sábado, 15 de fevereiro de 2014

o mel e o néctar



Uma das noções mais ricas de  Espinosa é a ideia de conatus. Não  apenas  de Espinosa,  a própria vida é  conatus  . Não foi em livros, foi na própria vida que o filósofo aprendeu a onipresença do conatus. Tudo o que existe expressa um conatus. Toda existência é um conatus: a do homem, a da planta, a do animal... Mesmo os átomos e as moléculas são conatus. O sangue circula nas veias porque ele é um conatus, assim como é um conatus  o circular da seiva no interior do tronco das plantas.Não apenas o bater de asas do pássaro que voa é um conatus, também o é o ar que resiste ao bater de asas do pássaro. Nada do que existe carece de conatus, por mais tênue e imperceptível que tal conatus seja: mesmo o minúsculo feto já é um conatus pelo qual ele se diferencia do casal que o gerou.Espinosa vai ainda mais além: mesmo cada ideia que temos possui um conatus ,  é por seu conatus que ela existe, assim como toda coisa .  A palavra conatus costuma ser traduzida por “esforço”. O conatus é um esforço.
No sentido habitual do termo, todo esforço é uma atividade em vista de um fim: para caminhar, é preciso um esforço, assim como para andar, deitar,  falar... E mesmo ficar mudo requer um esforço. A meditação não é um anular o esforço, ela é um  tomar o máximo de consciência dele, uma consciência também do corpo.
É preciso, portanto,  compreender da forma mais abrangente possível essa ideia do esforço, para que assim possamos adentrar em seu rico sentido. O fruto de uma árvore, por exemplo, é fruto de um esforço que a árvore fez.Esse esforço para produzir algo não pode ser separado da existência da própria árvore.O esforço para existir não é feito apenas por músculos e ossos: ele é realizado por nosso ser inteiro, pelo corpo e pelo espírito. E mesmo os seres que não possuem músculos e ossos também se esforçam para existir, de acordo com o corpo e a ideia que são. O mel que a abelha secreta é fruto ou obra de um esforço dela. O perfume que a rosa exala também é  fruto do seu esforço. Por mais que a abelha se esforçasse, ela não conseguiria produzir o mesmo fruto que a rosa produz. No entanto, para produzir seu mel, a abelha necessita de um fruto que nasce do esforço das rosas:o néctar, pois é se alimentando do néctar das rosas que a abelha produz seu mel.Através do mel o néctar continua. Assim, cada ser que existe se esforça conforme  sua essência, conforme sua maneira  de ser.
Mas antes de se esforçar para produzir o mel, a abelha se esforça para existir. Esse esforço para existir não é separável do esforço para produzir o mel, pois a abelha não existe sem produzir mel, assim como a rosa não existe sem produzir o néctar. Produzir o néctar não é uma finalidade exterior à existência da rosa, dado que não se pode separar o produto do produtor.Isso vale para a abelha e seu mel, para a rosa e seu néctar, bem como para o homem  e as ideias que ele pensa, que também deveriam estar conectadas com o seu existir, assim como o estão, para a abelha e as rosas, o mel e o néctar.Ao produzir o néctar, a rosa também produz a si mesma e  afirma seu conatus.Desse modo, o conatus é idêntico à existência: todo ser que existe se esforça para continuar existindo a partir da sua maneira de ser.
Cada ser que existe é a expressão de um esforço para continuar existindo. Esse esforço não é uma coisa parada ou uma medida certa que não varia. Esse esforço é um processo,  um grau. Quando comemos uma maçã, absorvemos o conatus deste fruto  para assim fortalecer o nosso esforço próprio para existir . Há algo no esforço da maçã que se conjuga com o nosso esforço.Por sermos finitos, nosso conatus tem o apetite por outros conatus que o façam continuar existindo. Por sermos finitos, vivemos nosso conatus no encontro que ele faz com os outros conatus.
Os encontros podem ser bons ou maus: bons são os encontros nos quais fortalecemos nosso conatus,  maus são os encontros que o destroem ou o ameaçam. O vírus, por exemplo, busca no nosso esforço para existir algo que pode favorecer o dele. Visto a partir do mero conatus, cada ser quer apenas afirmar a si próprio . “Bom” ou “mau” não têm valor em si mesmo, pois são os conatus que determinam o que é bom ou mau. Bom e mau são sempre sentidos determinados por uma relação. A relação de fortalecimento ou composição é boa, enquanto a relação de enfraquecimento ou destruição é dita má.Mas o que vem primeiro é a afirmação, não a destruição ou negação.  Mesmo o vírus quer afirmar-se. A destruição que ele nos provoca, a qual chamamos de doença,  é um efeito.É por esse motivo que a finalidade da existência de um vírus não é nos adoecer: simplesmente o vírus quer viver.Para cada conatus não há nenhuma autoridade a não ser ele próprio.Ele não busca, como um fim exterior , a existência, uma vez que ele já está na existência: o que ele quer é continuar na existência.Ele quer afirmar-se. Todavia, além desse plano do mero conatus existe ainda  outro:o da Potência.
Para Espinosa, Deus é o infinitamente absoluto. Ab-soluto: o que não se dissolve.  Deus não possui conatus, ele é Pura Potência de Pensar e Existir. Deus não tem nada que lhe seja exterior. Por isso , ele não é ou possui conatus: ele é tudo,tudo é modificação dele mesmo.Por nada lhe existir fora, Deus nunca padece. Nada o limita, nada o diminui. Nos seres finitos,  muitas vezes a afirmação do conatus próprio acarreta na destruição de um outro conatus de um ser finito diferente. A finitude é uma determinação que vem de fora de cada ser: ela é determinada pelos outros seres finitos quando tomados finitamente. Cada onda do oceano se destaca ao mesmo tempo em que se individualiza ou finitiza, fato este que a leva a se chocar não contra o oceano, mas contra a outra onda finita nascida do mesmo oceano infinito, ao qual ambas permanecem ligadas, pois não pode existir onda sem oceano. O fato que as faz se  chocarem não é o oceano, mas suas respectivas existências que, enquanto durarem seus respectivos conatus, farão cada uma delas existir como onda. Cada onda possui um limite que é determinado não pelo oceano, e sim pela outra onda que lhe existe fora.No entanto, na imanência de cada uma  existe o oceano sem limites,  do qual cada onda singular  é uma expressão.
O conatus é a expressão da relação da nossa existência finita com outras existências finitas de nós diferentes, que igualmente querem continuar existindo afirmando suas existências. Quanto mais um ser finito isola sua existência da existência absoluta de Deus, querendo existir como um todo à parte,como uma onda que se imagina oceano, mais seu conatus será enfraquecido e viverá mais em conflitos do que em  acordos, a começar pelo conflito consigo mesmo.
 Segundo Espinosa, Deus também é potência absoluta de Pensar, e não apenas de Existir. Em Deus, o Pensar é uma atividade, um Verbo, e não um substantivo, tal como “pensamento”. Deus não é pensamento, Deus é Pensar. Assim, nosso conatus não é apenas existência, existência corpórea, ele também é atividade de pensar. Essa atividade se expressa através de uma potência: a compreensão. O pensar é o agir da alma.Quanto mais uma alma pensa,mais ela existe.Quando um corpo come uma simples maça, ele come também os inumeráveis conatus que a macieira absorveu ( o conatus dos sais, dos minerais, etc.) para produzir um único fruto. Quando o espírito pensa uma ideia, ela pensa também todas as ideias que fizeram aquela existir. Cada ideia assim pensada leva o espírito que a pensa a existir mais.Assim, pensar a ideia de Deus, do Absolutamente Infinito,  é apreender as infinitas ideias que são os infinitos conatus que fortalecem a potência de pensar de nossa alma. Quanto mais potente é o pensar, mais adequado é o agir do corpo ao qual aquele espírito está ligado.Quanto mais potente o pensar,mais o corpo aprenderá a agir não apenas buscando o bom encontro, ele desejará   também ser um bom encontro para aqueles que com ele se encontra,  vez que ele procurará, antes de tudo, ser, existir ( e não meramente padecer a ação externa).A abelha não fez o mel para adoçar nossa boca, ela simplesmente faz o mel  porque esta é a razão de sua existência.
 Nosso corpo necessita do conatus dos outros corpos para continuar existindo.  A existência do corpo se expressa como ação. É isto o que os corpos dão ao nosso corpo:o poder de agir. E agir também é respirar, alimentar-se...incluindo o alimentar e o respirar de cada uma de nossas células, pois cada célula também se alimenta e respira. Mas nosso espírito também é um esforço para continuar existindo como espírito.São as ideias  o alimento que o fortalece. A ideia não é algo abstrato que vive nas letras de um livro: cada ideia é um esforço, um conatus, uma potência. Nosso espírito necessita das ideias, ele que é também uma idéia. Deus também é uma ideia, a idéia absoluta da qual todas as outras são uma parte, um grau.Essa ideia não se dissolve, pois o tempo não a destrói. Quanto mais nossa ideia finita se saber parte dessa ideia absoluta, menos a finitude do seu corpo a cerceará em sua atividade de pensar. O nome desse processo de compreensão se chama salut, saúde. Toda coisa é vivida como um esforço, e deste depende. Contudo, quando alcançamos a compreensão, e desta a ação, o esforço se metamorfoseia em desejo, em potência. Quem começa a aprender a dançar precisa do esforço para manter vivo esse desejo. Se houver perseverança, e alegria, chega um ponto em que o esforço se torna potência, de tal maneira que compreendemos a necessidade do treino, pois neste a arte já está, como já está a árvore na imanência do fruto, fruto este que ela produziu.
Deus não possui conatus. Deus é pura potência, pois nada o limita. Em nós, em nossa existência cotidiana, essa potência é vivida de forma irrefletida e imaginativa  como simples conatus, isto é, como um esforço para existir sendo limitado por outros esforços, e muitos destes esforços podem ameaçar o nosso.O temer morrer não é viver.
 O conatus é a potência que ainda se ignora como potência, e à potência nada falta. O conatus é a potência no seu grau mais baixo de afirmação e existência.Quando compreendemos a Ideia Absoluta da qual nós somos uma parte, nosso esforço se converte em potência, e esta é sempre afirmativa , produtiva, de tal modo que afirmá-la nunca é destruir uma outra existência meramente. Quando percebemos em nosso esforço para existir a potência absoluta que já é eternamente  Existência, compreendemos que a beleza e a alegria não estão na obra, no produto,  mel ou néctar, mas no seu produzir, no seu criar. 

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