segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O que é um afeto?

                                                  O QUE É UM AFETO?[1]

 

Há três ideias que  são muito confundidas e empregadas  como se fossem sinônimas, mas que na verdade se diferem quando as analisamos   mais de perto. As ideias são: emoção, sentimento e afeto. Essas ideias estão profundamente ligadas  às vivências cotidianas, não sendo , portanto, algo meramente teórico. Daí a importância de sabermos distinguir essas ideias, tanto na vida  pessoal quanto no campo profissional, sobretudo para aqueles que têm atividades criativas as mais diversas envolvendo o afeto, o sentimento e a emoção das pessoas.

Etimologicamente, “emoção” significa “ser movido”. Por exemplo, quando nosso rosto fica vermelho de vergonha, isso acontece porque nosso sangue é movido até à superfície da pele. Quando nossos pelos se eriçam de medo, é como se eles fossem movidos por um vento. A emoção é um movimento físico que acontece no corpo[2]. A emoção também pode gerar uma aceleração dos batimentos cardíacos  ,  uma respiração ofegante e outros aspectos fisiológicos. A emoção é algo tão profundamente ancestral em nós, que ela envolve  até mesmo movimentos involuntários que podem afetar os órgãos internos. Por isso, emoções fortes podem adoecer, tanto a mente  quanto o corpo

Em geral , as emoções são os traços físicos que os sentimentos deixam, como se fossem as pegadas que um passante deixa na areia. Na verdade, sentimento e emoção andam juntos, eles se acompanham.

Hoje, há um longo debate acerca das seguintes questões: os sentimentos são naturais ou são construções culturais? Os sentimentos têm uma origem natural que é ressignificada de forma diferente  conforme as culturas? Não há uma resposta única em relação a essas questões que envolvem diversas áreas de estudo. Mas é certo que  sentimentos e emoções têm relação com  comportamentos que remontam à origem do processo de hominização. Os autores parecem concordar que emoções e sentimentos são sentidos individualmente, porém recebem forte carga de codificação social[3].

Parece haver um lugar privilegiado no qual os sentimentos se deixam ver de forma mais direta. Esse lugar é o rosto, a face. Saber reconhecer um sentimento no rosto de alguém requer aprendizagem social, e esse é o princípio da empatia. Os psicopatas, por sua vez, são desprovidos dessa capacidade social associada aos sentimentos e emoções.

Enfim, medo, angústia, amor, alegria , ciúme, tristeza, etc. são sentimentos  da alma que também se traduzem como emoção no corpo. Sentimentos e emoções surgem das situações da vida, possuindo uma natureza social e psicológica.

A palavra “afeto” deriva de um termo latino que significa “ser tocado”. Há uma proximidade entre o afeto e o sentimento, porém eles não significam a mesma coisa e nem são vividos da mesma maneira. Por exemplo, há um livro de Sartre que se chama Náusea . Na vida concreta, em meio aos encontros que fazemos com pessoas e coisas, podemos viver situações que geram náusea. Se a náusea for forte, podemos até passar muito mal. Mas quando lemos o livro de Sartre, não estamos diante de situações concretas, já que entramos em um mundo construído pelas palavras. Porém, quando lemos o livro e entramos em contato com as descrições que o autor faz de certas situações, também sentimos náusea! Mas essa náusea sentida foi produzida pela palavra literária, pela palavra artística, e não por pessoas ou coisas concretas. Apesar disso, a náusea que sentimos ao ler o livro é real:  como  realidade do afeto.

O afeto é o sentimento depurado das condicionantes psicológicas, para assim ser recriado como experiência estética. Na literatura, o afeto está, ao mesmo tempo, na palavra e em nós. Portanto, o afeto não é puramente subjetivo ou psicológico, uma vez que ele é  expresso em uma materialidade criada para dar-lhe vida, como o corpo da  palavra na literatura, o corpo das tintas na pintura, o corpo dos sons na música.

Portanto, toda arte expressa afetos.  A música é feita de sons que produzem afetos. A pintura é composta por paisagens e seres pintados que geram afetos. Quando olhamos uma noite estrelada podemos ter vários sentimentos: admiração, encantamento, espanto, sublimidade... À medida em que as horas avançam, o dia amanhece e aquela noite estrelada desaparece, vai embora, nunca mais retorna, e passa a viver apenas em nossa memória. Mas quando olhamos a pintura Noite Estrelada sobre o Ródano, de Van Gogh, vários afetos podem ser despertados, inclusive esses afetos podem reavivar os sentimentos guardados em nossa memória de alguma noite estrelada que já vivemos.


Uma imagem contendo Interface gráfica do usuário

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( Imagem 1: “Noite estrelada sobre o Ródano”, de Van Gogh. Acrescentei os versos do poeta Keats à pintura de Van Gogh)


Mas enquanto a noite estrelada que vimos no passado passou e foi embora, a noite estrelada que Van Gogh pintou nunca passa: ela conquistou a eternidade. Não a eternidade de uma vida após a morte , e sim a eternidade de uma vida que nunca morre, uma vida (re)criada como arte. É por isso que essa obra é conservada: o que se conserva nela não são apenas as tintas, mas o afeto que as tintas expressam. Sabe-se que as tintas que Van Gogh empregou para pintar não eram de boa qualidade. Mas a riqueza das obras não está nas tintas em sua materialidade, a riqueza se encontra nos afetos que Van Gogh eternizou em suas pinturas.

Quando a vereadora Marielle Franco era viva, a visão da porta do seu gabinete gerava vários sentimentos acompanhados de emoções, pois era uma porta na qual estavam colados adesivos com diversas mensagens que traduziam a luta de Marielle por justiça, igualdade e dignidade. Hoje, essa mesma porta se tornou parte do acervo do Museu da Maré. Através da porta, Marielle revive e nos afeta, pois a porta expressa afetos que mantêm viva a luta de Marielle.

 

Tela de jogo de vídeo game

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( Imagem 2: a porta do gabinete da vereadora Marielle Franco)

 

Enquanto os sentimentos podem desaparecer quando alguém não os sente mais , ou quando aquele que os viveu deixa de existir, os afetos permanecem nos signos criados para serem seu corpo. Quando era parte do gabinete da vereadora Marielle , a porta não era percebida como signo, já que ela era usada segundo sua função. Mas a realidade semiótica já estava nela, porém  apenas em potência, da mesma maneira que o afeto está em potência nos sentimentos que vivemos em nossa vida cotidiana.

Enquanto pintava o quadro Noite Estrelada sobre o Ródano, certamente Van Gogh sentia sentimentos que o emocionavam , sentimentos esses acompanhados de emoções que faziam seu coração bater mais rápido e sua respiração ofegar. Mas Van Gogh não ficou  restrito apenas  aos sentimentos e à  vida psicológica subjetiva, ele se agenciou com as tintas e as fez de corpo para com elas recriar o  Céu Estrelado que via. Ele fez a potência se tornar ato: ele transmutou o sentimento em afeto, de tal maneira que aquilo que ele viu e sentiu sobreviveu a ele mesmo, oferecendo-se como arte para que a gente , ao ver o quadro, também veja e sinta o que ele viu e sentiu. Nunca a gente vai conseguir ver o céu que ele viu pessoalmente e que lhe gerou sentimentos , a gente vê através do quadro o céu que Van Gogh pintou ao transmutar seus sentimentos em afeto partilhado. Ao olharmos o quadro, a  gente não vê o céu que Van Gogh viu pessoalmente, a gente vê a visão do céu que Van Gogh eternizou , eternizando a si mesmo no corpo expressivo das tintas.

Arthur Bispo do Rosário viveu imensas dificuldades na vida, dificuldades sociais, financeiras, preconceitos, exclusões...Tais dificuldades produziram sentimentos e emoções demolidores, mais do que ele , ou qualquer um de nós, poderia suportar. Bispo do Rosário surtou, desmoronou por dentro...Foi através da arte , bordando afetos, que ele conseguiu de alguma maneira pôr-se de pé novamente. O afeto é conquista de saúde : ele também pode ter um efeito clínico.


Imagem digital fictícia de personagem de desenho animado

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( Imagem 3: “Manto”, de Arthur Bispo do Rosário. Aberto, o Manto se assemelha às asas de uma borboleta, como se expressasse a metamorfose do sentimento em afeto)

 

Em seu livro Arte Poética, Aristóteles se debruça sobre as artes, sobretudo o teatro grego, para argumentar acerca de qual seria a principal “finalidade” da arte. Para ele, a principal função da arte é produzir uma catarse.  Essa palavra vem do grego katharsis , que significa “limpeza”, “purificação”. Originalmente, essa palavra designava o efeito que a água do mar produz em quem se banha nela. Pois o sal da água do mar sara feridas no corpo , além de ajudar igualmente a sarar feridas na alma. A água do mar limpa, purga.

Aristóteles transpôs essa palavra para aplicá-la ao efeito que a arte produz em quem entra em contato com ela. A arte tem a potência de expurgar os sentimentos represados e  reprimidos , liberando a energia retida por emoções negativas. A arte libera essa energia emocional , provocando dessa maneira o efeito catártico.

 No palco, os atores não estão sentido raiva, ódio e rancor de verdade. Sobre o palco , há afetos que os atores expressam mediante seus gestos, expressões faciais e voz. O afeto artístico é o sentimento reelaborado. Na vida, os sentimentos negativos podem adoecer  quem os sente, ou provocar violências que podem resultar até mesmo em crime ( como os crimes de ódio e vingança). Mas ao entrarem em contato com esses sentimentos transformados em afetos artísticos, essa experiência pode exatamente levar o espectador a perceber os efeitos perniciosos dos sentimentos e emoções, quando eles nos fazem de marionetes , roubando nossa autonomia. Por isso, o teatro grego tinha igualmente uma dimensão política, uma política dos afetos em favor da democracia.

Uma obra de arte não é sentimentalismo, tampouco é algo apenas pessoal. Uma obra de arte é afeto, isto é, transformação do sentimento pela reelaboração estética que cria um mundo que amplia e potencializa nossa sensibilidade e pensamento , fazendo-nos sentir e pensar. Somente a arte tem a capacidade de dar concretude aos afetos , possibilitando que possamos partilhar o que sentimos e aprendermos com isso, como conhecimento[4] e autoconhecimento.

Não é errado chamarmos de “afeto” os sentimentos que sentimos em nossa vida pessoal no encontro com situações e pessoas. Porém, a obra de arte depura esses sentimentos e os transmuta em afetos, isto é, em signo. É por esse motivo que uma obra  de arte, ou um objeto exposto em uma exposição, expressam afetos[5]. E tanto quanto os sentimentos, os afetos de uma obra de arte também podem  nos produzir intensas emoções, porém nos permitindo pensá-las através de um pensar do qual também participam ativamente a sensibilidade e o corpo.

Pensar os afetos através das artes pode ter um efeito positivo na nossa relação  com nossos sentimentos e emoções, levando-nos a ser menos passivos e dominados por eles  , aprendendo  a reelaborá-los para que potencializem nossas ideias e ações, tanto no campo pessoal quanto profissional.

Nietzsche dizia que os artistas são “os médicos da civilização”. Creio que podemos interpretar essa frase de Nietzsche no sentido que estamos apresentando aqui neste texto. O artista trabalha sobre si mesmo, inclusive empregando seu inconsciente. Ele não fica refém de seus sentimentos, e é por isso que não se deve reduzir o sentido de uma obra artística à dimensão pessoal e biográfica do criador. Sem dúvida, Van Gogh teve medos, inseguranças, raivas, decepções...Mas sua obra não é um efeito desses sentimentos. Ao contrário, sua arte é transmutação desses sentimentos em afeto depurados do aspecto meramente psicológico, subjetivo e pessoal. E é por isso que as obras dele nos afetam tanto e, através delas, podemos  ver o quanto que elas são um exercício de superação, transmutação e potencialização da vida.

Deleuze ensina que “a literatura é uma saúde”. Podemos acrescentar ainda: não apenas a literatura é uma saúde, mas todas as artes o são, desde que nelas possamos experimentar e viver o afeto.

 

 

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton luiz.

[2] “Emoção” também tem por sinônimo “afecção”.

[3] Uma boa referência contemporânea sobre esse tema é este livro: Ces émotions qui nos fabriquent – Ethnopsychologie des émotions  ( Essas emoções que nos fabricam – Etnopsicologia das emoções ) , de Vinciane Despret ( Editora Le Seuil, 2001). Infelizmente, essa obra ainda não está traduzida para o português. Mas a autora do livro não chega a fazer essa distinção entre emoção, sentimento e afeto que apresentamos aqui, cuja referência principal é a obra Ética , de Espinosa. Não por acaso, a psiquiatra Nise da Silveira, idealizadora do Museu de Imagens do Inconsciente, também se apoia em Espinosa ao empregar a arte como elemento terapêutico ( embora essa distinção que estamos fazendo aqui também não se encontra diretamente no  livro de Nise sobre Espinosa, cujo título é: Cartas a Espinosa ( participei recentemente , fazendo uma palestra, do lançamento de uma nova edição desse livro).

[4] Não por acaso, a palavra “musa” significa: “conhecimento que vem das artes”, pois as Musas eram as divindades associadas às artes. Não apenas os poetas, os atores e os cantores evocavam as Musas para os auxiliarem na criação de suas artes, os primeiros filósofos igualmente  pediam a inspiração das Musas , mostrando assim que pensar também é uma forma de arte.

[5] O objeto exposto e que expressa afetos se torna o que Deleuze, inspirando-se em Artaud, chama de “Corpo Sem Órgãos”. Aqui, “órgão” é tudo aquilo que se explica por uma função utilitária. Quando é exposto, um objeto se torna um corpo expressivo que  não pode ser explicado apenas pela ideia de função, isto é, mediante um sentido utilitário ou “orgânico”. Quando Espinosa, em sua Ética,  afirma que “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”, ele também está se referindo a ações que não se explicam pelo aspecto orgânico e funcional do corpo, incluindo a ação de nos afetar de ideias e emoções agenciadas. Quando a bailarina dança, por exemplo, ela põe em ação seu Corpo Sem Órgãos; quando a cantora canta, igualmente é seu Corpo Sem Órgãos que se expressa por ela. Quando o poeta escreve seus versos, o corpo da palavra não se explica mais pela funcionalidade da gramática, uma vez que a palavra , ela também, se torna um Corpo Sem Órgãos, um corpo expressivo.  A porta que pertencia ao gabinete da vereadora  Marielle Franco , e que agora está  exposta no Museu da Maré , não é mais um corpo com uma função utilitária, uma vez que ela agora se tornou um Corpo Sem Órgãos, um “corpo sem função utilitária”, um corpo expressivo que expressa ideias e afetos. A realidade expressiva-afetiva do Corpo Sem Órgão não é uma diminuição do corpo funcional-orgânico; ao contrário, é uma potencialização. 










sábado, 25 de janeiro de 2025

Manoel & Espinosa: PoÉtica

 

O poeta Manoel de Barros se formou em Direito. No entanto, seu primeiro cliente foi também o último. Tratava-se de um comerciante    acusado de desonestidade no uso da balança : na hora de pesar a mercadoria , sorrateiramente ele apoiava o dedo para aumentar o peso de forma fraudulenta, e assim lucrar com o logro.

Uma senhora prejudicada pela desonestidade do mau comerciante    resolveu  abrir um processo contra ele. O processo seria o embate  da palavra mentirosa do  comerciante   fraudador contra a palavra verdadeira da mulher corajosa  que o acusava, auxiliada pela má  fama do denunciado   testemunhando contra ele.

Manoel de Barros vivia uma situação financeira difícil à época: havia nascido seu primeiro filho, muitas despesas envolvidas. Além disso, o terno e a gravata eram  uma prisão para ele , assim como a gaiola para o passarinho que ama  “voar fora da asa”.

 Na primeira vez em que esteve com o tal comerciante , Manoel pediu para conversar a sós com  ele, e indagou: “É verdade o que dizem ? Você faz trapaça para burlar  o peso?” E o dissimulado respondeu: “É verdade. Mas fique tranquilo: pagarei  bem, e sei que você precisa de dinheiro. É só inventar uma mentira bem contada que me favoreça.”

Manoel pediu  licença   ao farsante  e foi conversar com o dono do escritório de advocacia. Enquanto desfazia o nó da gravata , o poeta disse: "Desisto do caso, não vou defender essa mentira.  A invenção de que gosto é  outra”.

Uma coisa é a invenção que nega a realidade, como as fake news dos obscurantistas;  outra bem diferente é a invenção poética que amplia o sentido da realidade, tanto a realidade externa quanto a interna.

A invenção neg@cionista apequena e aprisiona; a invenção  poética   horizonta e liberta.

Quando Manoel afirma que “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo” , ele quer dizer que a poesia nasce da mesma fonte da qual brota a  ética.


( Imagem: Espinosa & Manoel :  PoÉtica = Poesia + Ética)



 

Luiz & Manoel:



sábado, 18 de janeiro de 2025

Espinosa: saúde da mente e do corpo / Deleuze: 100 anos

 

Em sua Ética, Espinosa ensina que a saúde do corpo depende de que  ele se nutra de alimentos diferentes (Ética, Quarta Parte, Apêndice, Capítulo 27). Não alimentos caros, mas alimentos diferentes, até mesmo simples. Pois a multiplicidade aumenta a potência e saúde da singularidade que a incorpora  , fazendo a diversidade ser   parte  integrante de si.

Mas para que esses alimentos diferentes potencializem o corpo que deles se alimenta, é preciso que esses alimentos se componham , ou seja, que a união deles seja um acréscimo de força, de saúde e até mesmo de harmonia, como numa polifonia musical feita com sons de instrumentos diferentes que, juntos, criam uma música singular, única. 

Nosso corpo é composto de diferentes tecidos, de variadas estruturas ósseas, de sutis construções nervosas; e toda essa heterogeneidade que nos compõe , e que faz de cada um de nós um ser único, requer igualmente uma heterogeneidade de alimentos para manter-se e regenerar-se.

 Ao contrário, um corpo que se alimenta de apenas uma coisa, ou de poucas coisas, empobrece sua potência e saúde, uma vez que essa única coisa ou poucas coisas ingeridas irão alimentar apenas poucas coisas em nós , criando assim um desequilíbrio e uma desarmonia. Como resultado, nosso corpo será um misto debilitante  de excessos e carências.  

Se para nos alimentar dependêssemos apenas da monocultura que o agro-ogro produz, estaríamos todos doentes...O que nos salva é a riqueza plural da pluri-agricultura familiar.

O que vale para nosso corpo vale ainda mais para a nossa mente. Uma mente potente é aquela que se nutre de ideias múltiplas, diversas, plurais. Ideias que vêm não apenas de livros, mas também de músicas, filmes, pinturas,  poesias, exposições , enfim, ideias múltiplas que nascem da vida, ideias para serem pensadas, sentidas , vividas e postas em prática.  

São essas ideias plurais que alimentam e enriquecem de vida pensante uma mente singular. São elas que garantem a saúde da mente, tanto a mente individual quanto a coletiva . Enfim, uma polifonia de ideias expande a mente , tornando-a criativa e aberta à heterogeneidade do próprio mundo.  

Ao contrário, a mente que se nutre de uma ideia única, na verdade não se alimenta, e sim se envenena. Mente assim se fecha à heterogeneidade da realidade,  passando  a negá-la ou a temê-la . E disso se aproveitam os dogmas, as “seitas” de toda espécie ( incluindo a “seita do Mercado” ), os fanatismos, as palavras de ordem e tudo aquilo que alimenta a ignorância em suas diversas formas.


(Imagem: “Polifonia”/ Paul Klee)




Inspirando-me em Espinosa, sempre gosto de trazer pintura , poesia e música para acompanharem as ideias escritas, para assim enriquecerem  com pluralidade o aprendizado ( unindo ideia e afeto, intelecto  e sensibilidade). Creio que essa lição espinosista também se encontra em Deleuze quando criou a ideia de “pop’filosofia”, que é a filosofia agenciada com as artes. A pop’filosofia une mente e corpo, ideias e afetos, pois é a criação de uma filosofia aberta à não filosofia. 

Hoje, 18/01/2025, Deleuze faria 100 anos. Em homenagem a ele, deixarei uma música de um artista que era um de seus preferidos: Bob Dylan ( inclusive, Deleuze cita Bob Dylan ao falar da pop'filosofia):




sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

As linhas de fuga e o "Capetalismo"

 

Creio que não há nenhuma surpresa nas declarações recentes do dono da empresa Meta ( proprietária  do  facebook)  submetendo-se   servilmente ao trumpismo e outros obscur4ntismos , já que os algoritmos  da IA  da Meta   fazem isso há tempos, sobretudo censurando postagens de cunho progressista.

Isso mostra que, no “Capetalismo” ( como dizia o “Profeta Gentileza”) , nunca os interesses são exclusivamente “econômicos”, pois o fundo é sempre político ( aqui no Brasil ,  por exemplo, isso se revela  no ataque especulativo do “mercado” ao  governo ) . No caso da empresa Meta, o fundo é a política imperialista estadunidense e seus l4c4ios .

Aliás, em sua  própria declaração , o empresário das “Big Techs”  já deu o tom e indicou o caminho neg4cionist4 que, se depender dele,  suas redes  tomarão  , ao acumpliciar-se com   ações  criminosas  como se fossem  “liberdade de expressão”.

De minha parte, ante esses poderes que ameaçam nossa dignidade e vida pensante, sempre busco  na filosofia alguma ideia-ferramenta de resistência e luta para  partilhar, seja em sala de aula, aqui ou em qualquer outro  lugar . Por exemplo, a ideia de “linha de fuga” ensinada por Deleuze & Guattari.

Dito de maneira simples, linha de fuga não é fugir de algo, mas fazer fugir algo que algum poder ( físico ou simbólico)  quer reprimir, aprisionar. As linhas de fuga são construídas com criatividade , crítica , coragem e perseverança ; e  sempre a partir de dentro de  uma situação ou lugar onde se está ,  nunca a partir de fora.

Umberto Eco chamava essa prática de subverter a lógica da mídia desumanizante/alienante, no espaço  mesmo onde ela acontece,   de “guerrilha semiótica”.

Produzir e partilhar  conhecimento, empatia, sensibilidade social e afetos emancipadores  aqui nesta rede é, e  sempre será , um exercício de  linha de fuga.

É compreensível  e legítima a decisão de quem  escolha sair das redes, mas acho que também pode ser uma boa  estratégia a ação de quem decida permanecer para , de dentro, construir linhas de fuga, por mais simples e modestas que sejam.

As linhas de fuga sempre foram necessárias, porém o serão ainda mais nesse mundo que se avizinha.


( este livro é apenas uma sugestão )



 

“Profeta Gentileza” , ou simplesmente “Gentileza”, foi um personagem que caminhava pelas ruas do Centro do Rio distribuindo flores de graça, sem pedir nada em troca ( muito menos dízimo...). Foi o próprio povo que o batizou de “Gentileza”. Enquanto ofertava gentilmente  flores a quem passava, ele dizia : “O Capetalismo mata a gentileza...”  Seu “mantra” costumava ser: “Gentileza gera gentileza”. Para ele, ser gentil era uma maneira de ser anticapitalista.



 

O professor Leonardo Guelman escreveu um excelente livro sobre o Profeta Gentileza:



quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

sem anistia

 

Como nos ensina Espinosa, a  democracia não tem por centro altares, como num templo, e nem é feita de  hierarquias rígidas, à maneira da caserna.

Quando os representantes do  templo  e da caserna , extrapolando seus espaços , também ambicionam  poder político, corre perigo  a democracia ameaçada por intolerâncias, negacionismos e  fanatismos  armados com a força  bruta do militarismo a serviço do delírio teológico-político.

A força da democracia não é bélica, a força da democracia  é a das ideias plurais pensadas e realizadas em conjunto , perseverantemente. E também em conjunto,  perseverantemente,  precisam ser defendidas.

8 de janeiro: #semanistiaparagolpistas!

 

“A virtude com a qual o homem livre evita os perigos

revela-se tão grande quanto a virtude com a qual ele os enfrenta”.

( Espinosa, Ética, Quarta Parte, proposição  69)

domingo, 5 de janeiro de 2025

Aion

 

Aconteceu lá no começo das eras :  talvez tenha sido uma criança que, brincando,  pegou uma  semente  que recolheu da floresta  e a plantou em um pedaço de  terra próximo de onde  morava. Depois, os adultos tiraram proveito, substituindo a brincadeira e o lúdico pela dominação técnica da natureza .

Antes, a planta crescia livre , sem cercas . Agora ela era cultivada  pelos homens  que a desterritorializaram   de um espaço livre e a reterritorializaram em uma terra cercada . Foi assim que  nasceu a agricultura: com a domesticação do que antes crescia e vivia livre na natureza

“Domesticar”  significa : “colocar sob o poder de um domicílio”. Mas não era apenas a planta  que era assim domesticada,  pois junto com ela  também era domesticada outra realidade .

O homem  de então percebeu que a planta nasce, cresce , dá  frutos e  morre.   Houve a compreensão de que a planta existe dentro de um período com fases e ciclos. O homem deu um nome para essa realidade feita de ciclos: ele a chamou de “tempo”. 

Depois, o homem  abstraiu o tempo do cultivo empírico das plantas, ficando  apenas com a ideia de ciclo , estendendo-a  ao cosmos e  a si mesmo. E assim se viu  criança,  adulto e idoso. Ele percebeu que sua vida tinha ciclos, como a vida da planta. Compreendeu que ele era nascimento, vida e morte.

A domesticação do tempo ensejou  também a descoberta do domicílio onde mora o homem: enquanto os deuses moram na eternidade, o homem tem por morada o tempo. Assim como a planta domesticada passou a viver dentro de cercas, o relógio se tornou  a cerca que limita o tempo domesticado.

Mas a domesticação da planta não fez morrer as florestas nas quais as plantas vivem livres, do mesmo modo que a domesticação do tempo não eliminou o seu existir não domesticado  enquanto duração para além do  relógio.

Esse tempo não domesticado  e livre é o que alguns filósofos chamam  de “devir”. O devir  está para o relógio assim como a floresta está para a agricultura, ou  como a poesia está para a linguagem: como realidade não domada, livre,  que nenhuma cerca simbólica domestica.

Não é por acaso que o “Mercado” prega que  “tempo é dinheiro”, pois os  juros nada  mais são  do que nosso tempo de vida  sendo vampirizado pelo capital. 

 Já a  duração-devir somente pode ser experimentada se cultivarmos em nós um olhar livre de cercas, tal como o têm a criança e o indígena. A duração-devir expressa um valor que não pode ser medido por moeda ou dinheiro.

Enquanto os mercadores do tempo  vivem olhando para o relógio, indígenas, crianças e poetas  vivem a olhar para as estrelas, e por elas se orientam.

Na mitologia, o tempo do relógio é chamado de  Cronos, a divindade que a todos devora, ao passo que a  duração-devir  atende por  Aion, que era simbolizado por uma criança  que brinca.