quarta-feira, 5 de março de 2014

ensaios de pop'filosofia



     

                                                          

(trechos do livro)


                                               SOBRE A HERMENÊUTICA


                                   Cuidai do sentido, e as palavras
                                                                                irão por si mesmas ao lugar certo.
                                                Lewis Carroll

 A palavra “hermenêutica” tem como raiz o nome de um deus grego: Hermes. Na mitologia, Hermes faz par com  a deusa Héstia. Esta última  era a deusa que se manifestava junto à lareira. No recinto da casa do cidadão, como centro da vida privada, a lareira  representava um papel análogo ao da ágora para a vida pública. De fato, a ágora era o centro da vida pública ou política, pois ela era a praça na qual, usando a palavra, os cidadãos procuravam governar a  cidade.
No espaço privado de suas casas, o cidadão deixava de ser homem público, tornando-se chefe de família: diante da lareira, ele conversava com seus familiares e os ouvia, sempre tendo como testemunha a lareira. Em grego, a palavra que corresponde a “lareira” é “omphalus”, que significa também “umbigo”, pois os gregos achavam que a lareira era o umbigo que ligava a família ao passado imemorial, a casa eterna onde agora viviam todos os seus ancestrais.
Hermes, por sua vez, tinha por espaço de manifestação exatamente a porta. Pois a porta é o lugar de fronteira entre a casa e a rua, entre o espaço privado e o espaço público, entre a família e a sociedade, entre o sangue e a política, enfim, entre o dentro e o fora.  Hermes, portanto, é o mais fugidio dos deuses, posto que seu território não possui espessura. Não obstante, não se vai de um território a outro, não se comunicam as positividades, sem que o território de Hermes seja percorrido. Território feito de limiares, cravado entre os espaços do mundo.
A vinculação desse deus com a prática da hermenêutica fica clara se atentarmos para o fato de que a hermenêutica é uma forma de interpretação. E interpretar algo é, de certo modo, colocar-se na “porta” entre o nosso mundo subjetivo e a realidade objetiva (seja esta a realidade de um fato, de uma teoria, de uma lei ou de um comportamento).
Eis então a suprema lição que nos deixam os gregos: não interpretamos apenas a partir de nós mesmos (pois, nesse caso, forneceríamos apenas opiniões),  tampouco podemos interpretar algo de forma neutra, apagando o nosso mundo interno.
Interpretar, portanto, é colocar-se na fronteira que separa/une a nossa subjetividade da objetividade da coisa a ser interpretada. Nesse sentido, interpretar é uma arte.



                                                               

                                                       THEORIA


                                                                         a  Michel Serres e Marcel Proust



Boa parte dos sofrimentos humanos advém do fato de o homem não poder ver a tudo que gostaria de ver. Temos apenas dois olhos, é sabido ─ e estes   abarcam uma porção limitadíssima do espaço visível. Ver é, de certa forma, não ver um campo infinito de perspectivas que não são as nossas. Como a lanterna que ilumina um cômodo escuro, o facho de luz do nosso olhar luta para vencer a escuridão que se esquiva.
Mas os primeiros a sofrerem com essa limitação do ver  não foram os humanos, e sim os deuses gregos. Por exemplo,  Hera, esposa de Zeus, sofria de tal forma com esse fato que  não lhe sobrava sossego para mais nada. E a causa de seus sofrimentos era exatamente seu marido, Zeus. Ela sofria quando Zeus não estava sob seus olhos, e isso acontecia freqüentemente. A ausência de Zeus inquietava Hera, mergulhando-a numa ignorância que ela não conseguia vencer. Seu  ciúme pedia um instrumento, ele queria criar olhos ─ e assim ver, saber, tomar ciência. Hera  precisava vencer a ignorância: ela desejava   encontrar um meio de ver Zeus todo o tempo, sem que ela fosse, no entanto, vista. Um ver que lhe deixasse neutra, mas sempre presente, vendo.
Entra em cena então um deus que irá auxiliá-la nessa tarefa: Panoptes. Este deus tinha por peculiaridade poder transformar-se em qualquer coisa, possuía ele o dom da metamorfose. Para cumprir  a tarefa que Hera lhe solicitava, e para ser os olhos da deusa vigiando Zeus onipresentemente , ele  se transformou então num animal: o pavão. Quando este abria a cauda, mil olhos se mostravam, a olharem em todas as direções  ─ vigiando, sem trégua, Zeus.
A esse olhar que vê sem deixar escapar nenhuma brecha por onde o olhado poderia  velar-se , a esse  olhar que desvela todo ocultamento, a esse olhar os gregos deram um nome:  Theoria. Não é um olhar que   revê ou antevê, num passado longínquo ou num futuro distante, o que o tempo já apagou ou ainda não criou. Rever  ou antever  são práticas dos profetas ou adivinhos. O olhar da theoria , ao contrário, é um puro ver instantâneo, sem tempo, sem fantasia; que vê, num instante, todos os “agoras”  simultâneos.  Como fruto do ciúme, a theoria é o desejo de abolição do mistério: paixão pela verdade, antítese do  amor.

                         
    

                         DAS FORMAS DE SE PESCAR


  
A ciência, que opera com conceitos, assemelha-se à pesca com rede: ao ser lançada, a largura da malha já pré-determina que peixes a rede pode apanhar. A ciência é uma rede com malhas largas: o peixe sutil escapa-lhe sempre. A rede da ciência não foi feita para pegar um peixe que seja singular, pois lhe interessa apenas os cardumes: a rede da ciência fora feita para apanhar quantidades e grandes números; por esse motivo, escapa-lhe sempre o peixe único. A rede da ciência é o conceito universal, a categoria geral.
Já a filosofia se assemelha à pesca com anzol: interessa-lhe o peixe único, singular. Para atrai-lo é preciso toda uma arte de confeccionar iscas. E também paciência, que é a arte de criar orelhas para ouvir atentamente o que tem a dizer o tempo, que é o rio onde o anzol é lançado. O peixe morde a isca quando ele quer, e não quando  nós queremos.
Não por acaso, o anzol tem o formato de um ponto de interrogação. O peixe que a filosofia quer fisgar é o sentido. E na ponta do anzol-interrogação a filosofia põe a sua isca: a idéia.




O ANTROPÓLOGO, O ÍNDIO, DUCHAMP E A CONTRACULTURA

 Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos.

                   Paul Valéry.

Certa vez, na década de 50, um antropólogo inglês  realizava  uma pesquisa de campo numa tribo africana. Ao entrar na oca de um índio, o antropólogo se deparou com um acontecimento inesperado e desconcertante: pendurada na parede da habitação indígena estava uma máquina de escrever. E naquela época, a máquina de escrever representava mais ou menos o que hoje representa um computador, ou seja, o símbolo técnico do  desenvolvimento intelectual da cultura branca letrada.
Entre nós, “civilizados”,   sabemos qual o significado de uma máquina de escrever, pois seu sentido é construído tendo com referência a sua utilidade. De fato,  o senso comum costuma pensar que o sentido de toda e qualquer coisa se explica pelo seu uso objetivo,  aceito por todos como “normal”. No entanto, na parede da oca a máquina era tão somente um objeto decorativo sem nenhuma função  ou significado aparente, e ali permanecia como presa estranha da kunstwollen[i] do primitivo.
Talvez fosse até mesmo impróprio chamá-la pelo nome que nós a designamos, pois ela já não era mais uma “máquina de escrever”: despida da designação costumeira mediante a qual a reconhecemos como algo que nos é familiar e conhecido , a máquina agora se tornara  algo que nenhuma de nossas palavras conhecidas poderia representar. E ali estava ela, como um artefato que já não servia mais para alguém datilografar pensamentos, mas que  no entanto agora estava servindo  para inquietar o antropólogo , e assim forçá-lo a pensar.
Apesar de ter seu espírito carregado de dúvidas, o antropólogo nada perguntou ao indígena a respeito do objeto que estava em sua parede. De volta a Londres, o pesquisador se pôs pensativo sentado à sua escrivaninha de trabalho e diante da sua máquina de escrever. Subitamente, ele olhou para a parede de sua sala e viu repetido nela o acontecimento que o surpreendera na habitação indígena: pois pendurados diante de seus olhos estavam um arco e flecha... Então, o antropólogo pôde compreender, através da atitude que ele mesmo tomara em relação aos objetos técnicos da cultura indígena, o gesto do indígena em relação à máquina de escrever.
Fora da cultura ou do território simbólico de referência, qualquer objeto pode entrar em um devir eminentemente estético, que traduz o seu caráter “inútil”, desterritorializado— isto é, não pertencente a um território que nos seja habitual. E é essa “inutilidade”, passível de sobrevir a toda e qualquer coisa, que nos permite aprender algo de importante sobre nós mesmos e sobre a nossa própria sociedade , para a qual o valor supremo   é exatamente o da utilidade.
Paradoxalmente, para compreender  melhor o valor mais propalado  de nossa civilização, foi preciso que o antropólogo se achasse  numa outra sociedade, em tudo diferente da nossa, e descobrisse aí que a compreensão verdadeira  de alguma coisa exige que tomemos distância não apenas da própria coisa, já que  precisamos também nos afastar sobretudo de nós mesmos ,  do nosso irrefreável impulso , como dizia Nietzsche, de nos esquecermos de que somente  reencontramos nas coisas aquilo que nós mesmos nelas colocamos. O ato de reencontrar é próprio  à (cons)ciência, mas o ato de colocar somente se explica se entendermos que o fundamento de tudo é a criação, a arte.
Por esse motivo,  a atitude do índio para com a máquina de escrever talvez também nos possa ensinar algo a respeito dos problemas colocados   pela arte contemporânea. Pois, de maneira geral,  a visão que o artista tem do mundo   efetiva-se ao elevar à condição de artifício (isto é, de objeto criado ou inventado) todo e qualquer objeto  que o senso comum toma como dado ou natural. Para o artista nada é óbvio . Nesse sentido,  o artista se parece um pouco com uma criança. E dentre todas as pessoas de nossa sociedade, as crianças são aquelas que, por sua inocência, mais se assemelham aos índios.  O artista sabe que tudo aquilo que tem um sentido padrão e inquestionável hoje, um dia foi inventado por alguém .Tudo é produção, arte : eis o que o artista  descobre ao exercer em si mesmo o tornar-se estrangeiro em sua própria civilização e pátria, tornando-se um índio no seio de sua própria cultura “civilizada”, pois é com um olhar semelhante ao do índio sobre a nossa cultura que o artista, dentro de nossa própria sociedade “civilizada”,  olha para as coisas que para o senso comum parecem óbvias e com um sentido acabado.  É curioso notar que “estranho” e “estrangeiro” têm uma mesma raiz semântica, e significam originalmente  “aquilo que foge ao padrão e ao comum” .E dentre os artistas contemporâneos, ninguém mais do que Duchamp nos mostrou, com seus ready-made, o caráter problematizador  e inventivo da arte. Ninguém mais do que Duchamp fez brotar ,no seio da cultura,  as forças da contracultura: as forças criativas e inovadoras da arte. Diante das obras de Duchamp, nos sentimos um pouco como aquele antropólogo que descobriu, em meio ao habitual e ao comum, o inesperado e o novo.
Por isso , se quisermos sair da posição de passividade que nos leva a reconhecer nas coisas significados prontos e inquestionáveis , devemos  olhar para as coisas tidas por “úteis”  e “objetivas” com um certo olhar de estranhamento e de questionamento, como se em nós morasse, livre e insubmisso, um eterno índio ou um eterno artista — cuja principal obra a criar  fosse não exatamente um quadro ou uma escultura, mas a sua própria vida :  para assim produzir, como queria Foucault,  uma existência  bela.

[1] Kusntwollen : termo técnico alemão originado dos estudos artísticos, e que significa “vontade artística que conduz o artista, ou alguém, a criar uma obra de arte”. Kunst = arte + wollen= vontade.










                        
        PEQUENA CARTOGRAFIA DE UMA SUBJETIVIDADE LARVAR

     O menino experimental, declarando superado o manual de      
      1962, corrige o professor de fenomenologia.
      O menino experimental decreta a alienação de Aristóteles.
      Expulsa-o da sua zona, com a roupa do corpo e amordaçado.
      O menino experimental confessa-se ateu e à toa.

    Murilo Mendes, O Menino Experimental

Os eus são sujeitos larvares.

                      Gilles Deleuze, Diferença e Repetição



A criança gira, gira, gira...De repente, ela pára o movimento rotativo e tenta fixar o olhar nas coisas à sua volta. Mas o mundo continua a girar, inadvertidamente. Então, na impossibilidade de fixar o olhar, a criança ri, depois se espanta, olha assustada, tapa os olhos como que querendo fazer cessar o jogo que ela mesma iniciara. No entanto, esse jogo, depois de iniciado, posto em movimento, reduz aquele que brinca à posição de espectador passivo, que deve aguardar que o mundo pare de girar por si mesmo, tal como a água de um copo que o movimento rotativo de uma colher fez transformar em rodamoinho. Mais do que nunca , o mundo então se expressa como um acontecimento cuja essência é o tempo. Nessa brincadeira, a criança brinca não com um objeto ou brinquedo específicos. Pois ela faz do mundo inteiro um brinquedo. O mundo gira feito um pião. O chão, o céu, as cabeças, as idéias, o infinito: tudo rodopia ao redor do eixo minúsculo, centro singular do turbilhão.
O que tal brincadeira despretensiosamente  nos ensina? Decerto que não é o mundo físico que gira. O que rodopia e deixa a criança tonta é o mundo tal como aparece  para ela. É uma representação que gira, fazendo também girar o mundo que a criança acredita existir fora dela própria—  como se este fosse uma máscara que, quando puxada, levasse consigo o rosto que ocultava, e que no entanto lhe moldava uma feição familiar. Embora ela saiba que o “mundo verdadeiro” não está girando de fato, a sensibilidade só lhe mostra isto: que o mundo está a girar, de direito.
O girar desse mundo que se apresenta no jogo não é uma ilusão ,alucinação ou devaneio. O mundo não gira “dentro”  da subjetividade da criança: ele gira fora, mas sem estar objetivamente girando....Sua subjetividade se vê comprometida com a imanência de um fora que se lhe torna mais íntimo que toda interioridade psicológica . Pois fora da criança está aquilo que se encontra a girar — sem que ninguém, exceto ela mesma, possa perceber tal fato.
 Nós que estamos nesse mundo, involuntariamente fazemos parte do jogo que a criança voluntariamente iniciou. Mas não depende mais de sua vontade fazer cessar o jogo que seu desejo começou. Ela deve contemplar o mundo oferecido sob a forma de brinquedo infinito e sublime, cujo cardo coincide com uma kunstwollen  pré-egóica, que maquina o mundo como objeto de uma produção.  O mundo continua sendo o mundo: há os prédios, os automóveis, as guerras, os papéis de bala que o vento carrega, as nuvens que nos espiam. Aliás, o mundo está até mesmo a girar sobre seu próprio eixo sem designo. Mas a criança lhe acrescenta um outro movimento, de cuja força não participa alavanca ou músculo, mas apenas o desejo do lúdico e da transformação. Terra em transe.
O sentido supremo desse jogo é fazer descolar-se da superfície do mundo visto, o seu simulacro sem peso , volume ou espessura. O mundo como um puro sentido com o qual se pode brincar. Acontecimento  ideal acrescido ao estado de coisas. Menos do que uma coisa e mais do que uma mera imagem , o mundo  tremula sobre o limiar que separa o dentro e o fora, o psíquico e o físico. Ele se torna um mundo puramente ótico sobre o qual não se pode agir, mas sobre o qual as coisas vivas e não-vivas indistintamente deambulam.
 Desse modo, embora a árvore que vemos seja , para nós que não giramos, um dado fixo, para o menino que olha para a mesma árvore esta lhe aparece como uma imagem em movimento. O garoto brinca com a objetividade, e há qualquer coisa de inocente nessa brincadeira. Filosofando com seu próprio corpo e espírito,  diante de seus olhos desfila uma concreta metafísica.  Ele se metamorfoseia ,assim, em um  menino experimental: o Hume que todos nós fomos quando tínhamos  7 ou 8 anos— o qual desaprendemos , pouco a pouco,  de ser .E se a árvore que vemos lança suas raízes ao subsolo da terra, para aí se prender, a mesma  árvore pelo menino vista , árvore virtual panpsíquica, prende suas incorporais raízes no espírito que a contempla, para aí se mover.




                                        O DESCOBRIMENTO DO BRASIL


No filme “O Descobrimento do Brasil”, de Humberto Mauro, podemos encontrar uma tese original, que só o cinema poderia construir. Uma tese não-acadêmica, em tudo indefensável, posto que não é teoremática, mas problemática. Escrita não com palavras, e sim com imagens. Mais do que uma tese para ser ouvida, o filme é uma tese para ser vista .Uma tese sobre o nascimento do Brasil.
O filme em questão é um misto de ficção e documentário, e fora feito na década de trinta. O filme revela um embate, uma contenda, entre aquilo que o texto pode representar (enquanto documento histórico) e aquilo que lhe permanece fora, como dado a-histórico, e que a imagem se incumbiria de expressar. Se o texto pontua o consenso historiográfico mais ou menos aceite, a imagem é a acentuação de uma perspectiva, é o “dar a ver” de um problema que não está no passado, mas no presente ( e que , por isso mesmo, se endereça a nós, brasileiros do início do século XXI).
O primeiro fato a impressionar no filme é a direção dos figurantes, já que estes últimos eram descendentes dos primeiros índios que aqui estavam quando da chegada dos portugueses. O filme se passa em Porto Seguro, e  começa com os primeiros contatos entre índios e portugueses. Dizem os documentos escritos que esses primeiros encontros foram amistosos, e o diretor procura pontuar isso com closes dos rostos indígenas. Desse modo, o filme tem boa parte de sua construção apoiada numa apresentação afetiva , cujo pólo   é o rosto.
Como se sabe, a Europa vivia, no século XVI, confrontos de ordem religiosa. E como pátria cristã que era, Portugal se via na missão de batizar o território pagão recém descoberto. Deveria então ser providenciado o símbolo cristão por excelência: a cruz. Tarefa essa por demais fácil de ser realizada, já que bastava entrar na floresta e escolher as melhores árvores apropriadas para tal fim. E foi o que os portugueses de pronto fizeram, com machados em punho. E os índios, na deles, desconheciam os propósitos portugueses, e tampouco sabiam para que servia um machado.
Na seqüência, o filme mostra então os portugueses entrando na floresta , com os índios a seguir-lhes, calmamente. Porém, em pouco tempo algo de estranho começa a se passar, os rostos mostram-se cada vez mais tensos. À medida que os portugueses avançam rumo ao seio de floresta, os rostos dos índios contorcem-se de temor e preocupação. Ao chegarem à  parte mais cerrada da floresta, os portugueses examinam e apalpam as árvores, entrevendo aquelas que melhor serviriam ao ânimo religioso que lhes movia. Entre os índios, o paroxismo  aumenta : tudo leva a crer que seus rostos gritam em desaprovação  àquela investida portuguesa. Alheios aos protestos  que não entendiam, os portugueses prosseguiram em seu intento, rapidamente as árvores foram escolhidas. E quando a primeira machadada foi desferida contra o tronco da árvore mais bela que ali havia, os índios fugiram em disparada, como se algo dentro deles tivesse também sido atingido. Os índios desaparecem.
Levados para a praia, os troncos de duas  árvores se viram transformados então em cruz . Em meio à missa, os índios reaparecem .Como que hipnotizados pela cruz, aos poucos eles se vão aproximando dela, como que a querer tocá-la, mas para isso lhes faltando coragem. Em seus rostos , uma expressão inquieta, misto de reverência aturdida e temor resignado. Foi aí então que o capelão desferiu mais ou menos as seguintes palavras: “Vejam a maravilha da qual somos testemunhas. Nesse canto escondido da Criação, até mesmo essas bestas nuas reconhecem, e se submetem, ao poder superior de Nosso Salvador!”. Contudo, não era exatamente isso o que se passava. Pois o que os índios realmente viam ali não era a cruz enquanto símbolo de uma Transcendência que lhes pedia a obediência. O que eles viam realmente ali eram dois Ancestrais  capturados, retirados do território sagrado que desde sempre lhes pertencera: a floresta . Já que, entre eles, as árvores de determinado território da floresta funcionavam como um campo religioso imanente, onde os Heróis  e Ancestrais encontravam guarida eterna, entre as pedras, os ramos e os ninhos das aves.
Era, portanto, um mesmo corpo material ( o tronco das árvores) com dois sentidos completamente distintos : símbolo daquele que morreu na cruz para nos libertar , Ancestrais roubados da eternidade e feitos prisioneiros por um povo estranho. E um desses sentidos deveria morrer ( ou ser morto) para que o outro pudesse assegurar seu poder   não apenas sobre aquela pequena parte material da floresta que lhe servia de significante, mas também sobre a natureza inteira. Sobre até mesmo as almas e os corpos dos índios.
O filme de Humberto Mauro nos mostra um etnocídio .O etnocídio é um conceito recente da Antropologia Política. Ele difere do genocídio, que é seu parente próximo. No genocídio ocorre o extermínio do corpo e da alma de um povo; já no etnocídio mantém-se o corpo vivo, mas captura-se a alma. Mantém-se o corpo vivo para fins de trabalho, escravizando-o, marcando-o com os sinais e signos do poder que sobre ele se exerce; captura-se a alma a partir de construções simbólicas que apresentam do  mundo uma imagem que interessa àqueles que a capturam, tentando assim inocular-lhe uma crença cuja função será agrilhoar-lhe , além do corpo, o próprio espírito.
O etnocídio produz a subjetividade que interessa ao poder. E esse poder operará de duas formas: desterritorializando a subjetividade indígena de seu antigo território; e reterritorializando essa mesma subjetividade em um sistema de referência simbólico do qual os índios não são os criadores.O etnocídio assassina uma visão do mundo singular e submete a alma que lhe era imanente  à hegemonia de uma visão de mundo que se quer representante  da Transcendência que criou o mundo do qual se tem a visão. O etnocídio necessita assim de uma transcendência metafísica, que lhe confere o poder de destituir de sentido as visões de mundo que não são a sua própria.
Todavia  é preciso ressaltar que o território, tal como aqui é trabalhado,  não é apenas físico, mas  também psíquico e semiótico, pressupondo, ao mesmo tempo, representações mentais, ritmos e imagens corporais e  um sistema de signos como universo incorporal  que dá consistência a um  território existencial, dentro do qual a subjetividade constrói um sentido para si mesma, para o socius e para o próprio cosmos. O etnocídio mata a alma em seu território existencial singular e próprio e a escraviza em um território simbólico tributário de uma transcendência  que tem na igreja e no Estado os seus representantes.
O que o etnocídio faz é retirar a singularidade do território existencial, esvaziando este de sentido e fazendo-o depender de  um território artificial cujo sentido provém dos códigos : seja o código moral, o código jurídico , o código do significante bíblico ou o código do capital. 


                                                            A FILOSOFIA DE ESPINOSA 


O paradoxo de Espinosa é o de ser o mais filósofo dos filósofos, o mais puro num certo sentido, mas ao mesmo tempo aquele que mais se dirige aos não-filósofos e que mais solicita uma compreensão não filosófica. É por essa razão que rigorosamente todo mundo é capaz de ler Espinosa, e de extrair dele grandes emoções, ou de renovar completamente sua percepção , mesmo não entendendo com profundidade os conceitos espinosistas.
Gilles Deleuze, Conversações.
     
Espinosa. Eis o gênio, o verdadeiro gênio, que teve o que faltou a Descartes, o arrojo e a falta de respeito pelo que está estabelecido. Honra ao mestre do pensamento, que perseguido, odiado, excomungado, defendeu a verdade, viveu para a verdade, sofreu pela verdade!

  Fernando Pessoa, Textos Filosóficos.
  

Espinosa ocupa um lugar extremamente original na história da filosofia. Tão original que é difícil classificá-lo dentro de uma determinada fase ou corrente filosófica. Embora ele tenha vivido no século XVII, século que se tornou conhecido por ter sido o século de Descartes( o século do Racionalismo), Espinosa no entanto traz algo que ainda nos parece novo, e que ainda está por  ser descoberto. Isso explica, em parte, o grande interesse que sua obra está despertando hoje .De fato, Espinosa nasceu no século XVII. Mas suas idéias parecem tão avançadas para a época, que só agora começamos a compreendê-las. Aplica-se perfeitamente a Espinosa uma frase famosa  criada  por  um outro filósofo igualmente  original e que viveu no século passado. O filósofo em questão é Nietzsche, que disse: “Todo grande espírito já nasce póstumo. Por isso, suas palavras às vezes são endereçadas a ouvidos que ainda não existem”. Isto é, todo aquele cujo pensamento possui uma grande força inventiva e inovadora, às vezes sofre com a incompreensão de seus contemporâneos, nada lhe restando então do que esperar que o futuro lhe faça justiça, e reconheça o valor e grandeza de seu pensamento. Descartes, por exemplo, foi um fruto genuíno do século XVII. Tanto isso é verdade que é difícil separá-lo daquela época  e conceber sua filosofia nos dias atuais. Com Espinosa se passa algo totalmente diferente, conforme tentaremos mostrar.
Baruch de Espinosa nasceu a 24 de novembro de 1632, em Amsterdam, de uma família de judeus portugueses refugiados na Holanda. Na escola judia realizou estudos teológicos e comerciais . Desde os treze anos trabalhou na casa comercial de seus pais, prosseguindo igualmente os seus estudos (depois da morte de seu pai, em 1654, irá dirigir a casa comercial juntamente com o seu cunhado, até 1656). Devido ao seu espírito não-dogmático e questionador ( o que o levou a estudar , além de teologia, filosofia , direito e ciências em geral, freqüentando igualmente círculos de livre-pensadores mal vistos pela ortodoxia judia), Espinosa foi excomungado aos 25 anos. A vida então se torna difícil para ele em Amsterdam. Após  um fanático tentar assassiná-lo, resolve mudar-se para Rijnsburg a fim de prosseguir os seus estudos de filosofia. Conta-se que Espinosa conservava o casaco rasgado pelo golpe da faca assassina, para melhor se recordar que o pensamento  nem sempre era amado pelos homens.
Poucos filósofos foram tão perseguidos e injuriados quanto Espinosa. “Aqui jaz Espinosa; cuspi sobre o seu túmulo!”. Eram estas as primeiras palavras de um epitáfio versificado por um letrado holandês, ministro da Igreja protestante, cerca de cinqüenta anos após a morte do filósofo.  Um outro exemplo do quanto Espinosa foi perseguido: após sua excomunhão, era  terminantemente proibido a qualquer judeu ( até mesmo os parentes de Espinosa) permanecer sob o mesmo teto onde estivesse o filósofo. E durante muito tempo o termo Espinosismo foi usado como sinônimo de  subversão, ateísmo , em suma, “ algo perigoso” .
Para compreender um pouco a fúria que ele despertava em seus contemporâneos, começaremos por citar  aquela que é a principal afirmação de sua obra: “Deus não criou a natureza. Ele é a natureza: todas as criaturas são modificações de uma única realidade”. Em latim, conforme o texto original,  lê-se Deus sive natura ( ou, em português, Deus é a natureza). Na época em que Espinosa viveu, o século XVII, tal pensamento era visto ainda como escandaloso, demasiadamente “ateu” e pagão. No entanto, paradoxalmente, a principal preocupação de Espinosa é tentar mostrar exatamente o que é Deus.
E a idéia de Deus em Espinosa  serve de pano de fundo a um problema mais decisivo, e que toca de perto as questões concretas da vida. Resumidamente, pode-se dizer que a filosofia de Espinosa gira em torno  de  três   questões fundamentais:
1-o que é a natureza?
2 -o que é ser escravo?
3-como devemos agir e pensar para nos tornarmos livres?  
A primeira questão nos remete à compreensão de Deus. A segunda , por sua vez, põe-nos  frente a frente com um dos temas centrais da obra de Espinosa: as paixões. O que é uma paixão ? Existem paixões positivas? Estas e outras são algumas das perguntas que ele procura responder. Enfim, a terceira questão nos coloca diante da necessidade de pensarmos uma Ética. Aliás, o principal livro de Espinosa chama-se exatamente Ética , e tem por objetivo responder às questões que formulamos acima.

Deus, as paixões e a liberdade — eis os três grandes temas da filosofia Espinosista. Se a primeira questão pode parecer, em princípio, um pouco abstrata, as duas últimas , no entanto, mergulham  no cerne de cada uma de nossas vidas. Pois nos parece que os problemas colocados pelo filósofo atravessaram os séculos e nos diz respeito diretamente hoje, tocando em questões não apenas filosóficas, como também do direito, da psicologia, da sociologia,  da política, enfim, da vida. Sendo assim, comentaremos, a seguir, cada um dos temas citados no começo desse parágrafo.


I- DEUS OU A NATUREZA
É perfeitamente possível tentarmos compreender um determinado período histórico a partir das idéias que impregnam , em cada época, as mentes dos homens. Notamos, então, que há certas idéias que predominam e que passam a ser o fundamento para a vida de todos. Pois é através dessas idéias que os homens compreendem, valoram e percebem o mundo que os cerca. Foi assim  na Grécia, foi assim na Idade Média, é assim hoje. Cada época molda o mundo conforme as crenças e valores que os homens acreditam ser verdadeiros e inquestionáveis.
E no século em que viveu Espinosa, o século XVII, Deus era a idéia principal com a qual se ocupavam os homens. Não era proibido a um físico estudar as leis da física, ou a um estudioso do Direito teorizar sobre a melhor organização da sociedade. No entanto, tais estudos e teorias  tinham que estar perfiladas com as verdades reveladas pela Bíblia. Caso contrário... Mesmo Descartes, o grande racionalista desse período, quando elaborava  uma explicação científica sobre determinado fenômeno físico ,ele procurava adequar tal explicação com aquilo que estava dito no texto da Santa Escritura ( embora não se saiba ao certo se ele assim procedia por realmente acreditar no Deus da igreja ou por puro medo da fogueira da Inquisição)Sem dúvida, Deus também fora  a principal idéia que interessou os homens durante a Idade Média. No entanto, o homem do século XVII entende por Deus algo totalmente distinto das crenças do homem medieval. Pois, no século XVII, os filósofos defendiam a tese de que Deus nos podia  ser acessível por intermédio da razão , sem precisar ter por “intermediário” a igreja .Ou seja, acreditava-se que Deus era um ser racional; e que  nos fez à sua semelhança, ou seja, seres racionais.
O século XVII conheceu três concepções distintas de Deus, e cada uma delas  é representada por um filósofo diferente. As duas primeiras concepções as encontramos em Descartes e Leibniz ( filósofo alemão ). Estes filósofos , para nos mostrarem o que é Deus, se valem de uma analogia. Isto é, comparam Deus a alguma prática humana que lhe traduza a essência. Assim , para Descartes Deus é como  um tirano . Ora, o tirano é aquele que age de maneira arbitrária, pois ninguém pode limitar ou prever suas ações. Em uma  sociedade governada por um tirano apenas ele é livre. Segundo Descartes, Deus criou o mundo do nada. E todas as verdades que vigoram em nosso mundo ( tanto as leis físicas como as verdades matemáticas)  dependem de Deus. As verdades nas quais o homem acredita nada seriam se Deus não existisse. Assim, para Descartes  Deus poderia ter criado um mundo completamente diferente desse no qual vivemos, pois nada limita sua Vontade Soberana. Diante desse Deus Tirano, somos todos seus servos.
Leibniz, por sua vez, concebe Deus como se este fosse um legislador. Tal como Descartes, Leibniz também  acredita que Deus criou o mundo do nada. Mas, para Leibniz, a criação do nosso mundo foi , na verdade, uma escolha. Deus escolheu o nosso mundo. Resumidamente,  isto significa o seguinte: Deus, segundo a tradição cristã que Leibniz representa, possui um intelecto e uma vontade. No intelecto de Deus estaria tudo aquilo que pode vir a ser real. Antes de Deus criar nosso mundo, este último estava no intelecto de Deus, misturado a uma infinidade de outros mundos possíveis. Deus, no entanto, escolheu o nosso mundo e , mediante a sua vontade, o fez tornar-se real. Mas por que Deus escolheu o nosso mundo e não outro? Segundo Leibniz, Deus assim o fez porque o nosso mundo era, dentre os mundos possíveis, o melhor. Apesar de todo sofrimento e miséria que existe em nosso mundo, apesar do mal que nele vemos, apesar disso tudo, diz Leibniz, o nosso mundo ainda é o melhor dos mundos possíveis... Voltaire,  filósofo e escritor Iluminista do século XVIII, escreveu uma peça inspirada em Leibniz, peça esta que se tornou famosa e foi recentemente encenada no Rio . A peça se intitula  “Cândido, o otimista”. Pois se depreende de Leibniz um otimismo exacerbado acerca deste mundo que Deus escolheu  ¾ o que aliás justificava e encorajava, em termos  filosóficos, o capitalismo comercial que então nascia. Segundo Leibniz ,Deus, ao escolher o nosso mundo, o fez tal como um juiz que profere, dentre mil sentenças possíveis, aquela que ele julga ser a melhor, a mais justa. Diante desse Deus-Legislador de Leibniz, o homem está como um réu diante de um juiz. Claro está que  um réu é diferente de um servo. Pois enquanto este último não possui nenhuma liberdade, o réu, ao contrário, é aquele que fez mal uso desta e, por esse motivo, traz em si , no mais íntimo do seu ser, uma culpa inextirpável nessa vida. Pois essa culpa se deve a um ato cometido não por cada homem em particular , mas pelo primeiro dos homens: Adão. Perante as leis humanas, podemos ou não nos tornar culpados, tudo depende de agirmos ou não conforme o que as leis prescrevem. Perante a Lei Divina, contudo, somos todos culpados. Como dizia Kafka (escritor tcheco do século XIX),    pesa sobre nossos ombros um crime que não cometemos, mas do qual somos julgados, do primeiro ao último instante de nossas vidas. A existência como um infindável processo criminal.
Completamente distinta é a imagem de Deus construída por Espinosa. Deus, segundo ele, não se assemelha a  um tirano ou um juiz, mas sim a um artista. E o que é um artista? O artista é aquele que produz, que cria : ao produzir e criar,  ele se expressa. Deus não criou a natureza do nada. Pois, segundo Espinosa, Deus é a própria natureza. Não há separação entre Deus e aquilo que ele cria. Ou melhor: Deus não criou a natureza, ele é a natureza. Pode-se perceber a imensa distância que separa Espinosa  de Descartes, pois para este último Deus poderia ter criado um mundo completamente diferente deste no qual estamos. Para Espinosa, ao contrário, sendo a natureza e Deus a mesma coisa, um não pode existir sem o outro.
Para Espinosa, um ser livre é aquele que não é constrangido ou limitado por nenhum outro. Assim , liberdade é a mesma coisa que ausência de constrangimento. Logo, Deus é completamente livre, pois nada o constrange. Nada o constrange porque ele é único, singular. Segundo Espinosa, e isso que ele nos diz é extremamente belo, todo ser livre é, ao mesmo tempo, um ser alegre. Liberdade rima com alegria. E o que é a alegria? Uma ausência de constrangimento. Todo ser alegre e livre é um ser expansivo. Deus, portanto, é uma pura expansão sem nada que o constranja ou limite. Talvez possamos compreender melhor a idéia de expansão, tal como a empregamos aqui, se  nos mirarmos em uma criança. Uma criança é um ser expansivo, já que ela ainda não está pronta. Não apenas o corpo da criança  está em expansão, mas também seu espírito ou mente ( do latim mens). Deus ou a natureza é como uma eterna criança que jamais envelhece, e que a cada dia se expande mais , criando o novo . O sinal que indica que um ser começa a morrer é quando ele pára de se expandir.
 Diz Espinosa que  devemos entender a expansão em dois sentidos: expansão do corpo e expansão do espírito. A expansão do corpo está limitada pelas leis  da física. Pois as leis que governam a  matéria  tornarão  um dia impossível que um determinado corpo se expanda após atingir a maturidade. Porém, a expansão do espírito não é limitada pelas leis da matéria, pois o espírito não é material. Assim, enquanto um homem viver, seu espírito pode expandir-se, não obstante  a decrepitude que pode atingir   os órgãos de seu corpo. A expansão de um corpo se expressa pela capacidade de agir. A expansão do espírito se expressa pela capacidade de compreender. A capacidade de agir de um homem pode diminuir com o tempo, mas a capacidade de compreender( isto é, de pensar) pode aumentar indefinidamente. Se um corpo ainda pode agir e não o faz, então algo o está constrangendo e limitando. Por exemplo, o corpo de um  prisioneiro está limitado em seu poder de agir. Por outro lado,  se um espírito tem o poder de se expandir mas não o faz, isso se deve ao fato de que algo o está  limitando e constrangendo, diminuindo a sua capacidade de compreender e pensar. De certa forma, este espírito ou mente também está prisioneiro de alguma coisa.  No caso do corpo do prisioneiro,  o que o limita em seu poder de agir é a presença física das paredes de sua cela. No caso de um espírito ( ou mente) o que o limita é algo que não existe fora dele, mas dentro. Pois a “cela”  que mantém um espírito recluso na incompreensão são determinadas idéias e sentimentos confusos , tais como  o  preconceito, o medo, a ignorância, a superstição, etc. Nesse caso, o espírito é, ao mesmo tempo, o prisioneiro e seu próprio carcereiro. Pois a pior prisão que pode atingir o homem é exatamente a incompreensão, pois a incompreensão leva o espírito a pensar erradamente e , como conseqüência, conduz o corpo a agir equivocadamente. Embora a incompreensão seja algo que nasce dentro da mente do homem, sua produção no entanto remete às instâncias de poder que vigoram em uma determinada sociedade  na qual o homem vive. Ao poder político e ao poder da igreja interessa produzir uma mente  pouca expansiva e um corpo que não sabe agir. E da junção dessa mente pouco expansiva e desse corpo inapto surge um homem passivo que delega exatamente ao poder político e à igreja o direito de agir e pensar por ele. Mas sobre isso falaremos mais à frente.
Deus , segundo Espinosa, é uma pura expansão sem nada que o limite ou constranja. E ao se expandir, Deus se modifica, produzindo coisas. Essas coisas que Deus produz são modificações Dele. A palavra modificação deriva do termo latino modus , de onde vem modo. Sendo assim, tudo o que existe é um modo ou modificação de Deus, isto é, os seres que existem são modos diferentes de uma única realidade: a natureza ou Deus. Cada modo é uma expressão de Deus. Tudo o que Deus cria é , assim como ele, singular. Não existem dois modos iguais . A essência de cada modo é a sua singularidade ou diferença. Mas ocorre algo com os modos que é impossível ocorrer com Deus. Como dissemos , Deus ou a natureza não é constrangido ou limitado por nada. Os modos, ao contrário, estão sempre se encontrando uns com os outros. O que define  um  modo é o fato de ele estar sempre se encontrando com um outro modo. É preciso entender as palavras modo e encontro de uma  maneira bem concreta. Se assim o fizermos, não teremos muitas dificuldades para compreendermos  o que Espinosa está dizendo. Simplificando bastante, podemos dizer que  não só as pessoas são modos, mas também as coisas. Assim , quando estamos na sala de aula, fazemos encontros com os outros alunos ou com o professor. Em casa , encontramos nossos parentes. Quando estamos no bar, fazemos um encontro com a bebida. Na festa, fazemos um encontro com a música.Numa manhã chuvosa, fazemos um encontro com a chuva... Logo, não é difícil entender o que é viver: viver é literalmente fazer encontros, com pessoas ,com coisas e mesmo com idéias ... Ora, o que ocorre ou pode ocorrer quando nos encontramos com algo? O que ocorre é simples: ou aquilo com o qual nos encontramos se compõe com a nossa maneira de ser; ou , ao contrário, aquilo com o qual nos encontramos nos descompõe, isto é, não se compõe com a nossa maneira de ser. Assim , todo modo ( eu, você , a bebida, a música, etc.) tem uma maneira de ser—  que é nada mais nada menos do que a essência singular de cada modo. Quando a maneira de ser ( ou essência) de um modo se combina com a minha, Espinosa diz que eu tenho, nesse caso, um bom encontro. Quando, ao contrário, encontro um modo cuja maneira de ser não se compõe com a minha, tenho então um mau encontro. Podemos agora ampliar a noção que demos   do que significa viver, e acrescentar: viver significa fazer encontros, e esses encontros podem ser qualificados de bons ou maus. Tudo decorre da nossa maneira de ser ( ou essência) e da maneira de ser dos modos com os quais nos encontramos. Segundo Espinosa, a maior sabedoria prática que podemos conquistar na vida se resume a esses dois preceitos: evitar aquilo que não se compõe com a nossa maneira de ser e, ao mesmo tempo, buscar o encontro com as coisas ou pessoas que se compõem com a nossa maneira de ser ou essência. Parece muito simples o que Espinosa nos ensina em sua filosofia, pois cada um de nós, em nossas experiências concretas do dia-a-dia, passamos por maus ou bons encontros. No entanto, muitas vezes os maus encontros assumem um poder que submete, pela ignorância, aqueles que caem sob seu domínio . As perguntas que Espinosa mais nos faz são: o que leva uma pessoa a desejar um mau encontro? Por que certas pessoas encontram um certo prazer em ter um mau encontro? Por que os maus encontros governam a vida da maioria da humanidade? Por que há no mundo uma quantidade imensa de tristeza e constrangimento? A resposta a todas essas questões passa por um mesmo e único ponto: as paixões. Desse modo, antes de explicarmos com mais detalhes o que é um bom ou mau encontro, temos ainda de mostrar o que é , segundo Espinosa, uma paixão.


II -A TEORIA DAS PAIXÕES EM ESPINOSA

A compreensão do que significa  uma paixão exige, antes,  que se diferencie dois termos : as idéias e os afetos . Idéias e afetos , segundo Espinosa, são modos do nosso pensamento, isto é , são modificações de nossa mente. Por exemplo, quando estamos pensando em um triângulo nossa mente é modificada de uma maneira totalmente diferente daquela quando pensamos em um sorvete. Mas tanto o triângulo quanto o sorvete , enquanto neles pensamos, são modificações de nossa mente, isto é, idéias. O medo também é uma modificação de nossa mente, assim como o amor também o é. Mas amor e medo não são idéias , mas afetos. Idéias e afetos se distinguem no seguinte ponto: as idéias são modos representativos .Isto é, as idéias representam algo que existe fora da nossa mente. Toda idéia, portanto ,tem uma realidade objetiva, pois ela representa um objeto. Por exemplo, a idéia de  “cadeira” representa um objeto concreto, no qual posso me sentar. Assim, diz Espinosa, a realidade objetiva de uma idéia se estabelece na relação da idéia com o objeto que ela representa. O afeto, ao contrário, é um modo do pensamento que não representa nada. Expliquemo-nos melhor: tomemos ao acaso um afeto  qualquer, o amor por exemplo. O amor não é a representação de alguma coisa objetiva. Pode existir, é verdade, uma idéia da coisa amada, mas o amor enquanto tal não é representativo. Vejamos o seguinte exemplo: Marcos ama Maria. Marcos, ao viver o afeto amor, o reporta à idéia de Maria. Ele associa o afeto que ele sente com a pessoa que ele vê, e da qual ele possui uma idéia. Num certo dia, tudo começa a ir mal, Marcos se separa de Maria. Mais adiante, ele encontra Joana. Sente por ela amor. Logo, ele passa a viver o amor associado a uma nova idéia  que remete a Joana. Mas o amor enquanto tal não era Maria, assim como não é Joana. Mas , na vida de Marcos, o amor era reportado a Maria, e agora a Joana. Parece haver então, afirma Espinosa, um primado da idéia sobre o afeto. E isso por uma razão muito simples: para amar é preciso ter uma idéia, mesmo que confusa, mesmo que indeterminada, daquilo que se ama. Mas o amor, ou qualquer outro afeto, não é representativo: ele expressa mais aquele que ama do que representa o objeto amado.
Feita essa distinção entre idéia e afeto, podemos agora retomar uma questão que já abordamos no começo. Segundo Espinosa, cada modo possui duas coisas fundamentais: um poder de ser afetado e uma capacidade de agir e de pensar. Ora, o que é ser afetado? Como a própria expressão sugere, ser afetado é sofrer a ação de algo. Os gregos possuíam uma palavra para isso: pathos ( que origina o termo patológico). Em latim, passio ( de onde deriva passional) . Pathos, passio e paixão significam a mesma coisa: sofrer a ação de algo. Isto é, estar passivo numa relação qualquer. Ora, é exatamente quando fazemos encontros que temos a ocasião de sofrer a ação de algo. Segundo Espinosa, as paixões podem ser tristes ou alegres. As paixões tristes decorrem de encontros que nós fazemos com  modos cuja maneira de ser não se compõe com a nossa essência : nesse caso, diz Espinosa, experimentamos uma diminuição da nossa capacidade de agir e de pensar. Um exemplo bem simples e concreto: o álcool, todos sabem, possui uma maneira de ser que lhe é própria; inclusive, essa maneira de ser  pode ser expressa em uma fórmula química, que confere ao álcool sua essência e o distingue de tudo o mais que existe. A partir disso, pode-se pensar a relação do alcoólatra com o álcool da seguinte forma:  a maneira de ser do álcool expandiu-se sobre a maneira de ser do alcoólatra, a tal ponto que seu sangue, sua urina, sua saliva, até mesmo o ar que ele expira, quase que é álcool puro...Quando a maneira de ser do álcool se expande sobre a maneira de ser de um homem, a tal ponto que este último não consegue viver sem aquilo que o domina, eis então quando nasce o alcoólatra, isto é, um dependente de uma maneira de ser ( o álcool) que se expande sobre a sua maneira de ser, a corroendo e demolindo. Aliás , o que foi dito sobre o álcool vale também para qualquer outra droga ( lícitas e ilícitas).
Sob uma paixão triste, nós não pensamos , imaginamos;  nós não agimos , reagimos. É longa a lista das paixões tristes. Citemos as principais: ódio, inveja, rancor, avareza, cobiça, etc. As paixões tristes produzem impotência, isto é, uma diminuição da capacidade de agir e de pensar. É  preciso entender tristeza em um sentido bem amplo. Inclusive, Espinosa chega a dizer que existem alegrias que derivam das paixões tristes, mas são alegrias indiretas ( por exemplo, o invejoso experimenta uma certa alegria na infelicidade alheia).
A paixão alegre ocorre quando fazemos encontros com outros modos que se compõem com a nossa maneira de ser: ao sermos então afetados, experimentamos um aumento da nossa capacidade de agir e de pensar. Expandimos, de alguma forma, a nossa maneira de ser.
Assim, podemos ser afetados por modos que aumentam ou diminuem a nossa capacidade de agir e de pensar. Como exemplos de paixões alegres, Espinosa cita a admiração  , a generosidade, a honra, a modéstia, a simpatia, a amizade , o amor e a coragem. Mas é preciso ter a atenção voltada para o seguinte ponto: assim como  temos a capacidade de sermos afetados pelos modos com os quais nos encontramos, também possuímos o poder de afetar  os outros modos. Assim  como um modo pode nos afetar de amor , também podemos afetar outros modos com esse e outros afetos. Logo, todo modo tem o poder de afetar e de ser afetado. E tudo se passa nos encontros. Em sua grande obra intitulada exatamente Ética, Espinosa nos mostra que os afetos que governam nossa vida pessoal reportam-se à maneira pela qual a sociedade está organizada: quanto menos democrática a sociedade for, mais paixões tristes serão necessárias para o poder político manter os indivíduos na impotência e na passividade. O exame dessa questão conduz Espinosa a tratar do problema da liberdade.
 

                       III- ESPINOSA E O PROBLEMA DA LIBERDADE

Em sua obra principal,  que, como já dissemos , se intitula exatamente Ética, Espinosa empreende uma crítica à idéia de liberdade enquanto livre arbítrio.  Segundo essa tese, o homem nasce livre e, pela sua vontade, pauta a sua conduta buscando o Bem , afastando-se assim  do Mal. Segundo Espinosa, temos aí três idéias completamente abstratas: 1º a idéia de que o homem nasce livre; 2º a idéia de que existe o Bem; 3º a idéia de que existe o Mal. Para Espinosa, ao contrário, o homem não nasce livre,  pois a infância representa, segundo ele, o período da vida no qual o homem está mais dependente. E para Espinosa, a dependência é exatamente o sentimento que traduz a vida de um escravo. A dependência é a pior das paixões. Então, segundo Espinosa, a liberdade é algo que se conquista ou não. Embora o homem não nasça livre, ele pode, no entanto, tornar-se livre. E isto, como já assinalamos, está estreitamente ligado com a forma de organização política e exercício de poder de uma determinada sociedade.
O Bem e Mal nada significam: são idéias abstratas, que não traduzem nada de concreto. Existem, isto sim, o bom e o mau. O mau é aquilo que nos impede de sermos livres; o bom,  ao contrário, é aquilo que nos possibilita  um aumento de potência, de alegria. Ser livre é expandir-se, aumentar a capacidade de agir e de pensar. De nada adianta ser livre apenas no pensamento e ser um escravo na ação. Ser livre implica conjuntamente essas duas coisas: pensamento e ação. Só conquista a liberdade de agir aquele que , ao mesmo tempo, conquista a liberdade de pensar. Uma ação livre implica um pensamento livre ( e vice-versa). Um tirano não é livre, pois ele precisa de um servo ou escravo. E ser livre, para Espinosa, é não ser, em uma relação, nem  tirano e nem escravo. A questão é: como nos expandir sem tiranizarmos os outros? Ou como ajudar a expansão dos outros sem nos tornar seu escravo? Somente através daquilo que Espinosa denomina bons encontros , isto é, as paixões alegres.
Segundo Espinosa, somente podemos ser livres através dos encontros. Não se pode ser livre se isolando totalmente dos encontros com pessoas ou coisas. Por isso, jamais a ética ou a liberdade poderão ser questões que dependam de um texto normativo ou de uma instituição estatal. Pois a liberdade é algo que se exerce nas relações efetivas e diretas. É preciso, diz Espinosa, lutar pela criação de preceitos normativos que  favoreçam o exercício das relações de expansão das capacidades de agir e de pensar dos indivíduos. Pois a fonte efetiva do direito emana da potência singular dos indivíduos  — e não de Deus, do Papa ou do Príncipe ( ou do Capital, podemos acrescentar hoje...) .
Mas também é preciso não viver “ao sabor” dos encontros. Pois somente somos  livres verdadeiramente quando estamos na plena posse da nossa capacidade de agir e de pensar. As paixões tristes nos separam da nossa capacidade de agir e pensar, e é por esse motivo que Espinosa afirma que elas nos tornam impotentes, dependentes, escravos. Mas há uma dependência positiva: as paixões alegres, pois são dependências em relação a coisas que não nos dominam ou enfraquecem, pois elas nos ajudam, de alguma forma, a obter um aumento de potência. Mas mesmo as paixões alegres implicam ainda uma certa passividade, na qual apenas reagimos e imaginamos, em vez de agir e pensar.
Portanto, só nos tornamos verdadeiramente ativos quando estamos na plena posse do nosso poder de agir e de pensar.   Estar na plena posse do nosso poder de agir e de pensar é mais importante do que as paixões alegres. Pois quando estamos na plena posse do nosso poder de agir e de pensar, aprendemos , ao mesmo tempo, a selecionar nossos encontros: não estamos mais ao sabor dos encontros. Conquistamos a mais intensa das alegrias, que é também a mais expansiva das liberdades: a alegria de pensar e de agir livremente. Podemos viver passivamente a coragem   e a honra. Isto é, mesmo estando passivos em relação aos modos que nos provocam a coragem ou a honra,   podemos ainda assim experimentar uma expansão da nossa capacidade de agir e pensar corajosa e honradamente. Mas , diz Espinosa, para viver a coragem  e a honra de maneira mais intensa, é preciso que saiamos da passividade ou da dependência: provocar a coragem e a honra, em vez de esperar que um modo nos provoque tais afetos. Somente quando somos  ativos é que nos tornamos capazes de   produzir efeitos positivos nos outros  , em vez de esperar que os outros nos produzam tais efeitos. Mas a questão certamente não é tão simples, pois é preciso, em primeiro lugar, aprender a selecionar os encontros .Nem todo encontro pode nos possibilitar a amizade, nem todo encontro pode nos trazer amor, nem todo encontro pode nos fazer sentir honrados .E o problema se torna mais grave quando se vive em um campo social e político  que não pára de produzir meios para causar nos indivíduos maus encontros, gerando dessa forma tristeza, impotência , ignorância e escravidão das mais variadas formas.
Ser livre e ético, enfim , é aprender a selecionar os encontros e buscar aqueles que possam nos trazer alegria, liberdade. Assim, aparece a verdadeira função da filosofia : auxiliar o homem na obtenção de um maior aumento de compreensão, para que ele possa desse modo agir melhor, seja no plano pessoal , profissional ou político .
A imagem do filósofo como um homem fechado dentro de sua riqueza interior e procurando aí a segurança e verdade que faltam ao mundo exterior, tal imagem se deve sobretudo à famosa frase de Descartes: “Penso, logo existo” . E é até com uma certa razão que o senso comum  considera  tais frases abstratas e sem nenhuma relação com o mundo prático. No entanto, o mesmo não se pode dizer de Espinosa. Para Espinosa, o correto é afirmar : “Penso, logo sou capaz de agir ativamente”. 
Como em uma música, trata-se de aprender a compor : buscar aquilo que se compõe com a nossa maneira de ser.


 

                                                 OS  TRÊS GÊNEROS DE CONHECIMENTO EM ESPINOSA

                          O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
                                     
                                               Fernando Pessoa.

Em minha opinião, os artistas, os sábios e os filósofos, parecem muito atarefados em polir lentes. Um dia a lente será perfeita; e nesse dia todos nós perceberemos claramente a extraordinária beleza deste mundo...
                                                   Henry Miller.

                                                   
Ao longo de sua obra Espinosa distingue três tipos de conhecimento. São eles: o primeiro gênero de conhecimento, o segundo gênero de conhecimento e o terceiro gênero de conhecimento. Embora todos os homens tenham condições de chegar aos três gêneros de conhecimento, a grande maioria vive toda sua vida apenas dentro do primeiro gênero ( os homens da multidão) , pouquíssimos chegam ao segundo gênero ( os homens da ciência) , e menos ainda conseguem atingir o terceiro gênero. Aquele que chega até o terceiro gênero, torna-se um sábio,  isto é, um homem capaz não apenas de pensar com compreensão , mas também de agir com virtude. E as três virtudes básicas do sábio são: a coragem, a justiça e a generosidade.  No entanto, Espinosa reconhece que não é fácil chegar até a esse terceiro gênero de conhecimento. Pois tudo aquilo que é verdadeiramente importante em nossas vidas tem um grau de dificuldade muito grande para se alcançar, já que tudo aquilo que é verdadeiramente importante é ,por essência,  raro. E ,segundo Espinosa, para chegarmos a ser verdadeiramente livres temos que alcançar esse terceiro gênero de conhecimento. Mas antes de tentarmos explicar melhor esse terceiro gênero de conhecimento, temos antes de tratar dos dois primeiros tipos de conhecimento.
O primeiro gênero de conhecimento é aquele que obtemos de duas maneiras: por  “ouvir dizer” e por experiência sensível. Por exemplo, sei que o Brasil foi descoberto em 1500 por ouvir dizer ( já que eu não estava lá para ver); igualmente, é por ouvir dizer que sei que Tiradentes  foi o mártir da Independência. Ou seja, o conhecimento por ouvir dizer é aquele que depende  de um relato feito por outrem  ( seja esse relato feito verbalmente ou por escrito, tal como acontece quando lemos um livro de história nos informando sobre o que aconteceu no passado), e depende fundamentalmente da imaginação. Quando tal conhecimento se apóia em provas, ele nos fornece uma certeza. Assim , podemos ter uma certeza acerca de quando o Brasil foi descoberto porque há provas. Quando o conhecimento por ouvir dizer não fornece provas documentais, ele então se torna um objeto de crença. Sua validade repousa não em provas, mas na autoridade de quem difunde tal conhecimento. Por exemplo, as religiões que se fundamentam em textos escritos nos fornecem um tipo de conhecimento por ouvir dizer , que só tem um efeito de verdade sobre nós se nos dispormos a ter uma crença sobre o que foi relatado. Embora seja um tipo de conhecimento por ouvir dizer , ele não nos fornece uma certeza, mas uma . Por isso, ele se endereça mais à nossa imaginação do que à nossa razão ( por exemplo, quando no Gênesis, que é o primeiro livro da Bíblia, Deus afirma que, por ter pecado,  Eva teria por castigo sentir dor na hora do parto, tal passagem nos faz conhecer algo por imaginação, e não pela razão).
Como já dissemos, o conhecimento do primeiro gênero  também pode ser por experiência sensível, isto é, pela experiência mediante os órgãos dos sentidos. Por exemplo, é por experiência sensível que sei que o metal conduz mais calor do que a madeira. É igualmente por experiência sensível que sei que a água do mar é salgada. Enfim, enquanto o conhecimento por ouvir dizer requer uma mediação por “símbolos” (quer estes símbolos sejam imagens ou palavras escritas ou faladas), o conhecimento por experiência sensível ocorre de maneira imediata, em um aqui e agora.
O segundo gênero de conhecimento é aquele mediante o qual descobrimos conexões necessárias entre as coisas, isto é, leis. Este tipo de conhecimento é próprio da ciência, que é o conhecimento racional dos fenômenos. O segundo gênero de conhecimento nos fornece verdades sustentadas pela própria razão, e não pela fé e pela imaginação. E a autoridade que  descobre essas verdades  e as mantém, não é a autoridade religiosa , mas a autoridade da razão. E pela razão, nada nos  prova que a dor ocorre no parto porque Eva pecou, e sim porque há uma dilatação  forte nos órgãos reprodutores da mulher, fato esse que ocorre em qualquer mamífero superior fêmea. O segundo gênero de conhecimento é aquele que procura evidenciar como as coisas exteriores a nós realmente são — e não como os homens imaginam que elas sejam.
O terceiro gênero de conhecimento é aquele que descobre não exatamente as conexões necessárias e leis  que determinam a existência das coisas exteriores a nós, mas sim é um tipo de conhecimento que nos possibilita experimentar  a liberdade que emana de dentro de nós. Assim, o segundo gênero de conhecimento descobre que a pedra não é livre, pois quando a pedra por algum motivo se move (tal como acontece quando lançamos uma pedra em um rio) , tal fato se deve à ação de algum outro corpo sobre ela. Logo, a pedra não age, mas sim reage . Contudo, o terceiro gênero não visa a um conhecimento das coisas externas, mas sim daquilo que nós mesmos somos enquanto espírito. Assim, pelo terceiro gênero de conhecimento descobrimos que podemos ser ativos, isto é, causa de nossas próprias ações . Pois ser livre não é reagir a uma ação externa , mas sim ser a causa da própria ação que executamos. No entanto, devido ao fato de os homens viverem sempre subordinados às coisas exteriores, eles muitas vezes se comportam como as pedras: eles não agem , apenas reagem ( e são lançados de lá para cá em busca das coisas materiais que agem sobre eles e governam suas vidas, e nas quais eles imaginam estar a felicidade que eles buscam).
O terceiro gênero de conhecimento não se aprende em nenhum livro de filosofia, e muito menos na Bíblia ou no Corão. Pois ele é um conhecimento que se adquire diretamente na vida, pela compreensão da natureza , isto é, de Deus. Pois Deus , para Espinosa, nada mais é do que a natureza. Enquanto o primeiro gênero de conhecimento requer de nós a obediência a-crítica em relação àquilo que nos querem fazer acreditar que seja verdade, e enquanto o segundo gênero nos mostra as leis que regem as coisas exteriores a nós, o terceiro gênero, ao contrário , visa a nos libertar de toda e qualquer obediência e superstição, bem como tenta nos mostrar que podemos, pela compreensão, nos transformar. Tal como aquele garoto do filme Beleza Americana que conseguiu apreender, em um simples evento banal do dia-a-dia , a  força poderosa que está presente em todas as coisas. Ali ele pôde adquirir um conhecimento que transformou a ele e à garota que vivia quase que exclusivamente dentro do primeiro gênero de conhecimento. E os olhos da menina, ao verem  e compreenderem a presença da misteriosa beleza no seio de um fenômeno tão comum e banal ( e que quase ninguém tem olhos para ver), os olhos dela se enchem de lágrimas — lágrimas estas que não são de dor  ou tristeza, mas de uma alegria que a compreensão filosófica pode fornecer às pessoas, transformando-as em sua maneira de perceber, compreender e agir sobre o mundo.









Nenhum comentário: