quarta-feira, 19 de março de 2014

exercícios clínico-poético-filosóficos

                          
                          EXERCÍCIO PARA PARAR  DE FALAR MAL DOS OUTROS


Mais numerosos são os que  se tornaram bons pelo exercício
do que pelos bens que herdaram.
Demócrito
                                                                                                                                                     

Não levo a sério quem ainda não aprendeu a rir de si mesmo.
Nietzsche


Como todo exercício, este requer esforço e paciência,bem como um estar de acordo com aquilo que se deseja.Neste exercício , porém , só há  uma exigência: ter senso de humor.E não adianta  trapaça ou  dissimulação,pois não é um jogo para derrotar  ou rivalizar com A ou B, tampouco há um “mestre” ou “personal” que o execute  antes como modelos para  seguirmos. Ao contrário da academia,onde se paga e se pode não ir, este exercício é gratuito , ele é conquista da Graça, e só depende do interessado a sua obediência e execução, daí sua maior dificuldade de realização, pois ele exige que estejamos inteiros e não pela metade: ele não tolera a preguiça em sermos.
 Assim como algo em nós pode resistir  quando começamos  um exercício físico buscando a nossa saúde, também pode aparecer  uma reatividade  em nós como obstáculo para que nós mesmos paremos de falar mal dos outros . A força dessa reatividade é proporcional à vida que ela consegue furtar daqueles que a denegam, fingindo que ela não existe, bem como daqueles que a aceitam como uma espécie de “vício original da natureza humana”.Assim, justificam  a recusa a buscar a saúde em nome de uma pretensa doença que já nos condena a priori. Mas esta força reativa extraí sua força de nossa fraqueza, fraqueza esta que nos leva mais a odiar e temer a doença do que a amar e buscar a saúde.
Devo dizer que eu mesmo venho praticando este exercício,para assim honrar os livros e os professores que admirei e admiro, para que o contato com eles não tenha sido  apenas tempo desperdiçado com  erudição estéril. Eu ainda sou um aprendiz, um esforçado aprendiz nesses desaprendizados.
Primeiramente, deve-se começar a parar de falar mal dos outros lá onde está a parte mais visível e audível  desse ato: a fala. Para os que falam muito, este ponto é o mais difícil, pois há prazer envolvido, prazer em falar, para não dizer compulsão: neste caso, o falar mal dos outros é um apêndice, uma “especialização”. Então, o ponto inicial do exercício é calar ou se esforçar para tal quando nascer a vontade de falar mal de alguém. Mas não se deve simplesmente calar de imediato,pois a repressão nada consegue nos assuntos que envolvem a liberdade, pois parar de falar mal dos outros não é fruto de uma repressão , e sim da liberdade. Contudo, isto só percebemos no meio do processo de cura, e  este processo só possui meio, nunca fim( não é uma corrida ou disputa com prêmio e medalha no fim, para que todos falem bem de nós...).
Então, continue a falar mal dos outros com alguém, pois é impossível parar de todo esta prática, para não dizer vício. Em princípio, você deve continuar a falar mal dos outros com a pessoa que você mais deveria  confiar, aquela que deveria ser a sua melhor amiga, aquela que mais lhe acompanha, inclusive quando você está só. Mas para chegar até esse ponto, pare de falar mal dos outros na frente de sua esposa ou esposo, de seus filhos, de seu namorado ou namorada, de seus pais, de seus alunos ou professores, de seus amigos e amigas... Pare de falar dos outros na frente de todos estes, e se recolha a falar mal dos outros   apenas para e com você mesmo. Mas não apenas fale:também escute.Estranho, muito estranho: será um falando e outro ouvindo...E os dois serão você mesmo.Todavia,o início da “cura” está na sua escuta: a libertação do falar mal terá início quando aquele que se escuta não suportar mais ouvir-se. E não importa também se você tem razão ou não, pois os que falam mal dos outros sempre acham que têm razão. Este é o ponto mais decisivo:libertar-se da vontade de ter razão.
E aí vem o segundo ponto do exercício: será que você mesmo vai aturar a você mesmo nesses arroubos solitários de razão? Esse ponto do exercício é o mais difícil , pois é o ponto no qual o maldizente requer de si mesmo ser um bom ouvinte, um bom ouvinte das mazelas que se supõe possuir os outros. Será decisivo haver um avanço nessa etapa, embora  pouquíssimos passem além desse ponto, e os mais afoitos já começam a contar vantagem e proclamar vitória antes de realmente vencer essa etapa (e estes são os que mais amam falar mal dos outros, a tal ponto que desistem do exercício e passam a falar mal de si mesmos, inclusive falar mal de si mesmos na frente dos outros, antes que os outros o façam). Enfim,é difícil a cura...
Mas se houver o mínimo de amor a si mesmo, chegará um ponto em que se perceberá a inutilidade de se falar mal dos outros, tanto diante dos outros quanto diante de si  mesmo. E será você que deve aprender isso com você mesmo.E por esse aprendizado se deverá ser grato, mesmo àqueles que hipoteticamente nos fizeram algum mau.
Este é o momento onde se compreenderá que o falar mal dos outros não nasce na boca,mas no pensamento . É lá na forma como se pensa que nasce o ódio. As razões de o ódio ali nascer são muitas,  inclusive o ódio a si mesmo, ódio inconsciente,  projetado no ódio aos outros.
Chegado a esse ponto, com paciência se perceberá que se poderia estar pensando tantas coisas e fazendo tantas outras, ao invés de se estar pensando mal dos outros. E se perceberá ainda que o que nos impede de pensar tantas coisas afirmativas,bem como fazê-las, não são os outros, mas nós mesmos. E será uma vitória sobre si mesmo se quem lhe disser  isto for você mesmo, mas sem que isto seja um ato de ódio para consigo mesmo, mas de compreensão e aperfeiçoamento,como autoconhecimento.Já não se sentirá sozinho consigo quem ouvir isto de si mesmo, pois terá em si mesmo um amigo , amizade esta que poderá viver com os outros, sobretudo aprendendo que criticar não é odiar, seja aos outros ou seja a si mesmo.
Chegado a esse ponto do exercício, já se compreende seu processo e efeitos, embora o mais importante seja a causa.Não são os outros que são a causa de nós pensarmos mal, somos nós mesmos a causa ou a causa parcial disso, pois pensar o mal já é pensar mau, ensina-nos Espinosa.Por outro lado, não existe “pensamento positivo”, a não ser como um pleonasmo, pois pensar já é afirmativo, e isto também depende mais de nós mesmos do que dos outros, seja este outro um mestre ou um livro, embora sejam decisivos os encontros, a começar o encontro consigo mesmo.

  Mas perderá tudo quem cantar vitória antes do dia  de amanhã. E  ainda para chegarmos até o amanhã é preciso que nos libertemos do ontem, do passado, do que passou.E isto só o poderemos se abrirmos uma pequena porta, uma pequena fresta que seja, uma fresta em nossa alma, através da qual  possamos ver e perceber o que realmente é eterno.


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