O QUE É UM AFETO?[1]
Há três ideias que são muito confundidas e empregadas como se fossem
sinônimas, mas que na verdade se diferem quando as analisamos mais de perto. As ideias são: emoção,
sentimento e afeto. Essas ideias estão profundamente ligadas às
vivências cotidianas, não sendo, portanto, algo meramente teórico. Daí a importância
de sabermos distinguir essas ideias, tanto na vida pessoal quanto no campo
profissional, sobretudo para aqueles que têm atividades criativas as mais
diversas envolvendo o afeto, o sentimento e a emoção das pessoas.
Etimologicamente, “emoção” significa “ser movido”. Por exemplo, quando
nosso rosto fica vermelho de vergonha, isso acontece porque nosso sangue é
movido até à superfície da pele. Quando nossos pelos se eriçam de medo, é como
se eles fossem movidos por um vento. A emoção é um movimento físico que
acontece no corpo[2]. A
emoção também pode gerar uma aceleração dos batimentos cardíacos, uma
respiração ofegante e outros aspectos fisiológicos que podem ser aferidos por
equipamentos[3]. A
emoção é algo tão profundamente ancestral em nós, que ela envolve até mesmo
movimentos involuntários que podem afetar os órgãos internos. Por isso, emoções
fortes podem adoecer, tanto a mente quanto o corpo
Em geral, as emoções são os traços físicos que os sentimentos deixam,
como se fossem as pegadas que um passante deixa na areia. Na verdade,
sentimento e emoção andam juntos, eles se acompanham.
Hoje, há um longo debate acerca das seguintes questões: os sentimentos
são naturais ou são construções culturais? Os sentimentos têm uma origem
natural que é ressignificada de forma diferente conforme as culturas? Não há
uma resposta única em relação a essas questões que envolvem diversas áreas de
estudo. Mas é certo que sentimentos e emoções têm relação com comportamentos
que remontam à origem do processo de hominização. Os autores parecem concordar
que emoções e sentimentos são sentidos/vividos individualmente, porém recebem
forte carga de codificação social[4].
Parece haver um lugar privilegiado no qual os sentimentos se deixam ver
de forma mais direta. Esse lugar é o rosto, a face. Saber reconhecer um
sentimento no rosto de alguém requer aprendizagem social, e esse é o princípio
da empatia. Os psicopatas, por sua vez, são desprovidos dessa capacidade social
associada aos sentimentos e emoções.
Enfim, medo, angústia, amor, alegria, ciúme, tristeza, etc. são sentimentos
da alma que também se traduzem como emoção no corpo. Sentimentos e emoções
surgem das situações da vida, possuindo uma natureza social e psicológica.
A palavra “afeto” deriva de um termo latino que significa “ser tocado”. Há
uma proximidade entre o afeto e o sentimento, porém eles não significam a mesma
coisa e nem são vividos da mesma maneira. Por exemplo, há um livro de Sartre
que se chama A náusea. Na vida concreta, em meio aos encontros que
fazemos com pessoas e coisas, podemos viver situações que geram náusea. Se a
náusea for forte, podemos até passar muito mal. Mas quando lemos o livro de
Sartre, não estamos diante de situações concretas, já que entramos em um mundo
construído pelas palavras. Porém, quando lemos o livro e entramos em contato
com as descrições que o autor faz de certas situações, também sentimos náusea!
Mas essa náusea sentida foi produzida pela palavra literária, pela palavra
artística, e não por pessoas ou coisas concretas. Apesar disso, a náusea que
sentimos ao ler o livro é real: como
realidade do afeto.
O afeto é o sentimento depurado das condicionantes psicológicas, para
assim ser recriado como experiência estética. Na literatura, o afeto está, ao
mesmo tempo, na palavra e em nós. Portanto, o afeto não é puramente subjetivo
ou psicológico, uma vez que ele é expresso em uma materialidade criada para dar-lhe
vida, como o corpo da palavra na
literatura, o corpo das tintas na pintura, o corpo dos sons na música.
Portanto, toda arte expressa afetos. A música é feita de sons que produzem afetos.
A pintura é composta por paisagens e seres pintados que geram afetos. Quando
olhamos uma noite estrelada podemos ter vários sentimentos: admiração,
encantamento, espanto, sublimidade... À medida em que as horas avançam, o dia
amanhece e aquela noite estrelada desaparece, vai embora, nunca mais retorna, e
passa a viver apenas em nossa memória. Mas quando olhamos a pintura Noite
Estrelada sobre o Ródano, de Van Gogh, vários afetos podem ser despertados,
inclusive esses afetos podem reavivar os sentimentos guardados em nossa memória
de alguma noite estrelada que já vivemos.
(Imagem 1: “Noite
estrelada sobre o Ródano”, de Van Gogh. Acrescentei os versos do poeta Keats à
pintura de Van Gogh)
Mas enquanto a noite estrelada que vimos no passado passou e foi embora,
a noite estrelada que Van Gogh pintou nunca passa: ela conquistou a eternidade.
Não a eternidade de uma vida após a morte, e sim a eternidade de uma vida que
nunca morre, uma vida (re)criada como arte. É por isso que essa obra é
conservada: o que se conserva nela não são apenas as tintas, mas o afeto que as
tintas expressam. Sabe-se que as tintas que Van Gogh empregou para pintar não
eram de boa qualidade. Mas a riqueza das obras não está nas tintas em sua
materialidade, a riqueza se encontra nos afetos que Van Gogh eternizou em suas
pinturas.
Quando a vereadora Marielle Franco era viva, a visão da porta do seu
gabinete gerava vários sentimentos acompanhados de emoções, pois era uma porta
na qual estavam colados adesivos com diversas mensagens que traduziam a luta de
Marielle por justiça, igualdade e dignidade. Hoje, essa mesma porta se tornou
parte do acervo do Museu da Maré. Através da porta, Marielle revive e nos
afeta, pois a porta expressa afetos que mantêm viva a luta de Marielle.
(Imagem 2: a porta do
gabinete da vereadora Marielle Franco)
Enquanto os sentimentos podem desaparecer quando alguém não os sente mais,
ou quando aquele que os viveu deixa de existir, os afetos permanecem nos signos
criados para serem seu corpo. Quando era parte do gabinete da vereadora Marielle,
a porta não era percebida como signo, já que ela era usada segundo sua função.
Mas a realidade semiótica já estava nela, porém apenas em potência, da mesma
maneira que o afeto está em potência nos sentimentos que vivemos em nossa vida
cotidiana.
Enquanto pintava o quadro Noite Estrelada sobre o Ródano,
certamente Van Gogh sentia sentimentos que o emocionavam, sentimentos esses
acompanhados de emoções que faziam seu coração bater mais rápido e sua
respiração ofegar. Mas Van Gogh não ficou restrito apenas aos sentimentos e à
vida psicológica subjetiva, ele se agenciou com as tintas e as fez de corpo
para com elas recriar o Céu Estrelado que via. Ele fez a potência se tornar
ato: ele transmutou o sentimento em afeto, de tal maneira que aquilo que ele
viu e sentiu sobreviveu a ele mesmo, oferecendo-se como arte para que a gente,
ao ver o quadro, também veja e sinta o que ele viu e sentiu. Nunca a gente vai
conseguir ver o céu que ele viu pessoalmente e que lhe gerou sentimentos, a
gente vê através do quadro o céu que Van Gogh pintou ao transmutar seus
sentimentos em afeto partilhado. Ao olharmos o quadro, a gente não vê o céu que
Van Gogh viu pessoalmente, a gente vê a visão do céu que Van Gogh eternizou,
eternizando a si mesmo no corpo expressivo das tintas.
Arthur Bispo do Rosário viveu imensas dificuldades na vida, dificuldades
sociais, financeiras, preconceitos, exclusões...Tais dificuldades produziram
sentimentos e emoções demolidores, mais do que ele, ou qualquer um de nós,
poderia suportar. Bispo do Rosário surtou, desmoronou por dentro...Foi através
da arte, bordando afetos, que ele conseguiu de alguma maneira pôr-se de pé
novamente. O afeto é conquista de saúde: ele também pode ter um efeito clínico.
(Imagem 3: “Manto”, de
Arthur Bispo do Rosário. Aberto, o Manto se assemelha às asas de uma borboleta,
como se expressasse a metamorfose do sentimento em afeto)
Em seu livro Arte Poética, Aristóteles se debruça sobre as artes,
sobretudo o teatro grego, para argumentar acerca de qual seria a principal
“finalidade” da arte. Para ele, a principal função da arte é produzir uma catarse.
Essa palavra vem do grego katharsis,
que significa “limpeza”, “purificação”. Originalmente, essa palavra designava o
efeito que a água do mar produz em quem se banha nela. Pois o sal da água do
mar sara feridas no corpo, além de ajudar igualmente a sarar feridas na alma. A
água do mar limpa, purga.
Aristóteles transpôs essa palavra para aplicá-la ao efeito que a arte
produz em quem entra em contato com ela. A arte tem a potência de expurgar os
sentimentos represados e reprimidos, liberando a energia retida por emoções negativas.
A arte libera essa energia emocional, provocando dessa maneira o efeito
catártico.
No palco, os atores não estão
sentido raiva, ódio e rancor de verdade. Sobre o palco, há afetos que os atores
expressam mediante seus gestos, expressões faciais e voz. O afeto artístico é o
sentimento reelaborado. Na vida, os sentimentos negativos podem adoecer quem os
sente, ou provocar violências que podem resultar até mesmo em crime (como os
crimes de ódio e vingança). Mas ao entrarem em contato com esses sentimentos
transformados em afetos artísticos, essa experiência pode exatamente levar o
espectador a perceber os efeitos perniciosos dos sentimentos e emoções, quando
eles nos fazem de marionetes, roubando nossa autonomia. Por isso, o teatro
grego tinha igualmente uma dimensão política, uma política dos afetos em favor
da democracia.
Uma obra de arte não é sentimentalismo, tampouco é algo apenas pessoal.
Uma obra de arte é afeto, isto é, transformação do sentimento pela reelaboração
estética que cria um mundo que amplia e potencializa nossa sensibilidade e pensamento,
fazendo-nos sentir e pensar. Somente a arte tem a capacidade de dar concretude
aos afetos, possibilitando que possamos partilhar o que sentimos e aprendermos
com isso, como conhecimento[5]
e autoconhecimento.
Não é errado chamarmos de “afeto” os sentimentos que sentimos em nossa
vida pessoal no encontro com situações e pessoas. Porém, a obra de arte depura
esses sentimentos e os transmuta em afetos, isto é, em signo. É por esse motivo
que uma obra de arte, ou um objeto exposto em uma exposição, expressam afetos[6].
E tanto quanto os sentimentos, os afetos de uma obra de arte também podem nos
produzir intensas emoções, porém nos permitindo pensá-las através de um pensar
do qual também participam ativamente a sensibilidade e o corpo.
Pensar os afetos através das artes pode ter um efeito positivo na nossa relação
com nossos sentimentos e emoções, levando-nos a ser menos passivos e dominados
por eles , aprendendo a reelaborá-los para que potencializem nossas ideias e
ações, tanto no campo pessoal quanto profissional.
Nietzsche dizia que os artistas são “os médicos da civilização”. Creio
que podemos interpretar essa frase de Nietzsche no sentido que estamos apresentando
aqui neste texto. O artista trabalha sobre si mesmo, inclusive empregando seu
inconsciente. Ele não fica refém de seus sentimentos, e é por isso que não se
deve reduzir o sentido de uma obra artística à dimensão pessoal e biográfica do
criador. Sem dúvida, Van Gogh teve medos, inseguranças, raivas, decepções... Mas
sua obra não é um efeito desses sentimentos. Ao contrário, sua arte é transmutação
desses sentimentos em afetos depurados do aspecto meramente psicológico,
subjetivo e pessoal. E é por isso que as obras dele nos afetam tanto e, através
delas, podemos ver o quanto que elas são um exercício de superação,
transmutação e potencialização da vida.
Deleuze ensina que “a literatura é uma saúde”. Podemos acrescentar ainda:
não apenas a literatura é uma saúde, mas todas as artes o são, desde que nelas
possamos experimentar e viver o afeto.
[1] Texto-aula
elaborado pelo prof. Elton luiz.
[2]
“Emoção” também tem por sinônimo “afecção”.
[3]
O “detector de mentiras”, por exemplo, não analisa o aspecto semântico da fala,
mas o registro emocional aferível por movimentos involuntários do corpo.
[4]
Uma boa referência contemporânea sobre esse tema é este livro: Ces émotions
qui nos fabriquent – Ethnopsychologie des émotions ( Essas emoções que nos fabricam – Etnopsicologia
das emoções) , de Vinciane Despret (Editora Le Seuil, 2001). Infelizmente, essa
obra ainda não está traduzida para o português. Mas a autora do livro não chega
a fazer essa distinção entre emoção, sentimento e afeto que apresentamos aqui,
cuja referência principal é a obra Ética, de Espinosa. Não por acaso, a
psiquiatra Nise da Silveira, idealizadora do Museu de Imagens do
Inconsciente, também se apoia em Espinosa ao empregar a arte como elemento
terapêutico (embora essa distinção que estamos fazendo aqui também não se
encontra diretamente no livro de Nise sobre Espinosa, cujo título é: Cartas
a Espinosa ( participei recentemente, fazendo uma palestra, do lançamento
de uma nova edição desse livro).
[5]
Não por acaso, a palavra “musa” significa: “conhecimento que vem das artes”,
pois as Musas eram as divindades associadas às artes. Não apenas os poetas, os
atores e os cantores evocavam as Musas para os auxiliarem na criação de suas
artes, os primeiros filósofos igualmente pediam a inspiração das Musas,
mostrando assim que pensar também é uma forma de arte.
[6]
O objeto exposto e que expressa afetos se torna o que Deleuze, inspirando-se em
Artaud, chama de “Corpo Sem Órgãos”. Aqui, “órgão” é tudo aquilo que se explica
por uma função utilitária. Quando é exposto, um objeto se torna um corpo
expressivo que não pode ser explicado apenas pela ideia de função, isto é,
mediante um sentido utilitário ou “orgânico”. Quando Espinosa, em sua Ética,
afirma que “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”, ele também está se
referindo a ações que não se explicam pelo aspecto orgânico e funcional do
corpo, incluindo a ação de nos afetar de ideias e emoções agenciadas. Quando a
bailarina dança, por exemplo, ela põe em ação seu Corpo Sem Órgãos; quando a
cantora canta, igualmente é seu Corpo Sem Órgãos que se expressa por ela.
Quando o poeta escreve seus versos, o corpo da palavra não se explica mais pela
funcionalidade da gramática, uma vez que a palavra, ela também, se torna um
Corpo Sem Órgãos, um corpo expressivo. A
porta que pertencia ao gabinete da vereadora Marielle Franco, e que agora está
exposta no Museu da Maré, não é mais um corpo com uma função utilitária, uma
vez que ela agora se tornou um Corpo Sem Órgãos, um “corpo sem função
utilitária”, um corpo expressivo que expressa ideias e afetos. A realidade
expressiva-afetiva do Corpo Sem Órgão não é uma diminuição do corpo
funcional-orgânico; ao contrário, é uma potencialização.