EXERCÍCIO PARA PARAR DE FALAR
MAL DOS OUTROS
Mais numerosos são os que se tornaram bons pelo exercício
do que pelos bens que herdaram.
Demócrito
Não levo a sério quem ainda não aprendeu a rir de si mesmo.
Nietzsche
Como
todo exercício, este requer esforço e paciência,bem como um estar de acordo com
aquilo que se deseja.Neste exercício , porém , só há uma exigência: ter senso de humor.E não
adianta trapaça ou dissimulação,pois não é um jogo para
derrotar ou rivalizar com A ou B,
tampouco há um “mestre” ou “personal” que o execute antes como modelos para seguirmos. Ao contrário da academia,onde se
paga e se pode não ir, este exercício é gratuito , ele é conquista da Graça, e só depende do interessado a sua
obediência e execução, daí sua maior dificuldade de realização, pois ele exige
que estejamos inteiros e não pela metade: ele não tolera a preguiça em sermos.
Assim como algo em nós pode resistir quando começamos um exercício físico buscando a nossa saúde,
também pode aparecer uma reatividade em nós como obstáculo para que nós mesmos
paremos de falar mal dos outros . A força dessa reatividade é proporcional à
vida que ela consegue furtar daqueles que a denegam, fingindo que ela não
existe, bem como daqueles que a aceitam como uma espécie de “vício original da
natureza humana”.Assim, justificam a
recusa a buscar a saúde em nome de uma pretensa doença que já nos condena a
priori. Mas esta força reativa extraí sua força de nossa fraqueza, fraqueza
esta que nos leva mais a odiar e temer a doença do que a amar e buscar a saúde.
Devo
dizer que eu mesmo venho praticando este exercício,para assim honrar os livros
e os professores que admirei e admiro, para que o contato com eles não tenha
sido apenas tempo desperdiçado com erudição estéril. Eu ainda sou um aprendiz,
um esforçado aprendiz nesses desaprendizados.
Primeiramente,
deve-se começar a parar de falar mal dos outros lá onde está a parte mais
visível e audível desse ato: a fala.
Para os que falam muito, este ponto é o mais difícil, pois há prazer envolvido,
prazer em falar, para não dizer compulsão: neste caso, o falar mal dos outros é
um apêndice, uma “especialização”. Então, o ponto inicial do exercício é calar
ou se esforçar para tal quando nascer a vontade de falar mal de alguém. Mas não
se deve simplesmente calar de imediato,pois a repressão nada consegue nos
assuntos que envolvem a liberdade, pois parar de falar mal dos outros não é
fruto de uma repressão , e sim da liberdade. Contudo, isto só percebemos no
meio do processo de cura, e este processo
só possui meio, nunca fim( não é uma corrida ou disputa com prêmio e medalha no
fim, para que todos falem bem de nós...).
Então,
continue a falar mal dos outros com alguém, pois é impossível parar de todo
esta prática, para não dizer vício. Em princípio, você deve continuar a falar
mal dos outros com a pessoa que você mais deveria confiar, aquela que deveria ser a sua melhor
amiga, aquela que mais lhe acompanha, inclusive quando você está só. Mas para chegar
até esse ponto, pare de falar mal dos outros na frente de sua esposa ou esposo,
de seus filhos, de seu namorado ou namorada, de seus pais, de seus alunos ou
professores, de seus amigos e amigas... Pare de falar dos outros na frente de
todos estes, e se recolha a falar mal dos outros apenas
para e com você mesmo. Mas não apenas fale:também escute.Estranho, muito
estranho: será um falando e outro ouvindo...E os dois serão você mesmo.Todavia,o
início da “cura” está na sua escuta: a libertação do falar mal terá início
quando aquele que se escuta não suportar mais ouvir-se. E não importa também se
você tem razão ou não, pois os que falam mal dos outros sempre acham que têm
razão. Este é o ponto mais decisivo:libertar-se da vontade de ter razão.
E
aí vem o segundo ponto do exercício: será que você mesmo vai aturar a você mesmo
nesses arroubos solitários de razão? Esse ponto do exercício é o mais difícil ,
pois é o ponto no qual o maldizente requer de si mesmo ser um bom ouvinte, um
bom ouvinte das mazelas que se supõe possuir os outros. Será decisivo haver um
avanço nessa etapa, embora pouquíssimos
passem além desse ponto, e os mais afoitos já começam a contar vantagem e
proclamar vitória antes de realmente vencer essa etapa (e estes são os que mais
amam falar mal dos outros, a tal ponto que desistem do exercício e passam a falar
mal de si mesmos, inclusive falar mal de si mesmos na frente dos outros, antes
que os outros o façam). Enfim,é difícil a cura...
Mas
se houver o mínimo de amor a si mesmo, chegará um ponto em que se perceberá a
inutilidade de se falar mal dos outros, tanto diante dos outros quanto diante
de si mesmo. E será você que deve
aprender isso com você mesmo.E por esse aprendizado se deverá ser grato, mesmo
àqueles que hipoteticamente nos fizeram algum mau.
Este
é o momento onde se compreenderá que o falar mal dos outros não nasce na
boca,mas no pensamento . É lá na forma como se pensa que nasce o ódio. As razões
de o ódio ali nascer são muitas, inclusive
o ódio a si mesmo, ódio inconsciente, projetado no ódio aos outros.
Chegado
a esse ponto, com paciência se perceberá que se poderia estar pensando tantas
coisas e fazendo tantas outras, ao invés de se estar pensando mal dos outros. E
se perceberá ainda que o que nos impede de pensar tantas coisas afirmativas,bem
como fazê-las, não são os outros, mas nós mesmos. E será uma vitória sobre si
mesmo se quem lhe disser isto for você mesmo,
mas sem que isto seja um ato de ódio para consigo mesmo, mas de compreensão e
aperfeiçoamento,como autoconhecimento.Já não se sentirá sozinho consigo quem
ouvir isto de si mesmo, pois terá em si mesmo um amigo , amizade esta que
poderá viver com os outros, sobretudo aprendendo que criticar não é odiar, seja
aos outros ou seja a si mesmo.
Chegado
a esse ponto do exercício, já se compreende seu processo e efeitos, embora o
mais importante seja a causa.Não são os outros que são a causa de nós pensarmos
mal, somos nós mesmos a causa ou a causa parcial disso, pois pensar o mal já é
pensar mau, ensina-nos Espinosa.Por outro lado, não existe “pensamento
positivo”, a não ser como um pleonasmo, pois pensar já é afirmativo, e isto
também depende mais de nós mesmos do que dos outros, seja este outro um mestre
ou um livro, embora sejam decisivos os encontros, a começar o encontro consigo
mesmo.
Mas perderá tudo quem cantar vitória antes do
dia de amanhã. E ainda para chegarmos até o amanhã é preciso
que nos libertemos do ontem, do passado, do que passou.E isto só o poderemos se
abrirmos uma pequena porta, uma pequena fresta que seja, uma fresta em nossa
alma, através da qual possamos ver e
perceber o que realmente é eterno.
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