sábado, 3 de maio de 2025

A lápide

 

Espinosa dizia que a filosofia não é uma reflexão sobre a morte, e sim sobre a vida, sua  pluralidade e potência . A Vida nunca termina: ela se metamorfoseia.

Recentemente conversando com uma amiga, partilhei com   ela como eu gostaria que fosse a metamorfose que me fizesse permanecer na Vida.

Não ambiciono outra vida no “Além”. Queria continuar numa vida que vicejasse aqui no seio da Mãe-Terra, como a vida verdejante de uma árvore.

Amo livro e árvores. O livro é para a  árvore o mesmo que a borboleta é para a  lagarta: pois o  papel que um dia foi árvore , no livro ele ganha as asas da palavra.

Contudo, para quem escreve um livro a continuidade conquistada é apenas “letral”, porém  metamorfosear-se  numa árvore é fazer parte do  Livro da Vida.

Como amo viver, espero que ainda esteja muito distante o meu “desacontececer”  ( “desacontencer” é criação de Manoel de Barros ). Mas quando eu “desacontecer”, não quero  ir para debaixo do chão. Prefiro que envolva meu corpo o fogo de que fala  Heráclito , fogo-arquetípico da Vida Imortal.

Assim, não é ao nada das cinzas  que serei reduzido, e sim ao que houver  em  mim de sumo e adubo. Depois quero ser lançado nas raízes de uma amendoeira , ser sorvido por ela e dela fazer parte. Pois a amendoeira é minha árvore favorita.

A amendoeira é prima das oliveiras, e veio clandestina do Oriente  como semente  incrustada na madeira de uma  nau portuguesa que atravessou os oceanos. Nas terras sábias do Oriente, onde  Sherazade derrotou  o patriarcal Sultão, a amendoeira era conhecida como “a árvore mais resistente”.  

Mas não desejo ser lançado nas raízes de uma  amendoeira vivendo em terreno cercado com dono e proprietário, nem quero que seja  uma amendoeira perto de estradas por onde passam carros neuróticos , apressados. Também prefiro que não seja  uma amendoeira isolada,  inalcançável .

Queria então que fosse meu  novo corpo  uma amendoeira que fizesse parte da Floresta da Tijuca, um espaço amplo , horizontado, sem cercados.

Não queria que fosse     uma  amendoeira perto de trilhas muito frequentadas, prefiro uma  amendoeira que somente poderá ser encontrada  por aqueles que amam descobrir caminhos novos: e que a estes a amendoeira possa oferecer sombra e  proteção .

Entrarei pelas raízes e atravessarei o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos  até alcançar  a verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de bem-te-vis e  pardais, para quem sabe me tornar um deles e pôr para correr os carcarás...

E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas: que a lápide  seja  apenas a amendoeira florescendo em maio, mês em que nasci.

 

 

“Sou tua árvore da guarda e simbolizo teu outono pessoal.

Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura.”

( esta epígrafe escolhida para o texto que escrevi é de  “Fala, amendoeira”, de Drummond; pintura: “Amendoeira em flor”/ Van Gogh)



"Por coisas singulares entendo coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito, considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular."(Espinosa)









quinta-feira, 1 de maio de 2025

Dia do Trabalhador

 

No livro “1984”,  George Orwell mostra que  um  poder t1rano não se mantém apenas com a violência física, ele também se serve da violência simbólica : apagando  certas palavras  do uso público para assim tentar eliminar  também da realidade seu sentido e prática.

Parece estar acontecendo isso com a palavra “trabalhador”, que o poder do Capital tenta apagar colocando no lugar “colaborador” ,isto é,  colaborador do Capital .

Quando a França foi ocupada pelos n4zistas, eram chamados de “colaboradores” os franceses que , de forma submissa, faziam o que os dominadores n4zistas mandavam.

Não por acaso, o nome “colaborador” nasceu da boca dos patrões para designar o trabalhador que não se envolvia com sindicatos, greves, luta por direitos... “Colaborador” é, na visão do Capital, o “trabalhador homem de bem”.

No dia de hoje,  O Globo e Folha falam em   “Dia do Trabalho” , que é algo vazio, abstrato, “sem gente dentro”,  diria o poeta Manoel de Barros. O curioso é que em outras datas comemorativas eles não dizem “Dia da Medicina”, mas “Dia do Médico”, ou “Dia da Advocacia”, e sim “Dia do Advogado”, ou ainda “Dia do Ensino”, mas “Dia do Professor”. Por que no dia de hoje  a mídia corporativa tenta esconder aquele que  exerce o trabalho?  

Além disso, médico, advogado , professor também são trabalhadores: cada atividade é exercida para produzir saúde, justiça, conhecimento...Pode-se, claro, com elas ganhar dinheiro, porém o dinheiro assim ganho vem do trabalho, da produtividade com coisas reais. O Capital, ao contrário, não trabalha: ele explora quem trabalha.  

Uma das palavras mais bonitas em grego é “eudaimonia”. No coração dessa palavra está o nome “Daimon”, pois “eudaimonia” é : “estar na companhia de um bom Daimon”.  Em português,  “eudaimonia” é   “felicidade”.

 Para os gregos, assim como para nossos indígenas, a felicidade não é propriedade egoica de um indivíduo, a felicidade é agenciamento coletivo: impossível o indivíduo ser feliz se a pólis está triste, tampouco pode o indivíduo ter saúde com a pólis  doente.

O Daimon é aquele que, fazendo-nos companhia, ajuda nas travessias. Mas o Daimon só nos faz companhia se aprendermos a ser companhia.

“Companhia” vem de “com-pane”. E “pane” é, em português, “pão”. Assim, fazer companhia é  saber “dividir o pão”. Companheiros: “aqueles que dividem o pão”.

Há o pão que alimenta o corpo: quando esse falta, vem a fome.  Quando um povo não aceita  ser rebanho de tir4nos,  nasce nele    a fome por outro pão: o pão da dignidade e da justiça, pão que  tem o fermento da arte, da educação e da poesia,   pão que alimenta a luta.

 Creio que “colaborador” e “empreendedor” são termos que propagam a ideologia  de que o outro não é um companheiro, mas um “competidor”.

Mas ser trabalhador  é saber-se companheiro das lutas comuns de todo trabalhador pela conquista e partilha dos dois pães: o que alimenta o corpo e o que nutre/liberta o espírito.



Os filmes de Ken Loach são sempre uma ótima pedida para dias como hoje. Terra e Liberdade é um dos meus preferidos:




 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A espada de São Jorge

 

Durante a pandemia perdi uma tia muito querida, uma segunda mãe para mim,  e sei que muitas amigas e amigos passaram por uma dor assim , com perdas semelhantes.

Algum tempo depois, tive um sonho muito marcante com essa minha tia. No sonho, ela me dava de presente um pequeno vaso com duas folhas de Espada de São Jorge , um caderno e uma caneta .  Ela não disse nada, mas seu gesto e expressão  diziam muito. Depois, ela me abraçou calorosamente e se foi...

A Espada de São Jorge  representa não apenas  luta contra a opressão ( tanto as opressões físicas como as  simbólicas), ela  também simboliza proteção. Foi  com ela que São Jorge enfrentou o “Dragão da Maldade”,  como dizia o cineasta Glauber Rocha.

Atena, a deusa da sabedoria, também emprega uma espada assim nas lutas contra o monstro da ignorância  e suas obscuras e diferentes faces.  E Thêmis, a deusa da justiça, igualmente segura  uma espada semelhante, instrumento da dignidade.

A espada de São Jorge também é lança de Ogum-Zumbi que não se curva à Casa-grande; essa espada também pode ser  o fio de Ariadne com o qual Bispo do Rosário bordou suas resistências criativas; e libertário é  quem escreve tendo uma espada assim transformada em caneta,  lápis, giz.

A primeira coisa que fiz quando acordei na manhã seguinte ao sonho   foi ir a uma loja de plantas aqui do bairro . Encontrei num cantinho um pequeno vaso com duas folhas de Espada de São Jorge . Elas precisavam de luz, água, enfim, cuidados. Eram as Espadas de São Jorge mais parecidas com aquelas que minha tia me presenteou desde a eternidade.

Também comprei um caderno e uma caneta semelhantes àqueles que minha querida ancestral me deu, e é nele que anoto meus escritos ( antes de digitá-los).

Todo dia cuido dessas Espadas de São Jorge e penso em minha querida tia. Elas cresceram rapidamente, tanto que precisei trocar de vaso para não impedir o horizontamento delas. De duas folhas que eram   , agora se multiplicaram: já são oito ! Elas também já  floriram,  recebendo  a visita de um beija-flor...E hoje pela manhã , bem cedinho, notei que ganhei um presente:   outra folhinha nova está brotando...

Com perseverança diária, precisamos  regar  tudo o que precisa ser regado: planta, ideia, afeto, ação, liberdade. Para que em  tudo isso encontremos uma  espada, um instrumento de resistência e luta,  que nos proteja dos “dragões da maldade”...

 

(Imagem: “São Jorge”/ Kandinsky)








 

domingo, 20 de abril de 2025

Cristo e os Colegiantes

 

Cristo também foi um prisioneiro político. Os poderosos de então diziam ser Cristo um “subversivo” . Esses poderosos compraram com dinheiro um dissimulado para ser o traidor e acusador de Cristo.

Depois o exército e a polícia da época colocaram   em marcha a vingança ressentida dos poderosos: Cristo foi então  preso e torturado, e os torturadores torturavam Cristo zombando e rindo.

Alguns torturadores de Cristo zombavam de sua dor imitando seus gemidos, tal como recentemente um fã de torturadores imitou, zombando ,  o sofrimento daqueles que a pandemia vitimou.

Antes de ser julgado, Cristo já estava condenado, pois o ódio sempre condena antecipadamente o amor quando vai julgá-lo, sobretudo quando o amor se torna uma prática revolucionária.

Porém , as ações de Cristo , como as de Zumbi e Dandara, continuam vivas naqueles aos quais os poderosos chamam de “subversivos”, ontem e hoje.

Espinosa foi xingado, ameaçado e excomungado .  E foi no seio de uma comunidade que procurava imitar  as ações de Cristo que Espinosa encontrou apoio e guarida. Essa comunidade se autointitulava “Os Colegiantes” , pois para eles Cristo era o mestre cuja lições pediam um aprendizado diário e constante, um aprendizado realizado através de ações, mais do que pela leitura da Bíblia .

“Jesus” , termo hebraico, é um nome; porém “Cristo” , palavra grega, é uma condição que vai além da questão religiosa, e isso talvez explique porque Deleuze chama Espinosa de “o Cristo dos filósofos”.

Entre os Colegiantes, Espinosa se sentiu de alguma forma parte daquela comunidade,   mas não pelo aspecto religioso, e sim  ético-político . Mesmo porque os Colegiantes  não tinham  igreja, padres, sacerdotes ou pastores.  Eles  procuravam imitar , em ações e não em palavras, Cristo e Francisco. Enfim, era uma comunidade composta por Júlios e Júlias Lancellottis.


( imagens : “Cristo sem teto”, obra do escultor Timothy Schmalz; a outra imagem é a do padre Júlio Lancelloti , que foi parado pela polícia durante evento que o padre fazia na Semana Santa para auxiliar  os moradores de rua e sem teto)





 

 




 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Manoel de Barros : o monturo

 

Dia desses uma turma me perguntou qual poema de Manoel de Barros eu mais gosto. Respondi que eram muitos os poemas... Mas para não deixar a turma sem resposta, mencionei o poema no qual Manoel fala de um “monturo”.

Notei um ponto de interrogação no rosto de muitos alunos, e um deles me perguntou: “Professor, o  que é um monturo?” Antes que eu respondesse , outro aluno abriu rapidamente o celular e digitou alguma coisa. Voltando-se para mim, falou: “Professor, a Inteligência Artificial do google está dizendo que  ‘monturo é um monte de lixo’ ”.

Com humor, retruquei : “um monturo não é exatamente um monte de lixo,  talvez a IA não tenha sensibilidade para entender essa diferença”, e a turma, concordando , riu.

Prossegui dizendo que o poeta não fala de um monturo literal, mas de realidades que podem se tornar um monturo. Para continuar explicando  o que era um monturo, precisei narrar o poema, que diz mais ou menos o seguinte:  

Passando certa vez por um lugar ermo, Manoel viu um monturo. Num  monturo estão coisas que já deram sentido a uma vida, coisas que eram   partes de um todo,mas que agora são apenas fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.

No monturo podiam ser  vistos:  os cacos do que sobrou de uma taça que outrora já esteve repleta de vinho  ; os restos de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado   ;  a metade de uma concha que talvez já tenha guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram  no céu aberto como partes de uma asa; a casca seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha  de folhas amarelas que vicejaram  verdes  na primavera; os  ponteiros parados de um relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e  roído pelos anos em  seu solado gasto ; um álbum de retrato cujas fotos  o esquecimento apagou.

Junto a esses restos  também estavam: cacos de certezas que pareciam inquebrantáveis ; farrapos de verdades que pareciam eternas...

Mas debaixo do monturo aconteceu uma surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.

      Da semente brotou  um caule em  rascunho  . O caule   se enroscou e subiu por um pequeno raio de sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a perseverante  semente fez dele um útero do qual nasceu uma flor: um reluzente  lírio.

 

 

"Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético.”

(Manoel de Barros)

 “A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia,

 e pela dor eu descobri o poder da alegria.”

(Belchior)

 

(imagem: “O semeador”/ Van Gogh)



 






sexta-feira, 11 de abril de 2025

ética e deontologia

 

Os jornais estão dizendo : “políticos se reúnem no Conselho de Ética da Câmara para votarem a cassação do  deputado Glauber Braga”.  Porém, a palavra “ética” está mal-empregada nesse caso. O termo adequado é “deontologia”, que significa: “conjunto de obrigações que pauta  uma prática profissional”, seja ela qual for.

“Ética” vem de “éthos”: “caráter” ( enquanto disposição da alma). O correto então seria dizer: “ Comissão de Deontologia Parlamentar”, e não “Conselho de Ética”.

Qualquer grupo , para manter-se coeso, estabelece obrigações de conduta para os indivíduos que dele fazem parte. Até mesmo facções crimin0s4s, nas quais o cr1me é “profissional” ,  têm deontologias, às vezes até mesmo escritas, como se fossem um regimento!

Porém, nada há de ético nessas facções, embora possam   haver julgamentos. Por exemplo,  quando o b4ndido de uma facção fere as “regras” da qu4drilha , é sempre outro b4ndid0 que vai julgá-lo ( no chamado “tribunal do cr1me”), e não um homem justo e ético, pois homens éticos não fazem parte de facções.  Ou seja,  julgar segundo “regras” estabelecidas por eles  até b4ndidos podem fazê-lo. O que b4ndidos nunca podem fazer  é agir de forma ética.

A ética é uma disciplina da filosofia, e é ela que nos permite questionar facciosos que se travestem de parlamentares para fazerem negociatas com o erário público.

Há políticos “profissionais” , mas não há éticos profissionais, pois ninguém pode ser justo ou honesto por profissão, já que ser ético é uma questão de caráter, e não de competência profissional, lícita ou ilícita.

Como diz Oscar Wilde: “Às vezes o voto da maioria nada mais é do que a vitória da f4cção mais numerosa”, como essa f4cção parlamentar sem caráter que quer  cassar o mandato do combativo e corajoso deputado Glauber Braga.

A deontologia profissional é legítima e necessária, claro. Mas ela é somente letra no papel se o profissional não tiver ética. E ética não é uma competência técnica, mas uma disposição humana, empática, solidária, justa e politicamente emancipadora. 

 

#Glauberfica.




 

sábado, 5 de abril de 2025

A flor do ipê

 

Ela se chamava Maria Madalena. Nasceu na favela Nova Holanda, de pai desconhecido. Aos 13 foi abusada,  ficando grávida do traficante do lugar. Mas pouco viveu o recém-nascido: secou a semente antes do broto desabrochar.

Aos 15 Maria Madalena foi viver na rua, sendo usada como   put4 por  muitos que só a queriam explorar : seguranças, policiais... vários se aproveitavam dela   sob a máscara de fingir ajudar;  havia ainda os autointitulados “homens de bem” , que tinham prazer  em a apedrejar.

Aos 18 ela parecia ter 30 a mais: enquanto a anestesiavam etílicos sonhos, vinha o tempo feito um ladrão roubar seus anos, sem dó , sem pena.

Padres, pastores, pais de santo, ungidos...todos diziam que a poderiam recuperar.

Um chegou a  dizer que sua vida era castigo, culpa de outra vida, karma a lhe pesar.

Maria Madalena pegou de novo barriga, novamente a perdeu. Seu corpo era todo ferida, mas lhe doía mais a alma que enlouqueceu.                                    

Numa fria madrugada, ela caiu junto a um ipê perto da Lapa, entre sacos de lixo e urina de cão.

Ela caiu perto da raiz, e só a aurora testemunhou sua transmutação: o ipê a sorveu para dentro de si, a limpou de toda sujeira mundana, sarou-lhe as feridas insanas, a alimentou com seiva até  Madalena com o ipê se fundir.

Naquela manhã , uma nova flor  de vívida cor púrpura  o ipê ao céu fez florir.

 

( A flor do ipê é uma das poucas que floresce durante todo o ano, mesmo no inverno. O ipê nos ensina que é possível ser resistente, sem perder a beleza.

Nossos indígenas diziam que o ipê protegia Pindorama, a ancestral Mátria. Na mitologia tupi-guarani, um dos sentidos de Pindorama é: “terra onde os maus são vencidos” .  

Os colonizadores tentaram acabar com o ipê, porém não conseguiram. Então, descobriram que podiam ganhar dinheiro sangrando uma árvore chamada pau-brasil, cuja resina avermelhada corre no tronco da árvore como em nossas veias o sangue.

Foi a partir do comércio dessa resina cor de sangue que a terra explorada ganhou novo nome, sendo então chamada de “Brasil” pelos seus algozes.

Na boca dos pseudonacionalistas  de hoje , “Brasil”  continua sendo  o nome da vítima explorada , como a  “Madalena”  da história, oferecida por eles  ao colonizador-patriarcal  da hora: Trump.

Nada contra o verde e amarelo, mas prefiro  a bandeira da autêntica independência e resistência que os ipês pintam   em púrpura, rosa, branco e amarelo, as cores ancestrais de nossa Mátria-Pindorama)


"Se o homem é formado pelas circunstâncias, 

é necessário formar as circunstâncias humanamente."

  (K. MARX E F. ENGELS, A Sagrada Família )







sábado, 29 de março de 2025

Sophia

 

                                                                                                              

O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia,

 e significa que a filosofia não pode contentar-se

em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual. 

Gilles Deleuze

 

Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;

mais importante do que o filósofo é o poeta. 

Gilles Deleuze


Serás menos escravo do amanhã,

se te tornares dono do presente.

Sêneca

                                   


Dar uma definição rápida do que significa a filosofia não é tarefa fácil. Oriunda do grego, a palavra “filosofia” nasceu da reunião de duas outras palavras: “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Isso quer dizer que a filosofia não é prática apenas  intelectual ou racional, pois ela se nutre também de uma dimensão afetiva, expressa exatamente pelo termo “philo”. 

Deleuze afirma, por exemplo, que a filosofia não é apenas Conceito, ela também é Afeto (este termo não significa a mesma coisa que o mero sentimento   ). Espinosa ensina, por sua vez, que a filosofia é prática que se faz na Alegria. Já Epicuro menciona o Prazer ( não o prazer fugaz com isto ou aquilo, mas o Prazer de Existir). Outros, como Kierkegaard, Heidegger e Sartre, enfatizam o afeto da Angústia. Há ainda Aristóteles, para quem a filosofia começa na Admiração. Nunca, absolutamente nunca, algum filósofo ensinou que a filosofia pode nascer do ódio, da covardia, do medo ou da intolerância[1]. Ao contrário, a filosofia é um esforço para se tentar vencer essas “sombras”, como diria Jung, ou essas “tristezas”, nas palavras de Espinosa. E é antes de tudo naquele que filosofa que a vitória deve anunciar-se primeiro, em suas palavras e, sobretudo, em suas ações.

O filósofo não é apenas aquele que domina a prática teórica e metodológica de definir conceitos, ele também é aquele que se afeta pelo que “dá a pensar”, e o que dá a pensar nem sempre pode ser explicado por conceitos. Nem sempre o que dá a pensar já está pensado e definido em livros e teorias. Um filme, uma música, um gesto, uma paisagem, um poema, um acontecimento...também dão o que pensar, ou podem dar o que pensar. Mas nada dá tanto a pensar do que a própria vida.

“Sophia” significa “sabedoria”. Assim, uma definição simples e geral da filosofia seria: “amor ou amizade pela sabedoria”, “afeto pela sabedoria”. Visto dessa maneira, o filósofo não é apenas amigo da sabedoria, ele não é apenas um intelectual, ele também é um ser que, como diz Espinosa, cultiva uma paixão alegre  .  O filósofo se mostra filósofo não apenas falando ou escrevendo, ele deve mostrar-se filósofo igualmente, e sobretudo, agindo. Segundo Cícero, o mero sofista busca a retórica das palavras, almejando persuasão; já o filósofo/sábio se exercita em outra retórica: a das ações, cujo objetivo é a compreensão.

Para Espinosa ,  aquilo que o filósofo ama, a Sophia-Sabedoria, não pode ser posse exclusiva, ninguém dela pode ser o “dono”, como  as coisas que geram cobiças, rivalidades, ciúmes. Por isso, o filósofo se alegra quanto mais ele partilha aquilo que ele ama, generosamente.

Segundo ainda Espinosa, a partilha da Sophia-Sabedoria gera a virtude da “fortitudo”, que em português se diz  “fortaleza”. A fortitudo-fortaleza protege e  fortalece cada um que faz dela  ninho e escudo. Não por acaso, na língua banto de nossos ancestrais “fortitudo” é “quilombo”, lugar de  luta e resistência ante  as tiranias .

 “Sophia” não é só teoria, fórmulas, razões. Ela também é Vida, Arte, Poesia. São a essas coisas que o filósofo dedica Afeto. Para Deleuze, não há filosofia sem um modo de viver filosófico, sem um modo de vida. Um modo de vida filosófico não significa uma vida erudita mergulhada em livros, nem um tipo de vida que, para ser vivida, necessita de um título filosófico auferido pela academia.

Além disso, há uma diferença entre a filosofia e o filosofar. Heidegger, por exemplo, afirmava que a filosofia existe desde a Grécia. Porém, o filosofar, enquanto pensar, inaugurou-se na aurora da filosofia, entre os pré-socráticos. Nestes pensadores, o pensar foi exercido de forma múltipla, mais intuitiva do que sistemática.  Depois adveio o seu ocaso com Platão e, desde então, “velou-se”. Para a prática do pensar retornar, pensava o filósofo alemão, é preciso reviver a experiência da “origem”, como a viveram os pré-socráticos, e compreender que o pensar somente se anuncia em uma linguagem que nasça da experiência do Ser como Criação, Poesia. O Pensar é experiência com a aurora dele mesmo.

A filosofia é uma disciplina com sua história, metodologias, temas. O filosofar é uma ação feita não apenas pelo filósofo. Por exemplo, quando alguém, em uma situação cotidiana, emite um juízo acerca da beleza ou ausência de beleza de uma canção que ele ouve no rádio de seu carro, sem que saiba ele está filosofando ou tentando filosofar, pensar, uma vez que ele está emitindo um juízo de gosto. O gosto é um tema da Estética. Se outro homem ao ler o jornal lamenta a ausência de caráter dos políticos, tal homem também está a filosofar, pois ele indaga acerca do caráter. Em grego, “caráter” se diz “ethos”. A ética, enquanto disciplina filosófica, tem na ideia de caráter o seu grande tema (de Aristóteles a Kant, passando por Espinosa). Em geral, quando o senso comum imagina o que é a filosofia, ele costuma identificá-la apenas com uma parte dela: a metafísica. Mas linguagem, justiça, poder, potência, amor, desejo , Deus ( enquanto objeto da teologia racional ou natural)...são temas que podem suscitar o indagar filosófico.

Sócrates inaugura a atitude filosófica indo debater na praça, em meio ao povo, esses temas. Sócrates buscava , com a filosofia, mudar a propensão dos homens em não questionarem suas opiniões ( esse não questionar-se está na base do que Sartre designa “consciência irrefletida”). Para lutar contra inimigo, pensava Sócrates, é preciso ir enfrentá-lo onde ele mora: a praça. Sócrates é o acorrentado que se liberta, sai da caverna e depois retorna para tentar fazer com que os outros acorrentados tomem consciência de que estão acorrentados e retirem o grilhão com a própria mão, pois o tomar de consciência,  enquanto prática de autonomização, é ação que um outro não pode fazer por nós. O parteiro ajuda no ato de parir, mas a consciência que nasce pertence àquele a quem ele auxiliou a nascer.

 De Platão a Deleuze, o inimigo do pensamento é a opinião, a doxa. É Platão que, de certa maneira, afasta a filosofia das praças, reservando o filosofar exclusivamente para aqueles que também soubessem medir, contar, enfim, matematizar. Sabe-se que  Platão afixou à entrada da Academia a seguinte ordem: “não entre aqui quem não for geômetra, mas  também não entre aqui quem só for geômetra”. Esse isolamento da filosofia em relação ao filosofar nasceu exatamente com esse nome: Academia . Este foi o lugar construído por Platão para ser o templo de uma nova divindade: a  Deusa-Razão. Muitos séculos depois, Nietzsche chamará essa Deusa-Razão de um Ídolo construído por Platão para se proteger da multiplicidade, da contradição, da mudança, enfim , da Vida. Nietzsche inclusive opta por filosofar através de uma linguagem não acadêmica, mais próxima da alegoria poética do que da sistemática conceitual. Não obstante, ele não é menos filósofo do que o sistemático e conceitual Kant. Em O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche afirma que o filósofo autêntico sempre tem na mão um “martelo”, que é a crítica que ele deve endereçar a “esses Ídolos” . Segundo Francis Bacon, a quem Nietzsche toma de empréstimo o termo, Ídolo é algo que, no âmbito do conhecimento,  ao invés de fazer o homem pensar, leva-o apenas a cultuar ou adorar. O culto ou a adoração são justificáveis no campo religioso, porém se tornam danosos quando trazidos para a prática do pensamento filosófico, que sempre tem de ser crítico e livre. “Crítica” provém do termo grego “krisis”: capacidade de julgar, discernir ou avaliar.

Sophia também pode ser um nome próprio. "Sophia", ou "Sofia", é o belo nome que muitos pais escolhem para chamarem a quem trazem à vida. Por outro lado, “Teoria” é tão abstrato que alguém vivo não se deixa chamar assim, tampouco pode ser o nome de alguém “Razão” ou “Ciência”. Não dá para imaginar alguém se chamando “Razão”! (embora muitos imaginam encarná-la e serem donos exclusivos dela...).

 Tal como uma pessoa , a sabedoria só atende se for chamada pelo seu nome. Se alguém a chamar apenas de "razão" ou "ciência" ela não atenderá, ela não virará seu rosto para quem assim a chamar, mesmo que grite, mesmo que, com poder, ordene. Mas assim como uma pessoa é mais do que seu nome, a sabedoria é mais do que sabedoria, ela também é generosidade, coragem, modéstia, invenção.



[1] Talvez as únicas exceções sejam o “Polemos” , de Heráclito, e o “Ódio”, tema encontrado em Empédocles. Dito de maneira simples, o  “Polemos” é a unidade indissociável e complementar do par “Construir-Destruir”, enquanto que o “Ódio” é, em Empédocles, o par complementar ao Amor. Mas tais “afetos” nada têm de “humano, demasiado humano”, uma vez que são forças cósmicas. Inclusive, há certa  “inocência” no “Destruir” como um dos polos do “Polemos”, como a criança que destrói o castelo de areia após construí-lo por brincadeira inocente ( ou “brincatividade”, como diz o poeta Manoel de Barros). Talvez inspirado nisso, Nietzsche tenha dito : “Só podemos destruir sendo  criadores” ( Gaia ciência, aforismo 58).



Imagem: Deleuze & Guattari ( e o livro que escreveram juntos). A expressão "Nós, os bruxos" é uma referência ao que disse e sentiu  um escritor ao ler Espinosa: "era como se eu subisse na vassoura de uma bruxa", isto é, a vassoura da bruxa como meio para desterritorializações e linhas de fuga  horizontadoras de mundos. 






quinta-feira, 27 de março de 2025

Ainda estamos aqui

 

Após derrotar as forças obscuras associadas  ao ódi0, à ving4nça e  à violênci4 , Zeus , divindade associada à ética e à justiça, decidiu  casar-se com Mnemosyne , a divindade  da Memória.

Desse enlace entre a ética, a justiça e a memória nasceram as Musas, divindades das Artes. As artes não são apenas para distrair ou entreter, pois elas nasceram do agenciamento entre  a justiça , a ética e a memória  para cantarem juntas a vitória de Zeus sobre as forças da obscurid4de.

Nesse sentido originário, não  apenas a poesia, o canto, a música , o teatro ...são artes. Tornar a vida digna, justa, solidária , potente...isso também requer arte, talvez a mais necessária delas: a arte cuja obra a criar é a nós mesmos, individual e coletivamente.

O filme “Ainda estou  aqui” possui  esse sentido originário de uma memória da ética, de uma ética da memória, como instrumento da justiça social que dá sentido às lutas políticas igualitárias, não somente as de ontem, mas sobretudo as de aqui e agora.

Em seu livro 1984, Orweell nos mostra que um dos objetivos de todo totalit4rismo é apagar a história, ou (re)escrevê-la de forma deturpada ( como tenta fazer hoje  a Brasil Paralelo e suas fake news ameaçando nossas escolas...).

Não por acaso,  Alexandre de Moraes e Flávio Dino citaram ontem na fundamentação de seus votos  a questão da memória como elemento constituinte da defesa  da ética e da justiça, uma memória que deve não nos deixar esquecer não apenas os atos vis da b4rbárie, mas também que se pode vencê-la, se em torno da ética e da justiça nos agenciarmos.  Dino, inclusive, cita o filme “Ainda estou aqui” como exemplo dessa implicação imanente entre arte e justiça.

Não só a justiça feita por juízes, mas sobretudo aquela que deve ser mantida viva por nós mesmos enquanto justiça social da qual todos nós , enquanto estivermos aqui, somos os atores.

No julgamento de ontem, dava vida a essa memória a presença  dos parentes ( como Hildegard Angel e Ivo Herzog)  dos desaparecidos e mortos pela ditadura, que agora, enfim, estará onde merece: no banco dos réus.

Em sentido seu originário , cada obra de arte é um canto que celebra e co-memora, cria memória, daquilo que não nunca pode ser esquecido: que a b4rbárie pode ser derrotada.


@sem anistia!







 

segunda-feira, 24 de março de 2025

A origem da ideia de cultura

 

                                            O VINHO, O AZEITE E O PÃO[1]

 

Originalmente, a ideia de cultura nasceu da prática de cultivo de três plantas cujo valor é também simbólico: a vinha, a oliveira e o trigo.  Na Odisseia , considerada a obra que inaugura a literatura ocidental, Homero dará especial importância ao trigo, e chega a dizer que é a semente do trigo aquela que melhor representa a condição humana.

A vinha é a árvore da qual  vem o vinho. Essa bebida está associada à festa, à alegria. Pois festa e alegria também dão sentido à vida dos seres humanos. Na mitologia, o vinho é associado a Dioniso, divindade ligada às artes, sobretudo a arte de criar novos modos de vida. Isso explica a origem do seu nome: “Dioniso”, “aquele que nasceu duas vezes”, sendo o segundo nascimento um renascimento, criação de vida nova.

Da oliveira vem o azeite de oliva. O azeite é tempero, ele permite temperar o alimento. De tempero vem “temperança”, uma das virtudes  fundamentais da ética. O azeite também é parte dos ritos sagrados de diferentes sociedades , pois ele é um   elemento que unge e protege .

E do trigo vem o  pão. O pão é o que mata a fome. Mas há também o aspecto simbólico do “pão”. Em latim, por exemplo, “pão” é “panis” , raiz do termo “companis”, do qual nasce “companheiro”: “aquele com quem dividimos o pão.” Há o pão que mata a fome do corpo, e há também o pão que alimenta a ação ( o pão da liberdade) , o conhecimento (o pão das ideias) e a sensibilidade( o pão das artes). 

A vinha e a oliveira podem  crescer selvagemente, isto é, sem precisarem ser cultivadas. Porém  o trigo é tão frágil, requer tantos cuidados, que ele somente cresce sendo cultivado pelas mãos humanas . “Cuidado” vem de “caute”[2]: prática de proteger o que é frágil. Não porque seja fraco, e sim em razão de ser uma potencialidade que, para aflorar, requer que cuidemos.

Uma criança, por exemplo, não é fraca, ela é frágil. Ela pode parecer fraca quando a comparamos com a força de um adulto já pronto e formado. Mas essa comparação é errada e não deve ser feita, pois potencialidade nada tem a ver com força física. Potencialidade é uma possibilidade que precisa do tempo e de cuidados para aflorar e virar plena realidade.

A semente também é uma potencialidade assim: se plantarmos uma simples semente e cuidarmos dela, da semente nascerá uma árvore com incontáveis frutos, e dentro de cada fruto haverá uma nova semente. Se plantarmos essas novas e plurais sementes nascidas da semente simples primeira, nascerão novas árvores com novos frutos e sementes...Isso significa que no interior de uma semente única existe, em potência, uma floresta inteira...

O que vale para a semente vale ainda mais para uma criança: há na criança uma diversidade de possibilidades a aflorar. Para isso acontecer, é preciso que a educação seja a mais necessária das práticas de cuidado, uma vez que a criança é frágil por ser plena de potencialidades.

 Fraco, ao contrário, é tudo aquilo que quer se impor empregando a força . As ideias são frágeis, porém fraca é a mente ignorante. As palavras são frágeis, mas fraca é a voz que apenas berra e grita, pois nada tem a dizer.

 Assim, tudo o que é frágil é uma abertura ao futuro, ao que precisa ser criado. Já fraco é aquilo que , em nome de um passado que se quer conservar à força, demoniza a diferença, a criatividade e tudo aquilo que é fonte de novos modos de vida. Frágil, portanto, é tudo aquilo que, para florescer, precisa da prática do cuidado. Pois tudo o que é frágil depende do amanhã. Mas o cuidado enquanto tal não pode esperar pelo amanhã: ele precisa ser exercido sempre agora, já.

Voltando à Odisseia. É por isso que o trigo é a semente que também simboliza a condição humana enquanto potencialidade. Ao contrário, quando se faz culto da selvageria ( nos vários sentidos que essa palavra tem) , da  semente nascem apenas inumanidades  que põem em perigo a condição humana e o terreno aberto e plural da cultura.

Do trigo não vem apenas o pão, dele também vêm o bolo, o macarrão, a farinha, as diversas massas...Enfim, múltiplas realidades  que  podem nascer  da potencialidade  que vive nele. Semelhante ao trigo também é o ser humano: somente a cultura pode nele fazer aflorar o poeta, o cientista, o médico, o jardineiro, o professor, o cidadão, enfim, ele mesmo. Pois é a cultura o meio físico e simbólico para  o ser humano  criar e dar um sentido a ele mesmo.

 

Quem quiser ler mais acerca dos  diversos símbolos que dão sentido à condição humana, ontem e hoje, sugiro este livro ( que muito influenciou Nise da Silveira na criação do Museu de Imagens do Inconsciente):






[1] Texto-aula elaborado pelo prof. elton

[2] “Curador” também vem dessa palavra latina. “Curador”: “aquele que cuida”.