sábado, 30 de agosto de 2025

Filosofia

 

Quando alguém cobra dos políticos lisura no trato com a coisa pública, este alguém está exigindo uma virtude ética: a honestidade. E Ética é uma disciplina da filosofia.

Quando alguém diz: “O que esse cara fala não tem lógica! ”, quem assim critica também está reconhecendo a importância da filosofia, pois Lógica é uma disciplina filosófica.

Quando alguém ,sentindo, expressa: “ Como é bela essa música !”, igualmente emprega um valor da filosofia , uma vez que o “belo” ( assim como o “cômico”, o “dramático”, o “sublime”, etc) é uma categoria da Estética, uma disciplina da filosofia.

Quando alguém fala : “Sou pragmático, odeio teorias”, este alguém também não escapa da filosofia , pois “Pragmatismo” e “Utilitarismo” são correntes da filosofia.

E mesmo quando alguém questiona : “para que estudar filosofia?”, este alguém também está a filosofar, dado que questiona sobre a Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da filosofia.

E aqueles que precisam escrever Monografias, Dissertações de Mestrado ou Teses de Doutorado, mesmo que cursando “faculdades técnicas” , terão que estudar Metodologia Científica, uma disciplina filosófica.

Enfim, é impossível alguém existir e não se colocar em algum momento questões como: “O que é o tempo?”, “O que é a liberdade?”, “O que é a vida?”, “Por que existo?...” Não apenas para formular tais perguntas, mas também para vislumbrar respostas para elas, quem assim indaga igualmente bate à porta da filosofia , pois essas são questões de uma disciplina da filosofia chamada “Metafísica”.

A filosofia não está apenas nos livros escritos pelos filósofos, ela se encontra ainda mais nas situações da vida que nos obrigam a pensar, já que é impossível viver de forma digna e autêntica sem se deparar com questões filosóficas.

As crianças são filósofas /questionadoras por natureza, a mesma natureza de que fala Espinosa. Infelizmente, poderes tolhedores que cercam as crianças as afastam, com o tempo, dessa natureza questionadora.

Os tir4nos de toda espécie sempre temem o pensar, e fazem o máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens, façam essa descoberta do pensar , ou se já o descobriram, não o exerçam . Não por acaso, Platão dizia que o tir4no é o antifilósofo.

Nada mais antifilosófico do que as tais escolas "cívico-militares" que o governador de São Paulo, capacho de tir4nos, quer impor como "cicuta" aos jovens .

Antes de estar nos livros, a filosofia está potencialmente na vida, pois pensar é uma exigência da própria vida , e antídoto contra os inimigos da educação emancipadora.







terça-feira, 26 de agosto de 2025

Artes e o ensino da filosofia

 


 Estarei participando, como mediador, do VI Encontro Nacional do Mestrado Profissional em Filosofia.

Área temática: Artes e o Ensino da Filosofia / dia 27/08, tarde e noite.

Maiores informações em:


https://eventos.galoa.com.br/enprof-filo-2025/page/6355-home




quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O que é ser de esquerda ( Deleuze)

 

Certa vez , perguntaram ao filósofo Gilles Deleuze por qual razão ele nunca foi filiado a um partido, e aproveitaram  também para  indagá-lo  acerca do que é ser de esquerda.

O filósofo deu mais ou menos a seguinte resposta: antes de ser um posicionamento político-partidário, ser de esquerda expressa o modo como nos inserimos na existência.

A pessoa de direita parte, antes de tudo, do seu ego. Ela  vive no interior de um círculo no qual estão seus interesses, suas propriedades ( já  possuídas ou apenas desejadas), suas ambições, suas pretensões, suas opiniões...Mas também ocupam o círculo estreito do ego seus medos, seus ressentimentos , seus fantasmas, suas feridas mal curadas...

O homem de direita imagina que esse círculo estreito é o centro do mundo, de tal modo que tudo o que existe fora desse círculo, no espaço e no tempo, é para ele só “narrativa”. Daí seu desprezo pela ciência, pela história, pela sociologia e pela filosofia, e seu medo paranoico dos outros povos e suas maneiras diferentes de viver, medo esse traduzido na expressão “globalismo comunista”.

Pode parecer paradoxal, mas apenas seres que vivem num círculo existencial estreito adaptam-se a existirem  no interior de um rebanho ou massa. Pois rebanho não é um conjunto heterogêneo de singularidades, rebanho são indivíduos aprisionados a si mesmos e que se agregam em celas contíguas.

Ser existencialmente de esquerda, ao contrário, é partir daquilo que Espinosa chama de o Absolutamente Infinito. A percepção de esquerda se abre ao que não pode ser cercado ou contido, para   que a mente e o coração ligados a tal percepção permaneçam sempre abertos.

É a partir do infinito aberto que o ser existencialmente de esquerda  compreende que desse infinito  fazem parte o cosmos, o nosso planeta, as outras nações, o nosso país, a nossa cidade, o nosso bairro , o outro e, enfim, a sua pessoa.

Ser de esquerda é não se colocar como primeiro ou último numa concorrência, mas como parte singular  de realidades mais amplas e horizontadas (como ensina também  Manoel de Barros).

Ser de esquerda não é apenas compreender teoricamente isso, mas sobretudo agir a partir dessa percepção. E dessa percepção podem nascer  não apenas ações empáticas, solidárias, generosas , dignas , justas , corajosas e revolucionárias, pois dessa percepção também podem nascer poemas, músicas , artes e educação não menos revolucionárias.

 

(imagem: os filósofos Deleuze & Guattari e o livro que escreveram juntos)



 

Este texto também foi publicado como artigo neste site de professores de filosofia:

https://www.aproffib.com.br/post/esquerda-e-direita

 







domingo, 10 de agosto de 2025

Manoel & Miró

Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém Manoel  disse  que aprendeu a ser poeta com um  pintor :  Miró.

Mas o poeta não aprendeu com o pintor fórmulas, cartilhas ou tudo aquilo que , aprendido de forma obrigatória, depois se torna matéria cobrada em prova. Na verdade, Manoel diz que aprendeu com Miró a fazer desaprendizagens. Foi assim:

Miró desenhava de maneira  precisa e técnica, porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo  que Miró desejava  criar.

Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor uma alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

A mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda,  ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda . A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.






 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Artigo sobre Manoel de Barros / Revista Alegrar

 

Deixarei aqui um link para uma revista na qual acabou de sair um artigo que escrevi sobre o poeta Manoel de Barros. Fiquei feliz, pois gosto  dessa revista, vale a pena conhecê-la: Revista Alegrar.

O nome e a linha editorial da revista são inspirados em um afeto fundamental da Ética de  Espinosa: a Alegria.

Em Espinosa, “alegria” não é a mesma coisa que o sentimento que o senso comum  chama por esse nome. A alegria espinosista é uma potencialização da nossa capacidade de pensar, agir e sentir, pois essas três atividades andam juntas.

A alegria é um afeto acompanhado do prazer nascido em alguma parte (ou partes) do nosso corpo. Ou seja, não apenas a alma sente alegria, o corpo também sente. Por exemplo, quando ouvimos uma música que potencializa o sentir de nossa mente, é porque nosso ouvido, ao ser tocado pelo som, sente prazer. O prazer é a alegria do corpo.

Quando é nosso corpo inteiro que sente prazer, um prazer não egoico-hedonista, a alegria se torna contentamento: não o contentamento em ter algo como  proprietário-dono, mas contentamento em ser  parte singular da Natureza.

A Natureza em Espinosa é uma polifonia infinita: é música para ouvir  com todo o corpo.  Aqueles que a ouvem, como diz o poeta, de contentamento-beatitude também dançam, sendo taxados de loucos pelos que não têm ouvidos para a escutar .

Quando é uma parte do nosso corpo que sente dor, em nossa mente haverá tristeza. E quando é o corpo todo que dói, a mente é dominada pela melancolia. A melancolia nos mostra que as dores do corpo nunca são apenas físicas...

Espinosa não nega ou minimiza a dor, a tristeza e a melancolia. Mas é tarefa da filosofia, uma tarefa ao mesmo tempo clínica, existencial e política, perseverar para produzir o máximo possível de prazer, alegria e contentamento, com a máxima potência que tivermos.

Não é o medo ou o ódio à   doença que nos protege dela, o que nos protege verdadeiramente da doença é agir tendo como causa o amor à saúde.

A luz não brilha como efeito da treva, mas por afirmação de si mesma: e quanto mais a luz brilha, mais ela se torna causa da diminuição da treva.  




 https://alegrar.com.br/


As tir4nias de toda espécie fomentam e se aproveitam da dor, da tristeza e da melancolia. Mas o prazer , a alegria e o contentamento autênticos não nascem da derrota das tir4nias , pois prazer, alegria e contentamento autênticos não são   um efeito . Ao contrário, o prazer, a alegria e o contentamento autênticos devem ser  causas que nos auxiliem nas lutas contra as tir4nias. 



 


quinta-feira, 31 de julho de 2025

Espinosa educador: Conceitos, Afetos & Práticas

 

Espinosa vem sendo estudado por pesquisadores das mais diversas áreas. Além disso, o interesse por sua obra não para de crescer, mesmo entre o público não formado em filosofia. Contudo, o contato direto com a obra de Espinosa dificulta a plena apreensão de seus conteúdos . Isso se deve à maneira geométrica mediante a qual o filósofo expõe suas ideias.

Nesse sentido, à primeira vista, parece que Espinosa não teve uma preocupação didática. Mas essa visão se desfaz quando obtemos uma compreensão mais pormenorizada da obra, tendo como pano de fundo seu pensamento  como um todo. Mesmo o uso da geometria tem razões didáticas. Embora sejam poucas, pouquíssimas, as referências de Espinosa à Educação, essas referências valem não pelo seu aspecto quantitativo, mas pela sua natureza constituinte de oferecer  um fundamento e objetivo geral à sua Ética.

É o objetivo principal desta Pesquisa mostrar que há em Espinosa, virtualmente ou em esboço,  a configuração de uma proposta de Educação que, tendo como base sua Ética,  traz elementos que , a despeito de terem sido formulados há trezentos anos, ainda trazem uma novidade que merece ser descoberta. 


Uma das contribuições mais singulares de Espinosa à filosofia , sobretudo no âmbito da Teoria do Conhecimento, é afirmar que o conhecimento não se faz apenas com ideias, o conhecimento também envolve afetos. Para Espinosa, não apenas as ideias são modos ou  maneiras da mente, os afetos igualmente  o são ( Ética, Parte 3, Definição geral dos afetos). Os afetos também envolvem o pensamento: eles são modos ou maneiras de pensar, um pensar que  sente , uma vez que envolve o corpo ( Ética , Parte 3 , esc. da proposição 11).

Por essa razão, há uma diferença entre as ideias e os afetos: enquanto as ideias dizem respeito à mente em seu aspecto intelectual-cognitivo, os afetos expressam a mente enquanto ânimo ( Ética, Parte 2, axioma 3). O ânimo é a mente enquanto unida indissociavelmente ao corpo, isto é, à vida. Às vezes, Espinosa se refere ao ânimo  (animus ) como o “coração”. Não no sentido romântico ou meramente subjetivo, e sim enquanto sede viva dos afetos. O coração também pensa, porém sentindo.

A coragem, segundo Espinosa, é a presença do ânimo levando-nos a agir. A covardia e o  medo ,ao contrário, são  uma forma de des-ânimo: enfraquecimento ou despotencialização do nosso ânimo, isto é, de nossa mente e de nosso corpo. A potencialização do ânimo não se faz apenas com as ideias, mas também com os afetos.  O ânimo fortalecido não teoriza apenas , ele também sente e age : dá pernas e braços às ideias . Um ânimo fortalecido é aquele que age pelo fortalecimento de outros ânimos, de outras mentes e corpos. Esse agir é o fundamento da ética de Espinosa, de tal modo que o conhecer nada é se não suscitar um agir. 

Em Espinosa, “fortaleza” ( fortitudo) não é apenas uma palavra, é uma virtude, uma das principais de sua filosofia ( Ética, Parte 3, prop. 59, escólio). A fortaleza é a expressão imediata da ação mais característica da mente que se torna ativa: a compreensão. A fortaleza é a virtude-potência da mente que compreende. Essa virtude-potência possui dois aspectos interligados: a firmeza e a generosidade. A firmeza é a fortaleza para consigo mesmo enquanto agente, ao passo que a generosidade é a fortaleza  para com o outro. Reconhece-se uma mente que compreende, uma mente que filosofa, pelo fato de que ela é fortaleza de ânimo. Na língua banto, fortitudo é “quilombo”.

O ânimo não se fortalece sozinho, não há um “cogito” que o possibilita, uma vez que o fortalecimento do ânimo  requer o que Espinosa chama de “encontros”, “bons encontros”. O termo “encontro” é a tradução da palavra latina occursus. De rica acepção, occursus também pode ser “circuito”. Esse sentido talvez explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são construídas de forma agenciada; já o mau encontro é , literalmente, um curto-circuito que bloqueia, ameaça , violenta , despotencializa , adoece e tiraniza, corpo e mente.

Occursus também pode significar “boas-vindas”. Na Roma Antiga, occursus era um processo que preparava o introitus, a introdução à cidade, à civitas: do lado de fora das  portas abertas da cidade, o visitante recebia o occursus, o boas-vindas, para em seguida  ser introduzido no convívio da civitas. Um bom encontro constrói um circuito de boas-vindas  . Todo bom encontro  recebe quem nele entra como um espaço de boas-vindas, sobretudo daquilo que cada um tem de singular e diferente , de tal modo que um occursus é sempre um boas-vindas à autonomia[1]. O partejar socrático é um boas-vindas que o encontro filosófico possibilita àquele que , (auto)conhecendo-se, chega enfim a si mesmo como se fosse um ser novo.

O mau encontro, ao contrário, é quando a nossa maneira de ser é mal-vinda : portas fechadas à nossa entrada, seja a entrada ao conhecimento,  seja a entrada à cidadania, seja a entrada à nossa “cidadela interior”, como dizia Marco Aurélio, e sem a qual não há o despertar para a filosofia enquanto autoconhecimento.

Até aqui não empregamos o termo educação. Mas esta é nossa principal hipótese:  todos esses processos que cartografamos sucintamente  em Espinosa descrevem um processo do qual poderíamos extrair uma concepção de educação. Afinal,  um processo  educativo  é um  bom encontro  quando ele é prática de cuidado/boas-vindas ao que no educando  é potência ainda. Um bom encontro é sempre um espaço de agenciamentos, nunca um monólogo. Um espaço educativo se torna um  topos de boas-vindas quando, por intermédio dele, o educando também é introduzido ( introitus)   à sociedade, ao mundo, à vida, enfim, a ele mesmo por meio  da educação que o faz descobrir a si próprio. Também para aquele que educa o processo de ensino e aprendizagem deve ser vivido como um  “boas-vindas”, por mais que se tenha vivido inúmeras vezes aquele encontro na vida. Vista sob essa perspectiva, a educação deve fazer-se como um circuito que emancipa, como uma pólis sempre renovada.  Nesse sentido, a educação é mais do que  transmissão de conhecimento: é construção de  um circuito gerador de um modo de vida. Nesse circuito, não apenas as têm lugar ideias , também estão implicados afetos.



[1] Embora não cite Espinosa , Derrida fundamenta uma “ética da hospitalidade” na prática de “boas-vindas” em um sentido muito próximo ao que aludimos aqui. Apoiando-se nessa “ética da hospitalidade”, Fábio Araújo (2006)  propõe uma clínica da afetividade calcada na ideia de “acolhimento” e “amizade”. E segundo Walter Kohan e Maximiliano Durán (2020), a hospitalidade é um dos princípios de uma “escola filosófica popular”.


Este texto é parte de uma pesquisa sobre Espinosa que desenvolvo na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ UNIRIO. A partir de setembro, haverá atividades abertas  ao público externo. Para informações: eltonluizleitedesouza@unirio.br




quarta-feira, 30 de julho de 2025

o néscio tentando ler o poeta

Fiz esta postagem em 2019, ainda sob o “governo” do inelegível:

 

Não só o elogio que recebemos indica que estamos indo na direção certa em nosso trabalho , pois muitas vezes  a censura recebida  também deve nos encher de satisfação, quando ela vem dos tolos e néscios.

Como ensina Nietzsche, mais importante do que aquilo que  se diz é quem diz. Há certo tipos de pessoas que  a tosca crítica delas a nós deve ser recebida  como um elogio e nos dar ainda mais força para avançar .

Fiz essas considerações acima devido ao seguinte fato: soubemos agora que a poesia de Manoel de Barros foi censurada e proibida de constar no exame do Enem de 2019, já sob o  poder dos fascistas. E o mais grave: foi uma censura motivada por questões teológico-políticas.

Como todo tirano que teme a liberdade de pensamento, dizem que foi o  próprio genocida quem deu o parecer final sobre o que deve ou não constar na prova. Vocês conseguem imaginar o fascista tentando ler  Manoel de Barros!? Deve ter sido algo semelhante ao vampiro diante do alho, ou como o asqueroso ácaro sendo  fulminado pela luz do sol...

Essa censura engrandeceu ainda mais o valor pedagógico ,  político  e libertário do poeta. Sei que soa  paradoxal dizer isso, mas essa restrição dos fascistas a Manoel deve nos encher de alegria: estamos no caminho certo.

Ainda mais porque essa censura é nada frente à obra do poeta, e só revela a pequeneza,  tacanhez e estreiteza daqueles que o censuraram. Eles são como aquelas obscuras pedras citadas pelo próprio Manoel, que assim nos dá o exemplo: “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.”

 

Viva Manoel!!🦋📚✊


Manoel de Barros e as "iluminuras"

 

1.Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém ele disse  que aprendeu a fazer poesia com dois pintores: Klee e Miró.

O poeta aprendeu a fazer “imagens” com os pintores : imagens construídas com palavras, cuja cores e paisagens são diretamente pintadas na tela da alma.

 Manoel chama essas imagens de “iluminuras”: um misto de luz com uma realidade ainda escura, tal como a aurora que tem atrás de si a noite ainda, a noite da qual uma nova manhã se distinguiu , brilhando.

Essa “realidade escura” que participa da criação poética não é como a treva da ignorância e do obscurantismo, ela é como  o escuro no interior do casulo ou do útero, onde cresce o embrião de uma vida nova.

Assim, as iluminuras poéticas são imagens que se lê partejando, como realidade a nascer no poema e em nós, desabrindo-nos.

2. Miró desenhava de maneira  precisa e técnica, porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo  que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

A mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda,  ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda . A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.

 

                                                                   (  O jardim /  Miró) 

terça-feira, 29 de julho de 2025

conversas sobre manoel

 

Estou realizando algumas conversas com profissionais, educadores , filósofos , museólogos , literatos , poetas e artistas em geral  que se inspiram na poética de Manoel de Barros em seus trabalhos.  Essas conversas fazem parte de uma pesquisa (UNIRIO/FAPERJ) que desenvolvo. O nome da pesquisa é : "Na ponta do meu lápis há apenas nascimento : a empoética de Manoel de Barros."

"Empoética" é uma noção criada por Manoel. Da empoética manoelina nascem empoemamentos. "Empoemar" é um verbo que se conjuga em vários modos e pessoas, ensejando singulares práticas. O pintor empoema as tintas, o poeta empoema as palavras, o músico empoema o som, o revolucionário empoema a ação, o doar empoema as mãos, enfim, a palavra que educa empoema a mente.

Empoemar-se é mais do que ler ou escrever rimas e versos; empoemar-se é uma intensificação da vida, na qual o pensar, o agir e o sentir se agenciam, produzindo horizontamentos, por dentro e por fora, pessoais e sociais.

Na semana passada, conversei com o museólogo Clóvis Britto ( UNB/UFBA) , que pensa as exposições museais  a partir da poesia de Manoel. Em breve, conversarei com duas professoras que empregam Manoel para ensinar filosofia no ensino médio.

Amanhã, o papo será menos acadêmico , porém não menos interessante: será com a vencedora de um concurso de redação sobre o poeta ( o nome do concurso foi: "Um passeio com Manoel" ). O nome dela é Ennesli Granjeiro, ela atua hoje como atriz. O concurso foi organizado pela Fundação Manoel de Barros. Já tive a oportunidade de conversar com ela antes, vale a pena conhecer a história dela. Ela conta como se empoemou.

Para quem quiser/puder acompanhar e participar da conversa,  deixarei aqui o link para o meet ( será amanhã, dia 30, das 10h às 11h).

meet.google.com/whz-sykb-tbm




domingo, 27 de julho de 2025

A "sozinhez"

 

                        PARA VENCER A SOZINHEZ

 ( apresentação que escrevi para o livro “Palavra Muda”, do poeta Paulo Vasconcelos)

 

 Segundo o poeta Manoel de Barros, poesia não é apenas verso e rima no papel, poesia é  empoemamento : horizontamento da alma. Cada poeta , quando é um poeta de fato, nos empoema inventando o sentido e o ser do que seja  poesia.

“Palavra é sempre muda”, dizem, “quem fala é a boca”.  Mas Paulo nos ensina que a própria palavra pode ser muda, para assim expressar  o que não consegue dizer a mera boca  que apenas diz palavra.

Paulo inventa um devir-só repleto de esvaziamento de egos. Devir-só não é a mesma coisa que ser sozinho. Esse devir-só é o dizer de  quem expressa , das coisas mais comuns, o seu incomum único.

Paulo data alguns poemas ao modo de   acontecimentos de um diário. São poemas com registro de nascimento , dia e hora, dando a ver que poema é acontecimento unindo  o íntimo lírico ao   social e histórico.

O poeta é um “cristo pagão” que aceita sua solidão acompanhada de deuses, muitos deuses, os do dia e os da noite, sobretudo estes, e ainda mais alguns que carecem de nome, mas não de ser.

Solidão é o dão de quem se dá (“poesia é coisa de dão”, Manoel de Barros). Paulo escreve como quem se esvazia  para que nada resista à poesia que o preenche. Ele se desvencilha do gozo de uma  “sozinhez” narcísica, para assim narrar, não sem dor,  as solidões da singularidade ao mesmo tempo simples e refinada. Em seus versos há perceptos de paisagens sem homens, feitas  de mar , de peixes e desmesuras aquáticas; há montanhas e suas alturas, mas também há o tecido urbano, no qual o humano está à  procura de si mesmo.

Há um fio entre o verso e  nós. O fio não nasce de um ponto, ele nasce de um novelo que Paulo desdobra , esvaziando-se . Não é palavra o que ele nos dá, ele nos dá uma canção que espera o amor voltar para atenuar as dores dessa “difícil vida danada”,  que mesmo assim é celebrada , sem arrependimentos , sem culpa, com boa vodca.

Um “deus” com “d” minúsculo faz-se mais humano que o homem, ele aprende o desejo, a saudade, tem pai mortal e lê cordel. Assim, esse deus      não espera obediência, apenas que o vejamos    incorporando-se “natureza e tempo” , para assim também nos fazer gente, tempo, lua, saudade não nostálgica.

A palavra muda não é a que ausenta a palavra, a palavra muda é a conquista de um silêncio completo: diz tudo sem dizer nada, pois não o diz com o som, o diz apenas com o sentido artesanado.