https://ateliedehumanidades.com/2019/08/31/fios-do-tempo-sobre-os-fios-por-elton-luiz-leite-de-souza/?fbclid=IwAR1llGtBldAqOAbcWUYeyHi8X46yummnKC__4I2r2BEUM11qEWbZvJb8TKs
sábado, 31 de agosto de 2019
devir-índio...
Certa vez, um
antropólogo inglês entrou na oca de um índio e viu uma máquina de escrever
pendurada na parede da oca como se fosse
um "desutensílio", diria o poeta
Manoel de Barros. Isso aconteceu em 1950, época em que a máquina de
escrever era o símbolo técnico da cultura autointitulada “civilizada”. O
antropólogo nada perguntou ao índio, e retornou a Londres para tentar entender aquele ato
que subvertia o significado e uso costumeiros daquele objeto. O
antropólogo consultou teses e tratados,
porém nada encontrou na teoria que
explicasse o gesto do índio. Até que , de repente, ele olhou para a parede
de sua biblioteca e viu um arco e flecha pendurados como enfeite...Então, o acadêmico compreendeu que aquilo que ele
fizera com o arco e flecha, o índio fez com a máquina de escrever... Graças ao
ato artístico-subversivo do índio, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu
próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos. O índio era o outro do branco, mas o branco
também era o outro do índio. Nem todos são brancos, nem todos são índios, mas
todos são outros: o outro é o valor mais universal. É esta universalidade da
Diferença o que o poder paranoico mais
teme, e é contra ela que ele quer impor seu modo de viver homogêneo, “mesmal”. Nada contra o olhar
científico, nada contra o olhar objetivo e racional. Mas para conseguirmos
enxergar o que nos faz humanos nessa época trevosa, na qual até a barbárie é
tecnológica, só mesmo redescobrindo em
nós o olhar ancestral.
"Tenho em
mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu
caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa
genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de
Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa
fascinação me levou a conhecer melhor os índios” (Manoel de Barros)
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
assobios...
Há uma passagem do livro “Assim falou
Zaratustra”, de Nietzsche, na qual
Zaratustra cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de
fragilidade, o anão suplicava amor e amizade
a Zaratustra, e lhe pedia para ir
em seus ombros. Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor:
o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão
sobre seus ombros e seguiu sua viagem. Porém
não avançou muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos
perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava ver logo ali adiante.
Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo
ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e
lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo destino dos dois, já se
imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim,
vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e
implorar aos carrascos perdão. Zaratustra já se inclinava para prostrar-se derrotado
quando, de repente, um grito veio de dentro dele e protestou : “Pera lá,
anão! Você quer é me submeter à tua covardia, às tuas pernas curtas!”.
Livrando-se das seduções da autopiedade,
Zaratustra expulsou o anão de suas
costas. Foi a voz da vida, da vida que resiste
e avança, que protestou contra a resignação que já tomava conta do querer de
Zaratustra. Em alguns, essa voz se faz alta para acordar e levantar
quando carrascos nos querem ajoelhados; noutros, nos já despertos, essa
voz se faz poesia e se transfigura
assobio, como em Manoel de Barros.
quinta-feira, 22 de agosto de 2019
o burro, o leão e a criança
Nietzsche diz
que o homem pode passar por três metamorfoses : a do burro, a do leão e a da
criança. O burro é aquele que diz “sim” ao que está dado: ele aceita,
passivamente, os valores estabelecidos. Sua forma de aceitação é “dar as
costas” para carregar. É assim que o burro se sente “útil” : carregando o peso
que em suas costas colocaram. Todos nascemos mais ou menos burros, pois
carregamos , desde a infância , os valores de um mundo que já achamos pronto,
dado. Quando o poder diz que só se deve
ensinar às crianças tabuada e gramática, e nada de artes e filosofia, o que ele
quer é manter submissos seus carregadores também no futuro. O leão pode nascer
do burro quando este sofre uma metamorfose, aprendendo a dizer “Não”. Ninguém
sobe no dorso de um leão: ele vê em tudo
uma jaula onde querem prendê-lo. O leão
é ferozmente crítico e cético,
imaginando que ser potente é negar . O
leão pode mais do que o burro,
porém é incapaz de criar , pois
para criar é preciso crer. E o leão em nada crê. O leão imagina que crer é ser como o burro que ele já foi. Do
leão pode surgir nova metamorfose: a
criança, aquela que redescobre a força do “Sim”. Pois o Sim da criança não é
como o sim alienado do burro. O Sim da
criança sobreviveu ao não do leão, o incorporou como crítica, porém vai além
dele, tornando-se afirmação de uma potência
criativa . A criança não carrega, como o burro; nem ruge e ameaça, como o leão.
Ela libertou-se de todo peso, corre e dança, e há nela uma força mais poderosa
que a dos dentes e garras. O burro é refém dos valores do presente que o esmaga e aliena; já o leão
nasceu quando este presente virou passado que o leão não quer mais que se
repita. Mas a criança é , ao mesmo tempo, metamorfose no presente e libertação
do passado em razão de uma crença ativa no futuro , uma “linha de fuga”, como criação
de novas possibilidades para a vida, a despeito das forças obscurantistas que
ameaçam retê-la. Não se trata de otimismo ou esperança: “Só podemos destruir sendo
criadores”(Nietzsche)
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
domingo, 18 de agosto de 2019
o canto de orfeu
Certa vez as Fúrias, deusas do ódio e
da vingança, queriam dominar o mundo, e viam no poeta Orfeu um obstáculo , pois
o cantar de Orfeu despertava nas pessoas as ideias de beleza, dignidade e amor à vida. As Fúrias ordenaram que Orfeu se calasse, porém o poeta
não obedeceu. Então, elas despedaçaram o poeta, começando por lhe cortarem a
cabeça separando-a do corpo. Mas a cabeça do poeta continuou a cantar, e cantava ainda mais forte, com seu
canto indo mais longe , pois a voz do poeta uniu-se à
liberdade e fez dela o seu corpo
:sua voz agora não era só dele, era de
todos que não se calam.
“A literatura é o esforço para
interpretar engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não
sabermos mais sonhá-los ou produzi-los.”(Deleuze)
( parte do que escrevi interpreta uma
passagem deste livro , um dos melhores
sobre mitologia. A ideia de “criança divina” não tem conotação religiosa, mas
puramente poética , como diz Manoel de
Barros: "A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”)
sábado, 17 de agosto de 2019
os porcos e seus negócios...
O filósofo Leibniz dizia que se a gente
prender uma semente na mão com o tempo ela apodrece. Mas se a gente plantar a
semente, cuidar e cultivar, dela nascerá uma árvore. Da árvore nascerão
incontáveis frutos : dentro de cada um, uma nova semente. Se a gente plantar
essas novas sementes delas nascerão outras árvores, cada uma com inumeráveis
frutos, cada um grávido de novas sementes. Naquela primeira semente havia virtualmente
uma floresta inteira , uma floresta-potência, assim como em uma criança está a humanidade à espera de
crescer. Pois humanidade não é uma quantidade numérica afim a rebanhos, mas uma potencialidade inseparável
de nossa singularidade, e que se cultiva com educação, afeto e liberdade . Para uma potencialidade florescer,
da semente ou de uma criança, é preciso um exercício de cuidado e um espaço
aberto livre de estreitezas. Dentro de uma ideia viva há outras ideias, infinitas ideias, pois toda
ideia viva é plural e múltipla, já nos ensinava Espinosa. Educadores plantam ideias-sementes,
obscurantistas se armam com motosserras.
Reduzindo a vida a mero negócio, esses obscurantistas só aceitam sementes que possam manipular
como se fossem moedas. Quando as plantam, tais sementes se tornam tão fracas
que, para se manterem vivas, precisam de veneno, de muito veneno, que mate as outras vidas diferentes delas . Então,
os obscurantistas derrubam as heterogêneas
e múltiplas florestas , deixando no lugar apenas morte e deserto .
Depois cobrem esse deserto com soja homogênea parecendo um rebanho vegetal , que
vira ou óleo para fazer as engrenagens do Capital girarem ou farelo que só aos porcos engorda.
“Poeta é ser que vê semente germinar.
Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol” (Manoel de Barros).
quinta-feira, 15 de agosto de 2019
anti-tirania
Há um aspecto muito pouco citado,ou
talvez pouco conhecido,em relação aos primeiros filósofos-pensadores gregos
(assim chamados de "pré-socráticos"): eles se opunham aos tiranos , e
por estes eram perseguidos .Esses primeiros filósofos eram chamados de
"sábios" não em razão de virtudes teóricas contemplativas, mas porque
a palavra "sábio" nasceu para designar a antítese do tirano. Assim, o
sentido original de “sofia”, como raiz da filosofia, é : “anti-tirania”.
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
a fonte, o rio e o mar
Quando um acontecido passa e se torna
passado, e entre o acontecido e nós vai aumentando uma distância que só o tempo pode medir ( pois
não é uma distância no espaço), esse passado que passou , sua passagem e o seu
ficar para trás, é algo irreversível? O que passou se vai e nunca pode ser de
novo vivido a não ser como um fantasma que se evoca ? Ou será que é o passado
que retém e salva o que no presente passa? Afinal, dizia Bergson, não é o
passado que passa, quem passa é o presente. Não é o acontecido que se afastou,
fomos nós que nos afastamos dele? Somos como peixes que saíram da nascente do
rio onde nascemos e fomos ao mar? É possível, tal como fazem os peixes, desterritorializar-se
do mar, entrar de novo na foz do rio,
subi-lo contra a correnteza e alcançar de novo a fonte onde nascemos? Se isso
for possível, esse retorno ao passado não é nostalgia, ele é o intuir a vida que nunca se separa totalmente de si mesma. Ir para o passado não é um voltar, mas um
ir para dentro, cada vez mais próximo de onde o tempo brota, para assim descobrir, intuindo, que é o próprio tempo a água que se torna rio, avança como fluxo e se horizonta, azul, como mar.
o nascimento de Bios
Segundo o mito, antes de tudo
existia o Caos. Para os gregos, o “caos original ” não é destruição ou
trevas. Um dos sentidos de caos é
“Abertura Ampla”, que não pode ser cercada, limitada ou contida. Manoel de Barros diz que “não se
pode passar régua no Pantanal”, pois no Pantanal os rios saltam das margens e
se horizontam. O Pantanal é o caos poético de Manoel. E é por isso que em cada verso dele podemos
achar aquela Abertura da qual vem um ar
vital que não nos deixa sufocar. No
mito, foi do Caos que nasceu a primeira divindade: Gaia, a Terra. A palavra
"nascer" não é muito adequada, pois todo nascer pressupõe um pai e
uma mãe. O Caos não é homem ou mulher, macho ou fêmea, tampouco o Caos é filho
de alguma coisa. O adequado talvez seja dizer que Gaia emergiu do Caos, tal
como uma ilha que sobe do fundo de um oceano insondável. Gaia é a Ancestral Mulher. De Gaia nasceu Uranos, o
Céu. Também aqui "nascer" é um termo inadequado, pois Gaia não tinha
par: ela era plenamente ímpar, como tudo o que é singular. Talvez seja mais
adequado dizer que o Céu-Uranos foi um pedaço da Terra que se separou dela,
pondo-se acima a gravitar. Nessa época , a Terra era toda ventre, múltiplos
ventres. Cada ventre era uma caverna que
se estendia até o Caos, a imanência fértil. E foi por um desses ventres que
veio ao mundo Eros, o Amor. Este ocupou o lugar vazio entre a Terra e o Céu. O
Amor tem por força unir o que está separado. Pela ação do Amor, o vazio entre o Céu e a Terra foi
vencido: o Céu deitou-se então sobre a Terra,
e as estrelas do Céu plantaram-se
na Terra, tornando-se sementes. Foi assim que nasceu “Bios” ( a “Vida”) :
como estrela do céu tornada semente da terra. E
é de Bios que nasce tudo o que vive. De Bios nasceram o Tempo ( Cronos) , a Justiça (Zeus) , a Arte (Dioniso) e a Sabedoria (Atenas). Semente que nunca
seca, apesar dos atuais desertos, de Bios
continuam a nascer as crianças , as flores, os bichos, as ideias, os
poemas, as resistências, as utopias ...e o desejo de que amanhã seja um novo dia.
"Poesia é celestar as coisas do
chão."(Manoel de Barros)
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