A importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem
com balanças nem com barômetros etc. (...) A importância de uma coisa
há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros
“Não sou biografável”, disse certa vez
Manoel de Barros. E nos confessa ele
ainda que suas memórias são inventadas.Sem dúvida, é difícil capturá-lo em uma
apresentação biográfica habitual, pois ele se aloja em uma região imperceptível
aos olhos daqueles que só percebem o já visto, o etiquetado.
Ser imperceptível não é ser invisível. A
imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como diz Deleuze, emprestam
seus nomes para assinar acontecimentos, idéias, sensações. Ser imperceptível é
um caso de devir: devir imperceptível. Tornar-se imperceptível é
pôr em questão os mecanismos que, de forma a priori, determinam a percepção,
fazendo-a submeter-se a um já dado que nos cega diante daquilo que é diferente.
Quando o nome próprio conquista a potência
de expressar acontecimentos e sentidos, despe-se da pessoa que até então
designou , uma vez que aquele que o porta atinge a mais necessárias das artes:
a de se tornar impessoal. “Palavra que eu uso me inclui nela” afirma Manoel
de Barros. Para haver essa inclusão, esse devir, é preciso aquela arte. Assim,
diz Deleuze a esse respeito, descobre-se “sob as aparentes pessoas a potência
de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no
mais alto grau.” No poema intitulado “Ninguém”, Manoel de Barros escreve:
Falar a partir de ninguém faz comunhão com
as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com
os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por
andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.
Tornar-se impessoal, “Ninguém”, é
conquistar o estatuto de um agente coletivo de enunciação: sua voz já não diz
“eu” , mas “nós”. E neste “nós” inclui-se sobretudo o que não tem voz, mas que
a poesia faz falar: “Queria ser a voz em que uma pedra fale”,uma voz que já não
manifesta um eu pessoal :
Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.
Pela voz poética de Manoel de Barros
também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade
infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós,pedras que dão leite, patos atravessados
de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma...
enfim, o que não se pode vender no mercado:“coisas se movendo ainda em larvas, antes
de ser idéia ou pensamento”. Manoel de Barros nos diz ainda:
Quem atinge o valor do que não presta é,
no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar
cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro
das palavras.
Mais do que tudo, o que por sua voz fala é
a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer
nascimento
O
verbo tem que pegar delírio.
Esse “fazer nascimento” referido pelo
poeta inunda a poesia com a potência de um germe: na imanência deste, o verbo,
como logos, liberta-se dos substantivos e das substâncias; devém ele próprio
experimento com o sentido, e nos ensina: “Poesia é voar fora da asa”: “a poesia
é a loucura da palavra”.
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