espinosa diz que eu tenho, nesse caso, um bom encontro. Quando, ao contrário, encontro um modo cuja maneira
de ser não se compõe com a minha, tenho então um mau encontro. Podemos agora ampliar a noção que demos do que significa viver, e acrescentar: viver
significa fazer encontros, e esses encontros podem ser qualificados de bons ou
maus. Tudo decorre da nossa maneira de ser ( ou essência) e da maneira de ser
dos modos com os quais nos encontramos. Segundo Espinosa, a maior sabedoria
prática que podemos conquistar na vida se resume a esses dois preceitos: evitar
aquilo que não se compõe com a nossa maneira de ser e, ao mesmo tempo, buscar o
encontro com as coisas ou pessoas que se compõem com a nossa maneira de ser ou
essência. Parece muito simples o que Espinosa nos ensina em sua filosofia, pois
cada um de nós, em nossas experiências concretas do dia-a-dia, passamos por
maus ou bons encontros. No entanto, muitas vezes os maus encontros assumem um
poder que submete, pela ignorância, aqueles que caem sob seu domínio . As
perguntas que Espinosa mais nos faz são: o que leva uma pessoa a desejar um mau
encontro? Por que certas pessoas encontram um certo prazer em ter um mau
encontro? Por que os maus encontros governam a vida da maioria da humanidade?
Por que há no mundo uma quantidade imensa de tristeza e constrangimento? A
resposta a todas essas questões passa por um mesmo e único ponto: as paixões. Desse modo, antes de
explicarmos com mais detalhes o que é um bom ou mau encontro, temos ainda de
mostrar o que é , segundo Espinosa, uma paixão.
II -A TEORIA DAS PAIXÕES EM ESPINOSA
A compreensão do que significa uma
paixão exige, antes, que se diferencie dois termos : as idéias e os afetos . Idéias e afetos , segundo Espinosa, são modos do nosso
pensamento, isto é , são modificações de
nossa mente. Por exemplo, quando estamos pensando em um triângulo nossa mente é
modificada de uma maneira totalmente diferente daquela quando pensamos em um
sorvete. Mas tanto o triângulo quanto o sorvete , enquanto neles pensamos, são
modificações de nossa mente, isto é, idéias. O medo também é uma modificação de nossa mente, assim como o amor também o é. Mas amor e medo não são
idéias , mas afetos. Idéias e afetos se distinguem no seguinte ponto: as idéias
são modos representativos .Isto é, as idéias representam algo que existe fora
da nossa mente. Toda idéia, portanto ,tem uma realidade objetiva, pois ela representa um objeto. Por exemplo, a idéia de
“cadeira” representa um objeto concreto, no qual posso me sentar. Assim,
diz Espinosa, a realidade objetiva de uma idéia se estabelece na relação da
idéia com o objeto que ela representa. O afeto, ao contrário, é um modo do
pensamento que não representa nada. Expliquemo-nos melhor: tomemos ao acaso um
afeto qualquer, o amor por exemplo. O
amor não é a representação de alguma coisa objetiva. Pode existir, é verdade,
uma idéia da coisa amada, mas o amor enquanto tal não é representativo. Vejamos
o seguinte exemplo: Marcos ama Maria. Marcos, ao viver o afeto amor, o reporta
à idéia de Maria. Ele associa o afeto que ele sente com a pessoa que ele vê, e
da qual ele possui uma idéia. Num certo dia, tudo começa a ir mal, Marcos se
separa de Maria. Mais adiante, ele encontra Joana. Sente por ela amor. Logo,
ele passa a viver o amor associado a uma nova idéia que remete a Joana. Mas o amor enquanto tal
não era Maria, assim como não é Joana. Mas , na vida de Marcos, o amor era
reportado a Maria, e agora a Joana. Parece haver então, afirma Espinosa, um
primado da idéia sobre o afeto. E isso por uma razão muito simples: para amar é
preciso ter uma idéia, mesmo que confusa, mesmo que indeterminada, daquilo que
se ama. Mas o amor, ou qualquer outro afeto, não é representativo: ele expressa mais aquele que ama do que representa o objeto amado.
Feita essa distinção entre idéia e afeto, podemos agora retomar uma
questão que já abordamos no começo. Segundo Espinosa, cada modo possui duas
coisas fundamentais: um poder de ser afetado e uma capacidade de agir e de pensar. Ora, o
que é ser afetado? Como a própria
expressão sugere, ser afetado é sofrer a ação de algo. Os gregos possuíam uma
palavra para isso: pathos ( que
origina o termo patológico). Em latim, passio ( de onde deriva passional) . Pathos, passio e paixão significam a
mesma coisa: sofrer a ação de algo. Isto é, estar passivo numa relação
qualquer. Ora, é exatamente quando fazemos encontros
que temos a ocasião de sofrer a ação de algo. Segundo Espinosa, as paixões
podem ser tristes ou alegres. As paixões tristes decorrem de
encontros que nós fazemos com modos cuja
maneira de ser não se compõe com a nossa essência : nesse caso, diz Espinosa,
experimentamos uma diminuição da nossa capacidade de agir e de pensar. Um
exemplo bem simples e concreto: o álcool, todos sabem, possui uma maneira de
ser que lhe é própria; inclusive, essa maneira de ser pode ser expressa em uma fórmula química, que
confere ao álcool sua essência e o distingue de tudo o mais que existe. A
partir disso, pode-se pensar a relação do alcoólatra com o álcool da seguinte
forma: a maneira de ser do álcool
expandiu-se sobre a maneira de ser do alcoólatra, a tal ponto que seu sangue,
sua urina, sua saliva, até mesmo o ar que ele expira, quase que é álcool
puro...Quando a maneira de ser do álcool se expande sobre a maneira de ser de
um homem, a tal ponto que este último não consegue viver sem aquilo que o
domina, eis então quando nasce o alcoólatra, isto é, um dependente de uma
maneira de ser ( o álcool) que se expande sobre a sua maneira de ser, a
corroendo e demolindo. Aliás , o que foi dito sobre o álcool vale também para
qualquer outra droga ( lícitas e ilícitas).
Sob uma paixão triste, nós não pensamos , imaginamos; nós não agimos , reagimos. É longa a lista
das paixões tristes. Citemos as principais: ódio, inveja, rancor, avareza,
cobiça, etc. As paixões tristes produzem impotência, isto é, uma diminuição da
capacidade de agir e de pensar. É
preciso entender tristeza em um sentido bem amplo. Inclusive, Espinosa
chega a dizer que existem alegrias que derivam das paixões tristes, mas são
alegrias indiretas ( por exemplo, o invejoso experimenta uma certa alegria na
infelicidade alheia).
A paixão alegre ocorre quando fazemos encontros com outros modos que se
compõem com a nossa maneira de ser: ao sermos então afetados, experimentamos um
aumento da nossa capacidade de agir e de pensar. Expandimos, de alguma forma, a
nossa maneira de ser.
Assim, podemos ser afetados por modos que aumentam ou diminuem a nossa
capacidade de agir e de pensar. Como exemplos de paixões alegres, Espinosa cita
a admiração , a generosidade, a honra, a
modéstia, a simpatia, a amizade , o amor e a coragem. Mas é preciso ter a
atenção voltada para o seguinte ponto: assim como temos a capacidade de sermos afetados pelos
modos com os quais nos encontramos, também possuímos o poder de afetar os outros modos. Assim como um modo pode nos afetar de amor , também
podemos afetar outros modos com esse e outros afetos. Logo, todo modo tem o
poder de afetar e de ser afetado. E tudo se passa nos encontros. Em sua grande
obra intitulada exatamente Ética, Espinosa nos mostra que os afetos que
governam nossa vida pessoal reportam-se à maneira pela qual a sociedade está
organizada: quanto menos democrática a sociedade for, mais paixões tristes
serão necessárias para o poder político manter os indivíduos na impotência e na
passividade. O exame dessa questão conduz Espinosa a tratar do problema da
liberdade.
III- ESPINOSA
E O PROBLEMA DA LIBERDADE
Em sua obra principal, que, como
já dissemos , se intitula exatamente Ética, Espinosa empreende uma
crítica à idéia de liberdade enquanto livre
arbítrio. Segundo essa tese, o homem
nasce livre e, pela sua vontade, pauta a sua conduta buscando o Bem , afastando-se
assim do Mal. Segundo Espinosa, temos aí
três idéias completamente abstratas: 1º a idéia de que o homem nasce livre; 2º
a idéia de que existe o Bem; 3º a idéia de que existe o Mal. Para Espinosa, ao
contrário, o homem não nasce livre, pois
a infância representa, segundo ele, o período da vida no qual o homem está mais
dependente. E para Espinosa, a dependência é exatamente o sentimento que traduz
a vida de um escravo. A dependência é a pior das paixões. Então, segundo
Espinosa, a liberdade é algo que se conquista ou não. Embora o homem não nasça
livre, ele pode, no entanto, tornar-se livre. E isto, como já assinalamos, está
estreitamente ligado com a forma de organização política e exercício de poder
de uma determinada sociedade.
O Bem e Mal nada significam: são idéias abstratas, que não traduzem nada
de concreto. Existem, isto sim, o bom
e o mau. O mau é aquilo que nos impede de sermos livres; o bom,
ao contrário, é aquilo que nos possibilita um aumento de potência, de alegria. Ser livre
é expandir-se, aumentar a capacidade de agir e de pensar. De nada adianta ser
livre apenas no pensamento e ser um escravo na ação. Ser livre implica
conjuntamente essas duas coisas: pensamento e ação. Só conquista a liberdade de
agir aquele que , ao mesmo tempo, conquista a liberdade de pensar. Uma ação
livre implica um pensamento livre ( e vice-versa). Um tirano não é livre, pois
ele precisa de um servo ou escravo. E ser livre, para Espinosa, é não ser, em
uma relação, nem tirano e nem escravo. A
questão é: como nos expandir sem tiranizarmos os outros? Ou como ajudar a
expansão dos outros sem nos tornar seu escravo? Somente através daquilo que
Espinosa denomina bons encontros , isto é, as paixões alegres.
Segundo Espinosa, somente podemos ser livres através dos encontros. Não
se pode ser livre se isolando totalmente dos encontros com pessoas ou coisas.
Por isso, jamais a ética ou a liberdade poderão ser questões que dependam de um
texto normativo ou de uma instituição estatal. Pois a liberdade é algo que se
exerce nas relações efetivas e diretas. É preciso, diz Espinosa, lutar pela
criação de preceitos normativos que
favoreçam o exercício das relações de expansão das capacidades de agir e
de pensar dos indivíduos. Pois a fonte efetiva do direito emana da potência singular
dos indivíduos — e não de Deus, do Papa
ou do Príncipe ( ou do Capital, podemos acrescentar hoje...) .
Mas também é preciso não viver “ao sabor” dos encontros. Pois somente
somos livres verdadeiramente quando
estamos na plena posse da nossa capacidade de agir e de pensar. As paixões
tristes nos separam da nossa capacidade de agir e pensar, e é por esse motivo
que Espinosa afirma que elas nos tornam impotentes, dependentes, escravos. Mas
há uma dependência positiva: as paixões alegres, pois são dependências em
relação a coisas que não nos dominam ou enfraquecem, pois elas nos ajudam, de
alguma forma, a obter um aumento de potência. Mas mesmo as paixões alegres
implicam ainda uma certa passividade, na qual apenas reagimos e imaginamos, em
vez de agir e pensar.
Portanto, só nos tornamos verdadeiramente ativos quando estamos na plena posse do nosso poder de agir e de
pensar. Estar na plena posse do nosso
poder de agir e de pensar é mais importante do que as paixões alegres. Pois
quando estamos na plena posse do nosso poder de agir e de pensar, aprendemos ,
ao mesmo tempo, a selecionar nossos encontros: não estamos mais ao sabor dos
encontros. Conquistamos a mais intensa das alegrias, que é também a mais
expansiva das liberdades: a alegria de pensar e de agir livremente. Podemos
viver passivamente a coragem e a honra.
Isto é, mesmo estando passivos em relação aos modos que nos provocam a coragem
ou a honra, podemos ainda assim
experimentar uma expansão da nossa capacidade de agir e pensar corajosa e honradamente.
Mas , diz Espinosa, para viver a coragem
e a honra de maneira mais intensa, é preciso que saiamos da passividade
ou da dependência: provocar a coragem e a honra, em vez de esperar que um modo
nos provoque tais afetos. Somente quando somos
ativos é que nos tornamos capazes de
produzir efeitos positivos nos outros
, em vez de esperar que os outros nos produzam tais efeitos. Mas a
questão certamente não é tão simples, pois é preciso, em primeiro lugar,
aprender a selecionar os encontros
.Nem todo encontro pode nos possibilitar a amizade, nem todo encontro pode nos
trazer amor, nem todo encontro pode nos fazer sentir honrados .E o problema se
torna mais grave quando se vive em um campo social e político que não pára de produzir meios para causar
nos indivíduos maus encontros, gerando dessa forma tristeza, impotência ,
ignorância e escravidão das mais variadas formas.
Ser livre e ético, enfim , é aprender a selecionar os encontros e buscar aqueles que possam nos trazer
alegria, liberdade. Assim, aparece a verdadeira função da filosofia : auxiliar
o homem na obtenção de um maior aumento de compreensão, para que ele possa
desse modo agir melhor, seja no plano pessoal , profissional ou político .
A imagem do filósofo como um homem fechado dentro de sua riqueza interior
e procurando aí a segurança e verdade que faltam ao mundo exterior, tal imagem
se deve sobretudo à famosa frase de Descartes: “Penso, logo existo” . E é até
com uma certa razão que o senso comum
considera tais frases abstratas e
sem nenhuma relação com o mundo prático. No entanto, o mesmo não se pode dizer
de Espinosa. Para Espinosa, o correto é afirmar : “Penso, logo sou capaz de agir
ativamente”.
Como em uma música, trata-se de aprender a compor : buscar aquilo que se compõe
com a nossa maneira de ser.
OS TRÊS
GÊNEROS DE CONHECIMENTO EM ESPINOSA
O
meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar
pelas estradas
Olhando para a direita e
para a esquerda,
E de vez em quando olhando
para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu
tinha visto,
E eu sei dar por isso muito
bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao
nascer,
Reparasse que nascera
deveras...
Sinto-me nascido a cada
momento
Para a eterna novidade do
Mundo...
Fernando Pessoa.
Em minha opinião, os artistas, os sábios e os filósofos, parecem muito
atarefados em polir lentes. Um dia a lente será perfeita; e nesse dia todos nós
perceberemos claramente a extraordinária beleza deste mundo...
Henry Miller.
Ao longo de sua obra Espinosa distingue três tipos de
conhecimento. São eles: o primeiro gênero
de conhecimento, o segundo gênero de
conhecimento e o terceiro gênero de
conhecimento. Embora todos os homens tenham condições de chegar aos três
gêneros de conhecimento, a grande maioria vive toda sua vida apenas dentro do
primeiro gênero ( os homens da multidão) , pouquíssimos chegam ao segundo
gênero ( os homens da ciência) , e menos ainda conseguem atingir o terceiro
gênero. Aquele que chega até o terceiro gênero, torna-se um sábio, isto é, um homem capaz não apenas de pensar com compreensão , mas também de agir com virtude. E as três virtudes
básicas do sábio são: a coragem, a justiça e a generosidade. No entanto,
Espinosa reconhece que não é fácil chegar até a esse terceiro gênero de
conhecimento. Pois tudo aquilo que é verdadeiramente importante em nossas vidas
tem um grau de dificuldade muito grande para se alcançar, já que tudo aquilo
que é verdadeiramente importante é ,por essência, raro. E ,segundo Espinosa, para chegarmos a
ser verdadeiramente livres temos que alcançar esse terceiro gênero de
conhecimento. Mas antes de tentarmos explicar melhor esse terceiro gênero de
conhecimento, temos antes de tratar dos dois primeiros tipos de conhecimento.
O primeiro gênero de conhecimento é aquele que obtemos
de duas maneiras: por “ouvir dizer” e
por experiência sensível. Por
exemplo, sei que o Brasil foi descoberto em 1500 por ouvir dizer ( já que eu não estava lá para ver); igualmente, é por ouvir dizer que sei que Tiradentes foi o mártir da Independência. Ou seja, o
conhecimento por ouvir dizer é aquele
que depende de um relato feito por
outrem ( seja esse relato feito
verbalmente ou por escrito, tal como acontece quando lemos um livro de história
nos informando sobre o que aconteceu no passado), e depende fundamentalmente da
imaginação. Quando tal conhecimento se apóia em provas, ele nos fornece uma certeza.
Assim , podemos ter uma certeza acerca de quando o Brasil foi descoberto porque
há provas. Quando o conhecimento por ouvir dizer não fornece provas
documentais, ele então se torna um objeto de crença. Sua validade repousa não em provas, mas na autoridade
de quem difunde tal conhecimento. Por exemplo, as religiões que se fundamentam
em textos escritos nos fornecem um tipo de conhecimento por ouvir dizer , que
só tem um efeito de verdade sobre nós se nos dispormos a ter uma crença sobre o
que foi relatado. Embora seja um tipo de conhecimento por ouvir dizer , ele não
nos fornece uma certeza, mas uma fé. Por isso, ele se endereça mais à
nossa imaginação do que à nossa razão ( por exemplo, quando no Gênesis, que é o primeiro livro da
Bíblia, Deus afirma que, por ter pecado,
Eva teria por castigo sentir dor na hora do parto, tal passagem nos faz
conhecer algo por imaginação, e não pela razão).
Como já dissemos, o conhecimento do primeiro
gênero também pode ser por experiência sensível, isto é, pela
experiência mediante os órgãos dos sentidos. Por exemplo, é por experiência
sensível que sei que o metal conduz mais calor do que a madeira. É igualmente por
experiência sensível que sei que a água do mar é salgada. Enfim, enquanto o
conhecimento por ouvir dizer requer uma mediação por “símbolos” (quer estes
símbolos sejam imagens ou palavras escritas ou faladas), o conhecimento por
experiência sensível ocorre de maneira imediata, em um aqui e agora.
O segundo gênero de conhecimento é
aquele mediante o qual descobrimos conexões
necessárias entre as coisas, isto é, leis.
Este tipo de conhecimento é próprio da ciência, que é o conhecimento racional
dos fenômenos. O segundo gênero de conhecimento nos fornece verdades
sustentadas pela própria razão, e não pela fé e pela imaginação. E a autoridade
que descobre essas verdades e as mantém, não é a autoridade religiosa ,
mas a autoridade da razão. E pela razão, nada nos prova que a dor ocorre no parto porque Eva
pecou, e sim porque há uma dilatação
forte nos órgãos reprodutores da mulher, fato esse que ocorre em
qualquer mamífero superior fêmea. O segundo gênero de conhecimento é aquele que
procura evidenciar como as coisas exteriores a nós realmente são — e não como
os homens imaginam que elas sejam.
O terceiro gênero de conhecimento é
aquele que descobre não exatamente as conexões necessárias e leis que determinam a existência das coisas
exteriores a nós, mas sim é um tipo de conhecimento que nos possibilita
experimentar a liberdade que emana de dentro de nós. Assim, o segundo gênero de
conhecimento descobre que a pedra não é livre, pois quando a pedra por algum
motivo se move (tal como acontece quando lançamos uma pedra em um rio) , tal
fato se deve à ação de algum outro corpo sobre ela. Logo, a pedra não age, mas
sim reage . Contudo, o terceiro
gênero não visa a um conhecimento das coisas externas, mas sim daquilo que nós
mesmos somos enquanto espírito. Assim, pelo terceiro gênero de conhecimento
descobrimos que podemos ser ativos, isto é, causa
de nossas próprias ações . Pois ser livre não é reagir a uma ação externa , mas
sim ser a causa da própria ação que executamos. No entanto, devido ao fato de
os homens viverem sempre subordinados às coisas exteriores, eles muitas vezes
se comportam como as pedras: eles não agem , apenas reagem ( e são lançados de
lá para cá em busca das coisas materiais que agem sobre eles e governam suas
vidas, e nas quais eles imaginam estar a felicidade que eles buscam).
O terceiro gênero de conhecimento não se
aprende em nenhum livro de filosofia, e muito menos na Bíblia ou no Corão. Pois
ele é um conhecimento que se adquire diretamente na vida, pela compreensão da
natureza , isto é, de Deus. Pois Deus , para Espinosa, nada mais é do que a
natureza. Enquanto o primeiro gênero de conhecimento requer de nós a obediência
a-crítica em relação àquilo que nos
querem fazer acreditar que seja verdade, e enquanto o segundo gênero nos mostra
as leis que regem as coisas exteriores a nós, o terceiro gênero, ao contrário ,
visa a nos libertar de toda e qualquer obediência e superstição, bem como tenta
nos mostrar que podemos, pela compreensão, nos transformar. Tal como aquele
garoto do filme Beleza Americana que
conseguiu apreender, em um simples evento banal do dia-a-dia , a força poderosa que está presente em todas as
coisas. Ali ele pôde adquirir um conhecimento que transformou a ele e à garota
que vivia quase que exclusivamente dentro do primeiro gênero de conhecimento. E
os olhos da menina, ao verem e
compreenderem a presença da misteriosa beleza no seio de um fenômeno tão comum
e banal ( e que quase ninguém tem olhos para ver), os olhos dela se enchem de
lágrimas — lágrimas estas que não são de dor
ou tristeza, mas de uma alegria que a compreensão filosófica pode
fornecer às pessoas, transformando-as em sua maneira de perceber, compreender e
agir sobre o mundo.
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