Uma das noções mais ricas de Espinosa é a ideia de conatus. Não
apenas de Espinosa, a própria vida é conatus . Não foi em livros, foi na própria vida que o filósofo aprendeu a onipresença do conatus. Tudo o que existe expressa um conatus. Toda existência é um conatus: a do homem, a da planta, a
do animal... Mesmo os átomos e as moléculas são conatus. O sangue circula nas
veias porque ele é um conatus, assim como é um conatus o circular da seiva no interior do tronco das
plantas.Não apenas o bater de asas do pássaro que voa é um conatus, também o é
o ar que resiste ao bater de asas do pássaro. Nada do que existe carece de
conatus, por mais tênue e imperceptível que tal conatus seja: mesmo o minúsculo
feto já é um conatus pelo qual ele se diferencia do casal que o gerou.Espinosa
vai ainda mais além: mesmo cada ideia que temos possui um conatus , é por seu
conatus que ela existe, assim como toda coisa . A palavra conatus costuma ser traduzida por “esforço”.
O conatus é um esforço.
No sentido
habitual do termo, todo esforço é uma atividade em vista de um fim: para caminhar,
é preciso um esforço, assim como para andar, deitar, falar... E mesmo
ficar mudo requer um esforço. A meditação não é um anular o esforço, ela é um tomar o máximo de consciência dele, uma
consciência também do corpo.
É preciso,
portanto, compreender da forma mais abrangente
possível essa ideia do esforço, para que assim possamos adentrar em seu rico
sentido. O fruto de uma árvore, por exemplo, é fruto de um esforço que a árvore
fez.Esse esforço para produzir algo não pode ser separado da existência da
própria árvore.O esforço para existir não é feito apenas por músculos e ossos:
ele é realizado por nosso ser inteiro, pelo corpo e pelo espírito. E mesmo os
seres que não possuem músculos e ossos também se esforçam para existir, de
acordo com o corpo e a ideia que são. O mel que a abelha secreta é fruto ou
obra de um esforço dela. O perfume que a rosa exala também é fruto do seu esforço. Por mais que a abelha se
esforçasse, ela não conseguiria produzir o mesmo fruto que a rosa produz. No
entanto, para produzir seu mel, a abelha necessita de um fruto que nasce do
esforço das rosas:o néctar, pois é se alimentando do néctar das rosas que a
abelha produz seu mel.Através do mel o néctar continua. Assim, cada ser que
existe se esforça conforme sua essência,
conforme sua maneira de ser.
Mas antes de se
esforçar para produzir o mel, a abelha se esforça para existir. Esse esforço
para existir não é separável do esforço para produzir o mel, pois a abelha não
existe sem produzir mel, assim como a rosa não existe sem produzir o néctar. Produzir
o néctar não é uma finalidade exterior à existência da rosa, dado que não se pode
separar o produto do produtor.Isso vale para a abelha e seu mel, para a rosa e
seu néctar, bem como para o homem e as
ideias que ele pensa, que também deveriam estar conectadas com o seu existir,
assim como o estão, para a abelha e as rosas, o mel e o néctar.Ao produzir o
néctar, a rosa também produz a si mesma e afirma seu conatus.Desse modo, o conatus é idêntico
à existência: todo ser que existe se esforça para continuar existindo a partir
da sua maneira de ser.
Cada ser que
existe é a expressão de um esforço para continuar existindo. Esse esforço não
é uma coisa parada ou uma medida certa que não varia. Esse esforço é um processo,
um grau. Quando comemos uma maçã,
absorvemos o conatus deste fruto para assim
fortalecer o nosso esforço próprio para existir . Há algo no esforço da maçã
que se conjuga com o nosso esforço.Por sermos finitos, nosso conatus tem o
apetite por outros conatus que o façam continuar existindo. Por sermos finitos,
vivemos nosso conatus no encontro que ele faz com os outros conatus.
Os encontros
podem ser bons ou maus: bons são os encontros nos quais fortalecemos nosso
conatus, maus são os encontros que o destroem ou o ameaçam. O
vírus, por exemplo, busca no nosso esforço para existir algo que pode favorecer
o dele. Visto a partir do mero conatus, cada ser quer apenas afirmar a si próprio
. “Bom” ou “mau” não têm valor em si mesmo, pois são os conatus que determinam
o que é bom ou mau. Bom e mau são sempre sentidos determinados por uma relação.
A relação de fortalecimento ou composição é boa, enquanto a relação de
enfraquecimento ou destruição é dita má.Mas o que vem primeiro é a afirmação,
não a destruição ou negação. Mesmo o
vírus quer afirmar-se. A destruição que ele nos provoca, a qual chamamos de
doença, é um efeito.É por esse motivo
que a finalidade da existência de um vírus não é nos adoecer: simplesmente o
vírus quer viver.Para cada conatus não há nenhuma autoridade a não ser ele
próprio.Ele não busca, como um fim exterior , a existência, uma vez que ele já
está na existência: o que ele quer é continuar na existência.Ele quer
afirmar-se. Todavia, além desse plano do mero conatus existe ainda outro:o da Potência.
Para Espinosa, Deus
é o infinitamente absoluto. Ab-soluto:
o que não se dissolve. Deus não possui
conatus, ele é Pura Potência de Pensar e Existir. Deus não tem nada que lhe
seja exterior. Por isso , ele não é ou possui conatus: ele é tudo,tudo é modificação dele mesmo.Por nada lhe existir
fora, Deus nunca padece. Nada o limita, nada o diminui. Nos seres finitos, muitas vezes a afirmação do conatus próprio
acarreta na destruição de um outro conatus de um ser finito diferente. A finitude é
uma determinação que vem de fora de cada ser: ela é determinada pelos outros seres finitos
quando tomados finitamente. Cada onda do oceano se destaca ao mesmo tempo em
que se individualiza ou finitiza, fato este que a leva a se chocar não contra o
oceano, mas contra a outra onda finita nascida do mesmo oceano infinito, ao qual
ambas permanecem ligadas, pois não pode existir onda sem oceano. O fato que as
faz se chocarem não é o oceano, mas suas
respectivas existências que, enquanto durarem seus respectivos conatus, farão
cada uma delas existir como onda. Cada onda possui um limite que é determinado
não pelo oceano, e sim pela outra onda que lhe existe fora.No entanto, na imanência de
cada uma existe o oceano sem limites, do qual cada onda singular é uma expressão.
O conatus é a
expressão da relação da nossa existência finita com outras existências finitas
de nós diferentes, que igualmente querem continuar existindo afirmando suas existências.
Quanto mais um ser finito isola sua existência da existência absoluta de Deus,
querendo existir como um todo à parte,como uma onda que se imagina oceano, mais
seu conatus será enfraquecido e viverá mais em conflitos do que em acordos, a começar pelo conflito consigo
mesmo.
Segundo Espinosa, Deus também é potência absoluta de Pensar, e
não apenas de Existir. Em Deus, o Pensar é uma atividade, um Verbo, e não um
substantivo, tal como “pensamento”. Deus não é pensamento, Deus é Pensar. Assim,
nosso conatus não é apenas existência, existência corpórea, ele também é
atividade de pensar. Essa atividade se expressa através de uma potência: a
compreensão. O pensar é o agir da alma.Quanto mais uma alma pensa,mais ela
existe.Quando um corpo come uma simples maça, ele come também os inumeráveis conatus
que a macieira absorveu ( o conatus dos sais, dos minerais, etc.) para produzir
um único fruto. Quando o espírito pensa uma ideia, ela pensa também todas as ideias
que fizeram aquela existir. Cada ideia assim pensada leva o espírito que a
pensa a existir mais.Assim, pensar a ideia de Deus, do Absolutamente Infinito, é apreender as infinitas
ideias que são os infinitos conatus que fortalecem a potência de pensar de
nossa alma. Quanto mais potente é o pensar, mais adequado é o agir do corpo
ao qual aquele espírito está ligado.Quanto mais potente o pensar,mais o corpo
aprenderá a agir não apenas buscando o bom encontro, ele desejará também ser um bom encontro para aqueles que
com ele se encontra, vez que ele procurará, antes de tudo, ser, existir ( e
não meramente padecer a ação externa).A abelha não fez o mel para adoçar nossa
boca, ela simplesmente faz o mel porque
esta é a razão de sua existência.
Nosso corpo necessita do conatus dos outros
corpos para continuar existindo. A
existência do corpo se expressa como ação. É isto o que os corpos dão ao nosso
corpo:o poder de agir. E agir também é respirar, alimentar-se...incluindo o
alimentar e o respirar de cada uma de nossas células, pois cada célula também
se alimenta e respira. Mas nosso espírito também é um esforço para continuar
existindo como espírito.São as ideias o
alimento que o fortalece. A ideia não é algo abstrato que vive nas letras de um
livro: cada ideia é um esforço, um conatus, uma potência. Nosso espírito
necessita das ideias, ele que é também uma idéia. Deus também é uma ideia, a idéia
absoluta da qual todas as outras são uma parte, um grau.Essa ideia não se
dissolve, pois o tempo não a destrói. Quanto mais nossa ideia finita se saber
parte dessa ideia absoluta, menos a finitude do seu corpo a cerceará em sua
atividade de pensar. O nome desse processo de compreensão se chama salut, saúde. Toda coisa é vivida como um
esforço, e deste depende. Contudo, quando alcançamos a compreensão, e desta a ação,
o esforço se metamorfoseia em desejo, em potência. Quem começa a aprender a dançar
precisa do esforço para manter vivo esse desejo. Se houver perseverança, e
alegria, chega um ponto em que o esforço se torna potência, de tal maneira que
compreendemos a necessidade do treino, pois neste a arte já está, como já está
a árvore na imanência do fruto, fruto este que ela produziu.
Deus não possui
conatus. Deus é pura potência, pois nada o limita. Em nós, em nossa existência cotidiana,
essa potência é vivida de forma irrefletida e imaginativa como simples conatus, isto é, como um esforço
para existir sendo limitado por outros esforços, e muitos destes esforços podem
ameaçar o nosso.O temer morrer não é viver.
O conatus é a potência que ainda se ignora
como potência, e à potência nada falta. O conatus é a potência no seu grau mais
baixo de afirmação e existência.Quando compreendemos a Ideia Absoluta da qual
nós somos uma parte, nosso esforço se converte em potência, e esta é sempre afirmativa
, produtiva, de tal modo que afirmá-la nunca é destruir uma outra existência
meramente. Quando percebemos em nosso esforço para existir a potência absoluta
que já é eternamente Existência, compreendemos
que a beleza e a alegria não estão na obra, no produto, mel ou néctar, mas no seu produzir, no seu
criar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário