sábado, 7 de dezembro de 2024

Afloramentos...

 

No filme “Sonhos”, de Kurosawa, há uma cena em que uma criança chora porque um jardim de pessegueiros foi derrubado.

Então, perguntam a ela se o choro dela era devido a não poder mais  comer os pêssegos, ou seja, se o choro  era motivado pelo interesse nos frutos, nos pêssegos.

A  criança responde mais ou menos assim: “Eu não estou chorando pelos pêssegos , pois  pêssegos podem ser comprados  em quantidades no mercado . Eu choro porque nunca mais vou poder ver a floração dos pessegueiros: a floração é única e  não se mede em dinheiro, nem se vende no mercado...”.

De repente, ainda chorando, a criança vê algo colorido num  canto daquele  jardim desolado. Ela   chega perto para ver o que é: do tronco de um pessegueiro  cortado e violentado, a vida ali resistiu e perseverava , pois pequenos embriões de floração novamente brotaram.

Então, como se tivesse ganho o mais desejado dos presentes,  a criança enxuga as lágrimas e  sorri.

O pêssego é colhido com as mãos, já  a floração é para ser colhida com os olhos, para que o próprio ver nos olhos floresça, e enxergue mais do que o mero dado.

O pêssego é o produto que pode ser separado de seu produtor, ao passo que  a floração é a arte que torna indistintos o artista e sua obra ainda em processo e  brotando dele mesmo, em generosa doação.

O pêssego mata a fome do estômago, mas  a floração mata outro tipo de fome:  fome de arte, de poesia e de criação.

As ideias são como os pêssegos, porém pensar é floração da mente unida ao corpo, como ensina Espinosa. Manoel de Barros, por sua vez, diz que “poesia é afloramento de falas”.

A liberdade não é um fruto pronto que podemos colher, a liberdade  é floração concreta no aqui e agora, como ato emancipador   fazendo-se.

Há os que cobiçam  os pêssegos apenas para pôr neles um preço e vendê-los no  mercado, reduzindo    os pêssegos a meros meios  para se acumular capital, poder e dinheiro.

Mas há os que veem riqueza na floração dos seres, uma riqueza que não se mede em dinheiro, pois é uma riqueza que se cultiva com a arte, a filosofia, a cultura e a educação.

Porém , é preciso cuidar dessa floração e agir para que ela sempre aconteça , pois odeiam essa floração, e sempre a ameaçam, os ceifadores e destruidores de jardins.

 

  "Poesia é florescer pelos olhos." (Manoel de Barros)

 

“Filosofia é prática para ensinar a ver.”( Merleau-Ponty)

 

 

( imagem: “Pessegueiros em flor”/ Van Gogh)



Quando a gente come uma maçã, a gente está se alimentando  de sol. Pois a maçã é o fruto, a obra que a macieira produziu ao absorver a luz-energia que  vem do sol. Na verdade, a maçã e todos os frutos são partes da floração do sol.

Quando bebemos água , nos enchemos de estrelas, pois os elementos químicos que formam a água foram produzidos no ventre das estrelas.

Quando respiramos, trazemos para dentro de nós elementos que, separados no infinito, aqui no planeta terra se uniram , para dentro de nós nos animarem de vida.

O planeta terra é o esteio da vida porque nele o infinito se expressa em cada ser  único que se torna alimento , água e ar. E nós mesmos participamos do infinito pelo simples fato de nos alimentarmos, bebermos e respirarmos .

As própria ideias com as quais nos expressamos participam desse processo ao dizê-lo, transmutando-o em sentido que alimenta a mente, mata sua sede de conhecimento e lhe fornece o ar , o “pneuma”, para ela não sufocar.